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São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 2003

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A gravidez da sombra

"Tudo o que se ensinava sobre esse assunto (a maternidade) era aliás confuso e contraditório: o filho era um dom de Deus; ele era também a justificação de atos considerados grosseiros e repreensíveis, mesmo entre esposos, quando a fecundação não vinha justificá-los." Marguerite Yourcenar, em "Souvenirs Pieux" ("Lembranças Venerandas", ed. Gallimard), debruça-se sobre mentalidades das últimas décadas do século 19 e das primeiras do seguinte.
Ela recorda também um primo longínquo, "deputado da direita, que enchia a Câmara com seus sermões em honra da natalidade francesa". Em período de efervescências nacionalistas e guerreiras, era preciso que as populações aumentassem para que os exércitos crescessem. Isso pode explicar algumas criações curiosas, surgidas no universo simbolista, que se centram nos mistérios do nascimento. Não será, decerto, razão suficiente: outras ramificações da sensibilidade devem ter também estimulado os artistas daqueles tempos.
Seja como for, deixaram obras expressivas dessa obsessão pela natalidade. Assim, o tríptico "A Torrente", que Léon Fréderic, pintor belga, terminou em 1899. Nele, uma infinidade de bebês se mistura com águas e cisnes, derramando-se em direção ao espectador. No Brasil, Pedro Weingartner criou um outro tríptico, de clima deletério, sobre o infanticídio, "La Faiseuse d'Anges" ("A Fazedora de Anjinhos", título original em francês, 1908, Pinacoteca do Estado, SP). Mas nunca a questão atingiu tanta grandeza quanto em 1919, na ópera "A Mulher sem Sombra", de Richard Strauss.

Cântico - O Imperador e a Imperatriz se amam, mas ela é um espírito e não projeta sombra. A sombra é própria aos humanos, ela significa que as mulheres podem engravidar. A Imperatriz tem um prazo para adquirir uma sombra; se não o conseguir, seu marido morrerá petrificado. Uma mortal termina trocando a sombra (e a fertilidade) por beleza e luxos. No fim, porém, a Imperatriz se comove diante da mortal arrependida e renuncia, por piedade, à fecundidade. Tudo acaba bem, com um coro celebrando o amor que procria, cantado por crianças ainda por nascer!
Esse conto simbólico, iniciático como a "Flauta Mágica", herdeiro direto da música de Wagner, foi posto em cena, recentemente, na Ópera da Bastilha, em Paris, pelo americano Bob Wilson. A contenção, a clareza e esse modo de transformar o movimento em imobilidade, que o levaram a radicalizar o caráter estático de "Pelléas" em 1987, entram agora em conflito com as expansões líricas, com o colorido rutilante de Richard Strauss e sobretudo com as extravagâncias do libreto, feito de aparições espetaculares, de mágicas, nais quais peixes voam para a frigideira. Mas o universo autista e nítido de Wilson faz sobressair a comoção fraterna diante do sofrimento, inspirada por Schopenhauer, que é um dos sentidos profundos da obra.

China - "A Mulher sem Sombra" alternou, na Ópera da Bastilha, em Paris, com "Turandot", de Puccini. As duas óperas, por sinal, possuem mais afinidades do que se costuma pensar. A montagem de "Turandot" retomou uma solução recorrente em escolhas que se pretendem ousadas: transpor a história para um universo carcerário, imenso campo de concentração. Mas tudo funcionou e a música foi servida em modo esplêndido. Hei-Kyung Hong, coreana, cantou o papel de Liù. Mostrou-se uma cantora de primeiríssima linha, pelo timbre magnífico, pela musicalidade sem falhas.

Rússia - No teatro do Châtelet, em Paris, foi apresentada outra ópera de clima simbolista: "O Galo de Ouro", de Rimski-Korsakov. A montagem, confiada a uma equipe japonesa, foi um deslumbramento. O maestro Kent Nagano fez as vozes suntuosas e a orquestra soarem com uma poesia de filigrana. Tudo tinha a intensidade e a leveza dos sonhos.
Ao mesmo tempo, no palácio Garnier, a verve de Jérôme Savary juntou seu humor ao de Rossini, numa "Cenerentola". Paris, hoje, no quesito ópera, oferece um banquete que nenhuma outra cidade parece igualar.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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