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"Um Imenso Portugal" reúne, entre outros, artigos do historiador
Evaldo Cabral de Mello publicados na seção "Brasil 500", do "Mais!"
Dilemas da invenção do Brasil
Ronaldo Vainfas
especial para a Folha
Certa vez o próprio Evaldo Cabral
de Mello me contou que somente
gostava de escrever livros quando descobria um novo corpus
documental, uma novidade que pudesse
iluminar aspectos desconhecidos, ou
quase, da história. Da história do Brasil
antigo, poder-se-ia dizer -o colonial e
imperial- e da história pernambucana
em particular, o que se confirma mesmo
na sua vasta e consagrada obra.
Eis por que, para quem conhece bem as
obras do autor, não deixa de causar espanto, à primeira vista, este livro de ensaios, "Um Imenso Portugal", que reúne
alguns prefácios, diversas resenhas publicadas em suplementos literários da
grande imprensa, alguns artigos avulsos.
Material já publicado, porém disperso,
que valeu a pena ser reunido.
Evaldo Cabral de Mello fez bem em sair
um pouco do seu estilo de historiador fidelíssimo a temas monográficos solidamente alicerçados em pesquisa empírica, pois o livro acaba dando excelente
mostra da própria obra do autor e, mais
que isso, de sua maneira de lidar com a
história. Nele sobressai sua preocupação
quase obsessiva com o detalhe factual,
sua erudição em matéria de pesquisa arquivística e bibliográfica, sua argúcia em
relacionar a história colonial luso-brasileira com a portuguesa e a européia, sua
clareza em refletir teoricamente sobre as
armadilhas inerentes ao ofício de historiador. Além disso, o livro exibe a notável
capacidade de Evaldo em alternar escalas
de observação com a mesma perícia, do
nível macro ao microanalítico.
Reunindo 36 textos publicados em diversos tempos e por variados motivos,
"Um Imenso Portugal" é obra de ecletismo temático formidável. Mas a leitura
cuidadosa da obra permite identificar algumas linhas de força muito presentes
na bibliografia do autor. A primeira dessas linhas de força, que aliás foi uma
grande questão de nossa melhor bibliografia histórica -a de Gilberto, Sérgio
Buarque, Caio Prado-, diz respeito à
construção do Brasil.
No caso de Evaldo, historiador mais
afinado com a pesquisa recente e por isso
mesmo crítico do nacionalismo, melhor
seria dizer "invenção" do Brasil -nem
tanto construção dele. Uma invenção
que, nos primórdios, exprimia um certo
prolongamento de Portugal, como tinham advertido, de modos diferentes,
Freyre e Sérgio Buarque.
No "Imenso Portugal" essa questão,
sem dúvida generalizante, vem amiudada na análise de certos costumes alimentares, como a persistência da farinha de
trigo sobre a mandioca, entre os colonos,
até 1630, ou de diversos modelos culturais aqui adaptados. Por outro lado, é
questão que atravessa o livro todo, em
vários planos, pondo em cena bela novidade no tocante à história política: o dilema radical que, em momentos cruciais,
viveu a Coroa portuguesa entre se mudar
para o Brasil ou entregá-lo para outros
países europeus. Um dilema que talvez
tenha se insinuado no ocaso dos Avis
veio à tona no século 17, em meio aos
conflitos ibéricos e pernambucanos, e
reapareceu com vigor na virada do 18 para o 19. É desse dilema que tratam vários
ensaios sobre o início da União Ibérica,
as guerras seiscentistas ou sobre a gestação da idéia de um império luso-brasileiro, esboçada por d. Luís da Cunha, ainda
antes de Pombal, adensada por d. Rodrigo de Souza Coutinho e posta em prática
por d. João 6º a partir de 1808.
Entrementes o autor discorre sobre diversos aspectos de nossa história colonial, trazendo contribuição como sempre original. É o caso da discussão sobre
certo enigma iconográfico -a ausência
das senzalas nos quadros dos pintores
nassovianos- ou da microbiografia do
mulato José, escravo pernambucano que
se fez de blasfemo para cair na teia do
Santo Ofício, preferindo as galés del rei,
como pena, ao cativeiro do senhor
opressivo. É o caso dos textos sobre navegação litorânea, a antiga cabotagem,
entre sumacas e barcaças. É o caso de
discussões preciosas sobre nossa história
institucional, a exemplo da maior ou menor influência do "republicanismo holandês" no modelo camarário luso-brasileiro, no século 17, ou do "mimetismo
revolucionário" da revolução pernambucana de 1817, que andou tentada a
adotar o modelo constitucional norte-americano. Não resta dúvida de que o
leitor viajará por diversos caminhos de
nosso passado, alguns iluminados, outros escuros, partilhando a mesa de nossos colonos d'outrora, observando como
viviam, alcançando o que pensavam, o
que fizeram ou deixaram de fazer.
A história desse Portugal que se prolonga no Brasil e vice-versa se faz ainda
presente em reflexões sobre historiografia. No fundo do quadro, a discussão sobre como se construiu ou inventou o
Brasil -colonial e escravocrata-, e nisso o autor navega entre diagnósticos,
utopias ou balanços realizados por outros: Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre,
Charles Boxer. Tudo entremeado com
breves textos sobre historiografia ou teoria da história, a exemplo do ensaio sobre Collingwood, do texto sobre a coletânea de entrevistas "As Muitas Faces da
História" ou do ensaio sobre recente
obra de Hélio Jaguaribe. Neles Evaldo
externa, de quando em vez, seu ceticismo diante da capacidade de o historiador dominar seu objeto. Não por acaso,
aponta "o fosso entre a história que se
pratica e a história que se teoriza", entre
outros comentários um tanto melancólicos, por vezes exagerados, mas inevitáveis. Os ensaios teórico-metodológicos
entram salteados no livro com pertinência, pois mostram como e por que o autor valoriza as matérias que estuda ou os
detalhes que sublinha.
Clássicos
Imenso Portugal prolongado no Brasil, como a "jangada de pedra"
de Saramago. O antepenúltimo passo é a
discussão sobre a "interiorização da metrópole", texto em que Evaldo revaloriza
a obra clássica de Oliveira Lima sobre d.
João 6º, "et pour cause". O penúltimo
passo é o comentário sobre a publicação,
décadas depois de escrito, do grande livro de Eduardo d'Oliveira França, "Portugal na Época da Restauração", obra
que Evaldo festeja, com justiça, aproveitando para discutir a própria reinvenção
de Portugal a partir da revolta brigantina, urdida numa corte d'aldeia, em Vila
Viçosa. O último passo é texto sobre o livro de Jacqueline Hermann, "No Reino
do Desejado", versando nada menos que
sobre a construção do sebastianismo em
Portugal.
E assim Evaldo termina o livro, com
texto intitulado "À Espera da Redenção
Nacional" -no caso, a lusitana-, ele
que, no ensaio "Fabricando a Nação",
iniciara com frase sugestiva: "O nacionalismo brasileiro não precedeu, sucedeu, a criação do Estado nacional". De certo
modo -e isso vai por minha conta-,
desde os Avis, depois com os Braganças,
o caso português não foi muito diferente.
Talvez por isso Portugal tenha largado
na frente da expansão européia no século
15 e tenha logrado escapar, no século 17,
da voracidade anexionista dos Habsburgos espanhóis.
Ronaldo Vainfas é professor de história moderna
na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor
de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed.
Campus), entre outros.
Um Imenso Portugal
368 págs., R$ 33,00
de Evaldo Cabral de Mello. Editora 34 (r. Hungria,
592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-6777).
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