São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005 |
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+ sociedade O discernimento entre bem-estar e ética torna-se inviável numa sociedade pautada pela satisfação pessoal Para além da felicidade
LUIZ FELIPE PONDÉ
A perfeição moral é esquecer-se de si mesmo, não resultado de práticas políticas. Pensando na longa experiência da igreja atravessando impérios, esperava-se mais daqueles que confundiram teologia social com militância. Uma das coisas mais interessantes da discussão entre igreja e ciência é a afirmação de que a igreja não "dialoga". A ciência "dialoga" com quem? O mercado acadêmico-científico cotidiano é um monólogo. No horizonte, o único objeto formal da bioética é o "barateamento" dos bens biotecnológicos, e não um questionamento de sua validade. Aquilo que os sociólogos chamam de "teorias latentes" indica que todo mundo só quer ser "biofeliz". A doutrina -o "Compêndio da Doutrina Social da Igreja" (Paulinas), publicado no Vaticano em 2004 e fruto do trabalho do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, cujo objetivo é uma sistematização doutrinária da posição da igreja em termos de problemas sociais, políticos e morais que afetam o mundo na modernidade- é um texto que se move sobre uma lâmina, porque o universo moderno se tornou pouco receptivo ao seu magistério. O discernimento entre bem-estar e ética não é viável numa sociedade devorada pela eficácia do imperativo utilitarista. É difícil o diálogo com esse silencioso contrato social que alimenta a dogmática progressista. O texto soa herético, mesmo que permeado por enunciados "progressistas". Essa dificuldade transcende a doutrina e toca a aporia que define o lugar "moderno" da igreja em sua busca por uma atitude que não produza má publicidade teológica e que ao mesmo tempo a resgate da alienação no terror pós-Revolução Francesa. Amor em tempos modernos Discutimos as relações amorosas, experimentamos muito e somos cínicos. Quanto mais "entendemos", menos realizamos. Enquanto o casamento se encontra sob severas críticas entre heterossexuais, homens e mulheres devendo ser monotonamente idênticos e solitários, os homossexuais (os últimos dos românticos) buscam a normatização do seu amor. Homens e mulheres se afogam na dissolução dos gêneros, gerando uma hiperatividade fóbica. Cada vez mais "conscientes" e mais insuportáveis. Sem o "mercado da reprodução humana" (venda de células germinativas ou produtos "highbiotech") a família homossexual seria estéril. A experiência "bruta" do sexo permaneceria condenada a nunca ser algo além disso. Não haveria rompimento do solipsismo fisiológico do desejo. A dinâmica natural heterossexual, por meio da qual o amor transcende suas secreções, seria relativizada do ponto de vista da cultura e da lei: no sexo heterossexual, secreções, prazer e amor (re)fundam o infinito no corpo do próximo ser humano gerado. Racionalidade material unida a um princípio gerativo de mistério, que, por sua vez, no plano da microfisiologia social, funda a célula máxima onde se dá o enfrentamento do risco que é a experiência humana, preservando a diferença não solipsista. A indissolubilidade do matrimônio seria um recurso contra a confusão entre amor e efemeridade do desejo, discernimento necessário para a real experiência da parceria para além de qualquer metafísica do prazer. Existem coisas mais sérias na vida do que a felicidade. Outra frente problemática é a tradicional querela da vocação universal da mensagem cristã versus o limite da pluralidade de crenças. Essa é afirmada incessantemente ao longo da doutrina. Cristo é um "direito" que temos, não ferramenta de violência confessional. Creio que a tendência (isso não é só marca da igreja) a resolver a aporia teológica e moral da pluralidade por meio da racionalidade publicitária é hoje insuperável. Essa é a única forma de afirmar, ao mesmo tempo, o direito a "ser de outra religião" e "buscar a conversão". Nesse sentido, a neutralidade técnica da mídia transforma-se na Meca da teologia pastoral em larga escala. A casuística informacional é mais eficaz do que entrar em querelas intelectuais sobre o relativismo. Ainda que submetida ao imperativo da "comunicação", a doutrina seguramente levanta questões importantes para quem queira ir além da fina casca de gelo sobre a qual nós, modernos, somos obrigados a correr para sobreviver. Luiz Felipe Pondé é professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de, entre outros, "Crítica e Profecia - Filosofia da Religião em Dostoiévski" (ed. 34). Texto Anterior: + política: O chão ensaboado do príncipe Próximo Texto: Ver Helena em toda mulher Índice |
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