São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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UMA LIÇÃO DE MÚSICA

Reprodução
Fotografia de Cindy Sherman, sem título, de 1977


FERNANDO SANTORO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Safo, considerada pelos gregos a décima musa, é, para a posteridade, "A Poetisa", o modelo clássico de lirismo e da poesia feminina. Como disse Estrabão: "Safo foi um ser extraordinário, e não temos conhecimento, em tempo algum, por mais remoto, de mulher que fosse capaz de rivalizar com ela, um pouco que fosse, em matéria de poesia".
Isto é certo para toda a antigüidade clássica; para a idade contemporânea poderíamos trazer-lhe algumas companheiras, mas ninguém para suceder sua majestade. Pois já não compete com as belezas mortais, foi raptada por Apolo e canta ao seu lado entre as demais divindades da poesia.
De fato, Safo já guarda em nossa memória tudo de que precisa um mito: a distância, o mistério, o acesso indireto, uma pletora de lendas e a beleza inconteste na pouca superfície que se nos mostra. A distância, cada vez maior e inalcançável, dos séculos. O mistério, escondido nas lacunas da obra e dentro de cada vestígio de poema que nos sobrou. O acesso indireto, seja pelas fontes secundárias distantes vários séculos do tempo em que os poemas foram compostos, seja pela própria materialidade frágil dos papiros, que hoje, para serem lidos, requisitam desde a mais alta tecnologia arqueológica até a mais experiente perícia filológica.
As lendas, como as de seus amores não correspondidos, as da fundação da primeira escola intelectual para mulheres no sexto século antes de Cristo, as das suas jovens alunas, as mais belas de Lesbos... E, sem dúvida, a coroa brilhante dessa majestade musical: eles, os poemas -mesmo que de Safo conheçamos apenas algumas dezenas de fragmentos esparsos e pouquíssimos poemas que possam ser apreciados como peças mais íntegras de seu lirismo.
[O helenista inglês] Martin West faz as contas: "Nas modernas edições os fragmentos são numerados acima de 264, porém muitos desses não contêm uma única palavra original, apenas 63 contêm algumas linhas completas, apenas 21 alguma estrofe completa e apenas três até agora dão-nos poemas suficientemente próximos da completude para serem apreciados como estruturas literárias".
A conta parece afunilar-se como uma mina que guarda em seu fundo as pedras mais preciosas. Pois eis que foi encontrada mais uma! Uma quarta ametista para a coroa, ou para o colar que orna "os seios floridos" da musa, "iokolpon", literalmente "seios de violeta" (seios que o editor sustenta com colchetes). Sabe o leitor a alegria do garimpeiro? Mas a pedra já não nos chegou bruta, veio lapidada pelo editor, Martin West [que a publicou no mês passado no "Times Literary Supplement"], que fez um verdadeiro trabalho de ourives, incrustando no mesmo suporte duas peças separadas do mesmo poema, cada peça encontrada em um papiro diferente, papiros distantes entre si por seis séculos de existência.
Conhecíamos, de fato, uma parte do poema, mas não uma parte "íntegra", por assim dizer, isto é, não alguns versos ou estrofes, mas apenas as últimas palavras de cada verso. Pois são assim os fragmentos, papiros rasgados ao meio, comidos pelas bordas com o passar dos séculos. Este rasgo de papiro foi reunido numa coleção chamada Oxyrhynchus Papyri, publicada por Grenfell e Hunt, no início do século 20, e está no tomo 15, nº 1.787.
No ano passado, porém, os paleógrafos Michael Gronewald e Robert Daniel conseguiram ler um outro papiro mais antigo, do século 3º antes de Cristo, conservado na Universidade de Colônia. Trata-se do mais antigo manuscrito que conhecemos com poemas de Safo. E, felicidade do acaso, lá estava o outro lado, também incompleto, mas encaixando muito bem no pedaço já conhecido.
Apresentamos ao leitor o resultado da remontagem, em tradução para o português. Não se trata ainda do poema inteiro; pelo papiro mais recente (mas que conhecemos primeiro) o poema teria pelo menos 15 estrofes de dois versos. A recomposição nos dá seis desses 15 dísticos. Mas no-los dá numa posição central, que não apenas ilumina o sentido e a estrutura de composição do poema como um todo, como também, por si só, já pode ser lido com uma integridade que lhe dá uma beleza toda própria.
O poema tem a forma de uma lição de música, a maestrina ensinando suas discípulas, que trata carinhosamente de filhas, meninas "paides", literalmente, crianças. A lição tem três aspectos: primeiro, a exortação ao esmero da técnica instrumental, à dedicação à lira; segundo, traz o conteúdo de uma lição de vida, a sua brevidade e o advento da velhice; terceiro, apresenta um mito, quer dizer, um pouco da cultura tradicional. Nestes três aspectos aparecem também três elementos musicais: a melodia, a dança, a poesia.
O aspecto mais desenvolvido daqueles três é o segundo: a lição da existência no tempo. Suponho que o primeiro aspecto tenha sido mais desenvolvido antes do trecho, e o terceiro depois. O terceiro, que aparece nos dois últimos dísticos do nosso trecho, trata do mito do rapto de Tifônio. Aurora, encantada com sua beleza, o toma como esposo e pede a Zeus que lhe conceda a imortalidade. Zeus a concede, mas Aurora esqueceu de pedir a conservação da juventude e, assim, Tifônio segue envelhecendo por todas as eras. É a própria imagem da velhice como, para nós, o nome de Matusalém.
Trata-se de uma estrutura lírica clássica que faz um mito tradicional ser interpretado e vivido como uma experiência pessoal, íntima. A marca inconfundível da poetisa está nos dísticos terceiro e quarto, que traçam com serenidade o contraste entre a beleza perdida e a dor da perda.

Fernando Santoro, 36, é professor de filosofia antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Poesia e Verdade" e "Imaculada"(ambos pela ed. Sette Letras).


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