São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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+ política

O moralismo -com sua ética do medo e reação automatizada- e os tucanos -que opõem a atuação dos políticos à dos cidadãos comuns- ignoram que o público e o privado cada vez mais se confundem

O chão ensaboado do príncipe

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ética dos políticos soa, para a maioria de nossos concidadãos, como um oxímoro. Seria uma ética com desconto, deficitária, complacente, ante a verdadeira ética: a da vida privada. Esse é um fenômeno brasileiro (em nosso país, as virtudes são privadas, e os vícios, públicos), de Terceiro Mundo (idem) e, cada vez mais, mundial (ibidem). Vivemos a descrença na ágora, no espaço público. "Res publica" ou bem comum valem cada vez menos, na prática. Mas as coisas não são tão simples.
Ao político depreciado, chama-se maquiavélico. No meio milênio que se passou desde "O Príncipe", Maquiavel simbolizou o político sem escrúpulos, na expressão, que não é dele, segundo a qual os fins justificariam os meios. Mesmo políticos "maquiavélicos" o atacaram: Frederico, o Grande, escreveu um "Anti-Maquiavel". Mas a academia mudou sua leitura de Maquiavel no séc. 20.


No trânsito como na política, quando os brasileiros não sabem onde ir, viram à direita


O primeiro passo talvez tenha sido dado por Max Weber, em sua obra tão citada por Fernando Henrique Cardoso e seus publicistas, que é "Ciência e Política - Duas Vocações". Weber distingue uma ética com vistas a resultados e outra que respeita os valores. A primeira seria uma ética da responsabilidade, e a segunda, de princípios. Políticos consideram os resultados prováveis de suas ações. Cientistas estimam os valores.
Por extensão, passou-se a transferir o que Weber diz dos cientistas para os homens privados em geral. Essa transferência não é, aliás, nada óbvia. Em síntese, e eis o discurso tucano em seu esplendor, as exigências de respeito incondicional a valores aplicam-se mais a indivíduos privados do que a homens públicos. Pois o bem da sociedade muitas vezes decorre de ações que não são as melhores para uma ética convencional. Por aí, reencontramos a famosa frase de Mandeville: "Vícios privados, benefícios públicos". Ela talvez seja o axioma do sucesso das sociedades anglo-saxãs.

Efeitos da escolha
Merleau-Ponty, sem citar Weber, retoma o tema nos anos 50. Em sua "Nota sobre Maquiavel", diz que a única ética digna desse nome é a que considera os efeitos de uma escolha. Radicaliza. A chamada ética da pessoa privada, ou de princípios, desaparece. Maquiavel deixa de ser o pensador da antiética, para se tornar o grande pensador ético.
Talvez a razão disso seja simples: o príncipe, para Maquiavel, ocupava o lugar de quem, por mandar, por não ter autoridade nenhuma sobre si, não tem garantia do resultado de suas ações. Nós, cidadãos, estamos sob a lei, que nos diz em que resultarão nossos atos. O príncipe não tem essa certeza. Anda em chão ensaboado.
Daí que ele não possa simplesmente seguir a lei. Ela não o tranqüiliza, não o protege. E é essa nossa situação, hoje, cada vez mais. Não temos mais rede de segurança: vivemos na corda bamba. Isso é assustador. Quinhentos anos invejaram a condição do príncipe; hoje, quando ela é nosso comum quinhão humano, ela não é mais invejável.
Em que erra o discurso tucano? Num ponto: a idéia de que a condição do governante seja diferente, por natureza, da do "homem privado". Não conheço quase ninguém que, ao agir, se paute só pela ética de valores. Pais e filhos, antes de agirem, meditam os efeitos de seus atos. Pensam se vão perder o emprego. Estamos cada vez mais, todos, no mesmo mundo.
Daí o erro também de muitos governantes. Podem abrir o jogo, por que não? Não é preciso infantilizar a sociedade. As pessoas sabem que se age com vistas a fins. Confortáveis, talvez, os tempos em que não havia liberdade: os súditos, puerilizados ("sub-dictus": estar debaixo do dizer alheio), viviam na segurança. O preço da liberdade talvez não seja a eterna vigilância, udenista visão superegóica, mas a eterna insegurança.
E no entanto, em nosso país, o discurso público, da mídia e das pessoas privadas, é o do moralismo -de um moralismo que nem mesmo seus porta-vozes praticam. Ganharíamos com mais sinceridade. Porque um traço fascinante e apavorante de nosso tempo é que estamos todos no mesmo barco. Ficou difícil distinguir a natureza do homem público e a do privado. O público é o risco (por vezes, o anseio) do que é privado e íntimo.
Costumo dizer que, no trânsito como na política, quando os brasileiros não sabem onde ir, viram à direita. A ética convencional é também uma forma nossa de reação automatizada. Quando nos sentimos em risco, bradamos nossa dignidade ética. Até assassinos têm curiosa ética, que pune o estupro. Mas é uma ética reativa, defensiva, não afirmativa -uma ética do medo, não da construção do futuro. Talvez, no fundo, saibamos que ela é uma máscara. Talvez tenhamos medo de nossa verdadeira face, que no entanto é a única que pode construir novos laços sociais. A ética não está pronta. Está por se construir e talvez não se oponha mais tanto quanto antes à política.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP e autor de "A Sociedade Contra o Social" (Companhia das Letras), entre outros.


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