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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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Coletânea mostra como a atuação de Zacarias de Góis e Vasconcelos, influente personagem do Império, antecipa contradições do jogo político brasileiro

Um conciliador liberal

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Ou a oposição quer governar ou não. Se não quer governar (...), então está dispensada de formular o seu programa. Mas, se a oposição quer ser governo, é do seu rigoroso dever, quando ataca o programa ministerial, exibir ao mesmo tempo o seu (...)". Ligeiramente adaptado para uma república presidencialista, o comentário acima bem poderia ter saído da boca de um governista mais impaciente, quando ainda o PT estava placidamente sentado na cadeira da oposição.
O enunciado, porém, assim como o problema que denuncia, é bem mais velho do que as querelas políticas recentes. Ele remonta a 1861 e a outros embates partidários, nomeadamente àquele que opunha os liberais e o gabinete presidido por Luís Alves de Lins e Silva, o duque de Caxias. Quem saía em defesa do governo era o então "conservador moderado" Zacarias de Góis e Vasconcelos (1815-1877), um personagem de primeira linha da vida política do segundo Império, cujo contributo para o processo de construção e consolidação do Estado nacional foi substantivo.
O legado escrito de maior relevo desse respeitado e polêmico político oitocentista, um livro intitulado "Da Natureza e Limites do Poder Moderador" (1862), bem como outras reflexões suas, contidas em quatro discursos parlamentares e num opúsculo publicado no Rio de Janeiro em 1872, encontram-se agora à disposição do leitor. A editora 34 acaba de publicá-los dentro da bem concebida coleção "Formadores do Brasil", série que trouxe já a público textos selecionados de, entre outros, Bernardo Vasconcelos, Hipólito José da Costa e Frei Caneca.
É quase desnecessário mencionar que a produção intelectual de Góis e Vasconcelos, do mesmo modo que a produção intelectual de parte assinalável da elite política imperial brasileira, é pouquíssimo conhecida nos dias que correm. Daí a importância do instrutivo estudo introdutório que abre a coletânea, a cargo da pesquisadora Cecília H. de Salles Oliveira. O leitor menos familiarizado com os bastidores políticos do período pode, por meio desse ensaio, conhecer um pouco acerca da vida de Vasconcelos, um baiano de Valença que cedo entrou para as lides partidárias (22 anos) e rapidamente ascendeu nos quadros do Partido Conservador. Pode, igualmente, avaliar a sua importância no cenário político do Império, onde o valenciano ocupou os cargos de presidente de Província, deputado, senador e, por três vezes, entre 1862 e 1868, de presidente do Conselho de Ministros. Pode, ainda, conhecer como o pensamento nacional (Pereira Santos, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Taunay, Alberto Venâncio Filho, Pedro Calmon, Túlio Vargas) "construiu" o personagem Zacarias de Góis e Vasconcelos ao longo do tempo. E pode, por fim, pesar os motivos que levaram um político que permaneceu por mais de duas décadas ligado aos conservadores a se converter num "liberal moderado", a fundar um novo partido, a liderar uma "conciliação liberal" e a atuar como uma peça-chave na crise política e ministerial de 1868, que, para alguns estudiosos, daria início à "derrocada da monarquia".

Trajetória tortuosa
Vasconcelos, é bom que se diga, está longe de ser o único homem público do período a empreender tão tortuosa trajetória política. A bem da verdade, como sugere a pesquisadora Cecília Oliveira, suas idiossincrasias e suas idas e vindas entre liberais e conservadores talvez apontem mais para as incongruências e contradições da vida política local do que, como querem certos biógrafos do estadista, para o gradativo amadurecimento de uma "consciência liberal". É por isso, sem dúvida, que o seu percurso -percurso, se não modelar, ao menos comum entre a elite imperial brasileira- ainda tem muito a nos ensinar sobre as forças que movem o nosso jogo político.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP). É autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


Zacarias de Góis e Vasconcelos
320 págs., R$ 32,00

de Cecília Helena de Salles Oliveira. Editora 34.


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