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A NOVA TRADIÇÃO URBANA
Obra dos anos 40 que se tornou um clássico ao antecipar tendências
da construção contemporânea, como Jorn Utzon e Frank O. Gehry,
"Espaço, Tempo e Arquitetura", de Sigfried Giedion, ganha tradução brasileira
RUY OHTAKE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Visitei, quando ainda estudante, a casa mais conhecida de Le Corbusier: a Villa
Savóia (projeto de 1929).
Uma emoção longa e muda foi a
aproximação a essa casa, no topo de
uma colina. Força plástica entre a serena proporção do primeiro pavimento e a volumetria do terraço-jardim da cobertura, a quase pictórica
relação entre os cheios e vazios, os
pilotis a lhe conferirem uma surpreendente leveza e a rampa interligando os três pavimentos, um passeio pelos espaços da casa e o vislumbre da natureza que a envolve.
Pouco antes dessa viagem, havia lido "Espaço, Tempo e Arquitetura"
[ed. Martins Fontes, tradução de Alvamar Lamparelli, 972 págs., R$
94,50], de Sigfried Giedion (1888-1968), em edição espanhola. Leitura
que me permitiu compreender a Villa Savóia, além daquela emoção
imediata: aí estavam, em pilares,
concreto, vidro e vazios, os postulados do modernismo propostos por
Le Corbusier e, mais ainda, a conceituação de espaço-tempo, ao observar que a estrutura independente da
casa permitia que o cubo elevado do
pavimento superior, além de vazado, também tivesse vazios em várias
direções.
Constituiu a leitura básica na formação do arquiteto daquela época
(final da década 50), ao lado de Zevi
("Saber Ver a Arquitetura"), Pevsner ("Os Pioneiros do Desenho Moderno"), Mumford ("Arte e Técnica") [todos publicados no Brasil pela
Martins Fontes], Le Corbusier
("Obras Completas"), Papadaki
("Work in Progress - Oscar Niemeyer"), entre outros.
Tendência escultórica
Decorridos pouco mais de 40 anos,
é lançada agora a edição em língua
portuguesa de "Espaço, Tempo e
Arquitetura". Nesse intervalo, a arquitetura conheceu extraordinária
produção, pontilhada de diversificadas proposições, quase inimagináveis no período anterior, época da
edição inicial do livro.
Daí se compreender porque Giedion acrescentara mais de cem páginas a essa primeira edição (1941), em
sucessivos adendos e capítulos até
1967 (ele viria a morrer em 1968), em
razão dos novos movimentos que a
arquitetura começa a experimentar
no pós-guerra. O próprio subtítulo
colocado por Giedion, "Desenvolvimento de uma Nova Tradição", denuncia seus propósitos e sua instigante percepção.
Adendo significativo é dedicado
ao arquiteto dinamarquês Jorn Utzon (Ópera de Sidney, 1957), eleito
por Giedion como o representante
da então terceira geração de arquitetos contemporâneos, que surgia a
partir da década 50, procurando,
afirma ele, consolidar as tendências
escultóricas na arquitetura.
Ao referir-se, com comentários
entusiasmados e pormenorizados, à
Ópera de Sidney, salienta que "ele
(Utzon) une de maneira inovadora
duas intenções separadas: o exterior
com maravilhosas abóbadas acopladas; e o interior, espaço independente e funcional de uma ópera, inserido sob as abóbadas" e que "após
meio século de desenvolvimento, a
arquitetura contemporânea (década
de 60) inaugura um novo capítulo
promissor para o futuro". Sem dúvida, um dos pontos altos do texto.
Caminhos futuros
A inquietação intelectual de Giedion o fez perceber, já naquela época, os "futuros caminhos da arquitetura", que vieram a se confirmar,
despontando, a partir da década 80,
trabalhos de Jean Nouvel, Frank O.
Gehry, Zaha Hadid, Renzo Piano,
Calatrava etc.
Giedion sempre considerou que o
historiador de arquitetura deveria
manter estreito contato com as concepções contemporâneas e que, ao
estar impregnado do espírito de sua
época, poderia detectar aspectos do
passado despercebidos pelas gerações anteriores.
Indiferente ao chamado distanciamento histórico, participou intensamente das atividades dos arquitetos
de sua época, sem receio de que isso
pudesse ser uma ameaça à sua imparcialidade, à sua dignidade, à sua
amplitude de visão. Com essa perspectiva, selecionou mestres da arquitetura, alguns deles fora do movimento modernista, examinando o
cenário cultural, econômico e social
que envolveu cada arquiteto, cujas
obras receberam magistrais e perspicazes comentários, permeando de
proposições conceituais a sutis pormenores. Uma das razões que o tornaram um dos autores mais lidos no
ambiente arquitetônico.
De Frank Lloyd Wright (1867-1959), coroando uma densa narrativa abrangendo o início do desenvolvimento industrial norte-americano, passando pela Escola de Chicago, o autor observa com entusiasmo
o longo e contínuo exercício do arquiteto e provoca: "A maleabilidade
dos espaços internos concebidos
por Wright trouxe vida, movimento
e liberdade ao corpo rígido e inerte
da arquitetura moderna".
Seria um alerta? Giedion, apesar de
reconhecer em Wright o arquiteto
mais dotado de agudeza de espírito,
um gênio com uma vitalidade de
inexplicável riqueza, procura entender a ausência de seguidores de sua
arquitetura, entre outras razões, pelo fato de a arquitetura norte-americana naquela época estar corroída
pelos modismos clássicos e góticos,
fato esse que se repete em várias cidades brasileiras, notadamente em
São Paulo.
Da "pequena e encantadora" Casa
Roberts (1907), Giedion destaca que
a planta tipo "moinho de vento"
possivelmente tenha influenciado
Mies van der Rohe. Do conhecido
projeto dos escritórios Johnson, o
autor faz uma indagação que já é a
resposta: "Por que um local de trabalho não poderia uma vez só se basear na poesia?", citando elogiosamente os espaços descomunais e os
pilares em forma de cogumelo. Fica
no ar, agora, uma interrogação: o
Museu Guggenheim (1943-1959),
considerado por muitos como a
obra mais significativa de Wright,
não recebeu nenhuma referência.
Imaginação social
Le Corbusier (1887-1964), pela lição de idealismo, pela convicção
profissional, é o arquiteto celebrado
no livro. Ao observar que o poder de
Le Corbusier residiu na sua força arquitetônica, enaltece o grande espetáculo de arquitetura, referindo-se
ao terraço-jardim da cobertura de
Marselha (1947), exalta Chandigarh
(1956), que considera sua maior ousadia arquitetônica, atenta para a incorporação do equilíbrio flutuante
das forças, leveza e transparência
nas dezenas de casas, em La Tourette sente que todo o edifício exala
uma ardente vitalidade, destaca a
abordagem escultural de Ronchamp. Ele identifica-a como uma
aspiração da arquitetura contemporânea e aponta uma direção para os
arquitetos: "Le Corbusier expressa
tridimensionalmente a imaginação
social", aludindo-se à Unidade de
Habitação de Marselha, onde o arquiteto levou ao sétimo andar do
edifício uma rua com lojas, alimentação, estúdios e ateliês, passeio público, "procurando com isso reconstruir uma relação rompida entre o
indivíduo e o coletivo".
Desde o princípio, Le Corbusier
manifestava a irresistível força do
gênio e, além de formular já em 1926
os célebres cinco princípios do movimento modernista, converteu a estrutura independente -ou o esqueleto de concreto- em linguagem de
arquitetura, abrindo enormes possibilidades de desenhar volumes, espaços e vazios, e a isso chamou de
"arquitetura espiritual", da qual a
Villa Savóia se constitui no mais belo
e puro exemplo.
Giedion, ao lhe atribuir dois talentos, o de saber reduzir (sem simplificar) um problema complicado a elementos básicos e o de sintetizar esses
resultados com clareza primorosa,
evidencia seu trabalho indissolúvel,
como arquiteto, urbanista, pintor,
escultor, poeta e pensador, e poder-se-iam mencionar a mão aberta em
Chandigarh, as texturas das paredes
de Cambridge, as cores das paredes
das sacadas de Marselha, de onde,
anota Giedion, "Le Corbusier capturou na moldura arquitetônica a alma
da paisagem de Provence, que Cézanne foi capaz de apreender", os
baixos-relevos de Firminy, os vitrais
de Ronchamp, a concepção do Modulor. É essa a personalidade que,
não sem razão, recebeu mais de 300
citações ao longo da narrativa de
Giedion.
Com relação à escolha do projeto
para o edifício da ONU (1947) em
Nova York, cabe um reparo: a preferência unânime, entre os dez arquitetos convidados que participaram
do concurso, recaiu sobre o projeto
de Oscar Niemeyer, o qual concordou, posteriormente, em deslocar a
posição do bloco da assembléia,
atendendo ao velho mestre Le Corbusier. Portanto, diferente do longo
relato apresentado por Giedion.
Niemeyer ausente
Le Corbusier desenvolveu obras de
maior porte nos últimos 15 anos de
vida e atravessava uma fase de intenso trabalho quando veio a morrer,
deixando como legado seu idealismo, suas influências, que se espraiaram a todos os continentes, e um expressivo número de seguidores. Lê-se o brado lancinante de Giedion:
"Arrancaram o lápis de sua mão".
Duas omissões: a estranha ausência de Oscar Niemeyer, que já tinha
construído o conjunto da Pampulha
(1943), a residência de Canoas
(1956), as obras principais de Brasília (inauguradas em 1960), além do
edifício do Ministério da Educação,
este coordenado por Lúcio Costa,
com croquis inicial de Le Corbusier
e desenvolvido pela equipe brasileira, que se constitui num dos grandes
marcos do modernismo.
Nota-se, igualmente, a ausência de
observações mais desenvolvidas sobre Brasília (1960), cujo plano piloto
abriga 500.000 habitantes, e ainda
mais quando o próprio Giedion, no
capítulo "Planejamento Urbano",
reconhece que na cidade moderna
somente fragmentos foram realizados. A rápida referência à praça dos
Três Poderes, mesmo com duas ilustrações, parece ser insuficiente.
Antes de abordar a arquitetura do
século 20, Giedion abre três capítulos, remetendo do Renascimento ao
século 19, em que vários aspectos são
analisados sob sua lente contemporânea. Aludindo, por exemplo, ao
Capitólio de Roma, observa que um
grande artista como Michelangelo é
capaz de criar forma artística de sua
fase histórica bem antes que essa fase tenha começado a tomar forma
tangível. Analisa, no início da industrialização, o uso do ferro e do aço na
arquitetura e também o do concreto
armado. O autor se refere a Eiffel e
sua emblemática torre em níveis técnico, estético e emotivo, e a Maillart,
com as lajes cogumelo e as surpreendentes pontes.
Antes de chegar à arquitetura contemporânea, não deixa de saudar
Van der Velde e Victor Horta pelos
esforços em retirar os enfeites que
mascararam a arquitetura conservadora que dominou a Europa no século 19 e, segundo Giedion, restabeleceu a "moralidade na arquitetura".
Nos capítulos dedicados ao urbanismo, fica clara a dificuldade, na
Europa, de se concretizarem projetos urbanísticos no período em torno da Segunda Guerra Mundial, e
Giedion crava uma sentença: "O futuro da arquitetura está indissoluvelmente ligado ao planejamento
urbano". Por isso, sente-se, em seus
comentários, a ausência de Brasília,
inaugurada antes da quarta edição.
A recuperação econômica dos países europeus, principalmente a partir da década de 80, com o autor já
morto, possibilitou importantes intervenções em Barcelona, Berlim,
Lisboa, permitiu as grandes obras de
Mitterrand em Paris, e, mais recentemente, verifica-se o gigantesco
boom das cidades chinesas.
Hoje, quando se observa uma retomada, denominada por críticos de
arquitetura de modernismo tardio,
torna-se muito oportuno o lançamento da edição em língua portuguesa de "Espaço, Tempo e Arquitetura", que mereceu uma criteriosa
apresentação de Ana Luiza Nobre.
Cabe ressaltar o alcance do texto
de Giedion, ao observar criticamente a educação de hoje, direcionada à
especialização cultural, enquanto a
educação das emoções é negligenciada, de modo que se chega ao paradoxo curioso de que sentir, atualmente, se tornou mais difícil do que
pensar, e arremata: "Nossa consciência cultural pode despertar repentinamente, porém não sem antes
um desejo intenso de uma mudança
interior e jamais sem uma preparação direcionada para o futuro".
Ruy Ohtake é arquiteto.
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