São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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EM UMA NARRATIVA HABITADA POR PERSONAGENS MODESTAS E COM FREQÜENTES REFERÊNCIAS PICTÓRICAS, O AUTOR FRANCÊS RECUPERA, EM "VIDAS MINÚSCULAS", O PODER EVOCATÓRIO DAS PALAVRAS

Pierre Michon - Minúsculas e Maiúsculas

por Leyla Perrone-Moisés

Afinal, ainda há Escritores. Num tempo em que, depois de se ter decretado a morte da literatura, fala-se dela até demais como atividade midiática e rentável -ainda há Escritores. Escritores, isto é, aquela raça que se acreditava extinta no fim do século passado, pessoas que levam a sério a missão incerta de explorar o espaço estreito entre o mundo múltiplo, mais do que nunca mutante, e as palavras, sempre insuficientes e pouco remuneradoras. Pierre Michon é um homem dessa espécie, um anacronismo teimoso, suspenso entre um sublime fora de época e um ridículo que, por ser consciente, é quase heróico.
Michon não é um novato nem um desconhecido. Embora discreto, e lento na escrita de suas obras, estas já lhe valeram o Prêmio France Culture (1984), o Prix de la Ville de Paris (1996), o Prix Louis Guilloux (1997) e o Prix Décembre (2002). Suas obras já foram traduzidas para o inglês, o alemão, o italiano e o holandês. No Brasil, publica-se agora um livro seu, escrito em 1984: "Vidas Minúsculas". Não é o primeiro. Outro livro, "Rimbaud, o Filho", foi publicado em 2000 (tradução de Juremir Machado da Silva, editora Sulina).
Para ter uma idéia justa do que é a literatura para Michon, podemos partir de um de seus livros mais recentes: "Corps du Roi" (Paris, Verdier, 2002). Esse pequeno grande livro é uma celebração da literatura, através de alguns Grandes Nomes (que ele escreve com maiúsculas em "Vidas Minúsculas" como neste, que poderia se chamar Vidas Maiúsculas).
A idéia é simples e brilhante: "O rei, como se sabe, tem dois corpos: um corpo eterno, dinástico, que o texto entroniza e sagra e que chamamos arbitrariamente de Shakespeare, Joyce, Beckett, Dante, mas que é o mesmo corpo imortal vestido com trapos provisórios; e ele tem outro corpo mortal, funcional, relativo, o trapo que vai para a podridão, que se chama apenas Dante e usa um gorrinho em cima do nariz adunco, somente Joyce e então tem anéis e olho míope, espantado, somente Shakespeare e é um homem de posses com uma golinha elisabetana".
A partir de fotografias, cartas ou dados biográficos, Michon explora as coincidências e divergências entre os dois corpos de escritores: Beckett, Faulkner, Flaubert e outros, igualmente reais e desigualmente comuns. Beckett, numa fotografia de Lutfi Özkök, datada de 1961, é um verdadeiro milagre: a coincidência entre os dois corpos do rei, o homem e a obra. Beckett sabe que é rei. "Sabe também que essa operação mágica é mais fácil para ele do que para Dante ou Joyce, porque, diferentemente destes, ele é belo: belo como um rei, o olhar gelado, a ilusão do fogo sob o gelo, os lábios rigorosos e perfeitos, o nolli me tangere que ele ostenta de nascença; e, cúmulo do luxo, belo com estigmas, a magreza celestial, as rugas cavadas com o caco de Jó, as grandes orelhas de carne, o look rei Lear."
Faulkner, diferentemente, é um "erro da Criação". Numa foto de James R. Cofield, datada de 1931, ele é uma "aparição frontal, maciça e franca do artista como jovem imprestável, jovem imperator, jovem farmer [...], uma cara ao mesmo tempo consternada e triunfante, poderosa e frouxa, intratável mas infinitamente corruptível -enorme e fútil como o são, escreveu ele, os elefantes e as baleias".


Enquanto muitos escritores atuais se contentam com retratar o mundo em que vivem, numa espécie de documentário romanceado, Michon quer mais


Flaubert, que só ostentou um belo corpo em sua juventude, é retratado por Michon como um "corpo de madeira" (trocadilho entre "roi" e "bois", que se perde em português), uma espécie de palhaço gordo e bigodudo que, numa carta a Louise Colet, contou seu momento de glória secreta, na madrugada em que terminou de escrever a primeira parte de "Madame Bovary". Segundo Michon, o único modo de salvar a vida desse homem maníaco, que passava seu tempo burilando frases, seria imaginar que ele mentiu, que nunca foi um monge ou um trabalhador forçado. Que ele era, na verdade, um ocioso, que ficava olhando o Sena ou a sobrinha comendo geléia, as vacas e as mulheres, e que só de tempo em tempo, para fazer uma gracinha e ocupar os críticos parisienses, escrevia algumas frases perfeitas que lhe vinham de modo fácil e natural. Vê-se aí, para além do leitor apaixonado, o ficcionista inventivo e cheio de humor que é Michon.
Se ocupo tanto espaço para falar deste livro é porque ele é complementar e esclarecedor, com relação ao livro recém-traduzido. Como indica o título, e o subtítulo "narrativa", e não "romance", "Vidas Minúsculas" tenta ressuscitar, pela força da palavra, pessoas comuns e desaparecidas, da família camponesa do narrador ou seus companheiros de vida.
Como aqueles narrados nas cartas de uma das personagens, são "acontecimentos ínfimos e felicidades anãs". Mas Pierre Michon os narra num estilo preciso e suntuoso. "A Bela Língua" -diz o narrador- "não dá a grandeza, mas a nostalgia e o desejo da grandeza". Tendo nascido numa região em que se falava um patoá camponês, elevar-se até a Bela Fala era um ideal de promoção. A bela língua e a bela fala lhe são revelados na escola, através dos clássicos franceses, ou pela boca da mãe, que também freqüentou a escola e recitava versos de Racine. Mundos ameaçados de desaparecimento: o mundo camponês tradicional e o mundo do ensino da literatura como tradição, numa escola pública unificada desde o tempo de Napoleão. Percorrendo sua modesta linhagem familiar, o narrador reconhece suas próprias afinidades e diferenças com relação aos parentes: "Nossos destinos diferem pouco, nossas vontades são desprovidas de rastros, nossa obra, não". Desde o início, "Vidas Minúsculas" é semeado de referências literárias. Os nomes de escritores e de obras estão na raiz e no desenvolvimento da vocação literária do narrador: Rimbaud, Mallarmé, Flaubert, Faulkner são seus modelos declarados. Assim, esta narrativa protagonizada por personagens modestas é escrita numa linguagem nobre, numa prosa habitada pela poesia, como queria Mallarmé. São também freqüentes as referências pictóricas, que mais tarde se desenvolveriam em outros livros do autor. Van Gogh é talvez o principal. Há um poder de visualização nessa prosa. As descrições são cheias de cores, as personagens aparecem quase sempre enquadradas, detidas à contraluz numa porta, numa janela, ou iluminadas numa paisagem. Das numerosas personagens do livro, a mais marcante é o abade Bandy, presente desde a infância do narrador e reencontrado muitos anos depois. Bandy foi responsável pela vocação literária do narrador, tanto quanto os grandes autores lidos. Esse abade pouco canônico era dotado da graça da palavra: "Sob sua língua, as sílabas se decuplicavam, as palavras estalavam como chicotes impondo ao mundo submeter-se ao Verbo; a amplidão das finais, culminando com o exato retorno do padre no esvoaçar de ouro da casula, no Dominus vobiscum, era um baixo insidioso de tam-tam fascinando o inimigo, o numeroso, o profuso, o criado". Era a essa graça do Verbo que o jovem escritor aspirava.

Os dois corpos do abade
Poderíamos dizer que o abade também tinha "dois corpos": quando dizia a missa, um corpo sagrado, não pela religião, mas por seu talento natural de ator, por sua perfeita dicção do latim e do francês, pela elegância de seus gestos, pelas cores esfuziantes de seus paramentos. Finda a missa, pelo garbo com que partia em sua motocicleta ao encontro das amantes. E um corpo corruptível quando, no segundo e derradeiro encontro, aparece acanalhado pelos anos, pela vida rude do campo e a bebida. É para resgatar essas vidas minúsculas que o narrador, finalmente, escreve: "Que a morte de Dufourneau seja menos definitiva porque Élise se lembrou dela ou a inventou; e que a de Élise seja aliviada por estas linhas. Que em meus verões fictícios, o inverno deles hesite. Que no conclave alado que se reúne em Cards, sobre as ruínas do que poderia ter sido, eles estejam". Enquanto muitos escritores atuais se contentam com retratar o mundo em que vivem, numa espécie de documentário romanceado, Michon quer mais. Quer elevar o real a um plano incorruptível. Mas não se trata de arte pela arte nem de uma exploração vanguardista da linguagem por ela mesma. Trata-se de uma crença no poder evocatório e oracular da palavra, como nos velhos tempos do romantismo alemão. Uma crença constantemente ameaçada pela irrisão, corroída pelo ácido moderno da ironia. "O mundo dispensa a prosa", diz ele. "Corpos do Rei", depois de tratar dos grandes escritores, termina da seguinte forma: "O céu é um homem muito grande. Ele é pai e rei em nosso lugar, ele faz isso bem melhor do que nós". Tanto "Corpos do Rei" como "Vidas Minúsculas" convergem para a pessoa de Michon. Mas não há nenhuma egolatria ou vaidade nessa convergência. Assim como o narrador de "Vidas Minúsculas", lutando com a página em branco ou com a sombra intimidadora dos Grandes Autores, acaba drogado e louco de hospício, o escritor de "Corpos do Rei" acaba escorraçado de um restaurante parisiense, caído bêbado na calçada, olhando as longínquas estrelas. Não por acaso, neste último livro, ele refere também Fernando Pessoa, um daqueles reis destronados que "riu dos reis e dos não-reis" e, "prisioneiro do Sublime, dominou-o com uma mão-de-ferro".

Fim do sublime
Pessoa, como outros grandes do século 20, sabia que o tempo do sublime já tinha terminado. Michon se pergunta para que servem ainda os escritores: "Servir, aceitamos. Mas onde está a guerra, onde está Deus, onde o serralho de 99 esposas, onde os reinos e os apanágios? Onde está a humanidade sofredora e regenerada, onde as revoluções e as caridades apaixonadas, onde está Jean Valjean? Ora, só resta a prosa, o texto que dói e faz gozar dessa dor, o texto que mata" ("Corpos do Rei").
Talvez Michon seja um dos últimos escritores a buscar a expressão literária como um valor inestimável e a achar ainda, como Flaubert ou Proust, que ela merece todos os sacrifícios. Mas ele sabe, como escritor atual, que essa velha religião quase não tem mais fiéis. "A seriedade com que consideramos a literatura nos dá um aperto no coração", escreve ele em "Corpos do Rei". Sua escrita é a prática obstinada de uma forma vista como antiquada. Michon é herdeiro de uma dinastia decaída que ele continua a honrar, cuidando da língua como de uma coisa preciosa, buscando demonstrar o quanto a escrita literária pode suprir a distância entre o desejo de grandeza e a pequenez do mundo, entre a aspiração à eternidade e a condição de mortal. Um Escritor, em suma.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).

Vidas Minúsculas
216 págs., R$ 29,00 de Pierre Michon. Trad. Mário Laranjeira. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, tel. 0/xx/21/11/ 3661-2881).



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