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A gravidez da sombra
"Tudo o que se ensinava sobre esse assunto (a maternidade) era aliás confuso e contraditório: o filho era um
dom de Deus; ele era também a justificação de atos considerados grosseiros e repreensíveis, mesmo entre esposos, quando a fecundação não vinha justificá-los."
Marguerite Yourcenar, em "Souvenirs Pieux" ("Lembranças Venerandas", ed. Gallimard), debruça-se sobre
mentalidades das últimas décadas do século 19 e das
primeiras do seguinte.
Ela recorda também um primo longínquo, "deputado
da direita, que enchia a Câmara com seus sermões em
honra da natalidade francesa". Em período de efervescências nacionalistas e guerreiras, era preciso que as populações aumentassem para que os exércitos crescessem. Isso pode explicar algumas criações curiosas, surgidas no universo simbolista, que se centram nos mistérios do nascimento. Não será, decerto, razão suficiente:
outras ramificações da sensibilidade devem ter também
estimulado os artistas daqueles tempos.
Seja como for, deixaram obras expressivas dessa obsessão pela natalidade. Assim, o tríptico "A Torrente",
que Léon Fréderic, pintor belga, terminou em 1899. Nele, uma infinidade de bebês se mistura com águas e cisnes, derramando-se em direção ao espectador. No Brasil, Pedro Weingartner criou um outro tríptico, de clima
deletério, sobre o infanticídio, "La Faiseuse d'Anges"
("A Fazedora de Anjinhos", título original em francês,
1908, Pinacoteca do Estado, SP). Mas nunca a questão
atingiu tanta grandeza quanto em 1919, na ópera "A
Mulher sem Sombra", de Richard Strauss.
Cântico - O Imperador e a Imperatriz se amam, mas ela
é um espírito e não projeta sombra. A sombra é própria
aos humanos, ela significa que as mulheres podem engravidar. A Imperatriz tem um prazo para adquirir uma
sombra; se não o conseguir, seu marido morrerá petrificado. Uma mortal termina trocando a sombra (e a fertilidade) por beleza e luxos. No fim, porém, a Imperatriz
se comove diante da mortal arrependida e renuncia,
por piedade, à fecundidade. Tudo acaba bem, com um
coro celebrando o amor que procria, cantado por crianças ainda por nascer!
Esse conto simbólico, iniciático como a "Flauta Mágica", herdeiro direto da música de Wagner, foi posto em
cena, recentemente, na Ópera da Bastilha, em Paris, pelo americano Bob Wilson. A contenção, a clareza e esse
modo de transformar o movimento em imobilidade,
que o levaram a radicalizar o caráter estático de "Pelléas" em 1987, entram agora em conflito com as expansões líricas, com o colorido rutilante de Richard Strauss
e sobretudo com as extravagâncias do libreto, feito de
aparições espetaculares, de mágicas, nais quais peixes
voam para a frigideira. Mas o universo autista e nítido
de Wilson faz sobressair a comoção fraterna diante do
sofrimento, inspirada por Schopenhauer, que é um dos
sentidos profundos da obra.
China - "A Mulher sem Sombra" alternou, na Ópera da
Bastilha, em Paris, com "Turandot", de Puccini. As
duas óperas, por sinal, possuem mais afinidades do que
se costuma pensar. A montagem de "Turandot" retomou uma solução recorrente em escolhas que se pretendem ousadas: transpor a história para um universo
carcerário, imenso campo de concentração. Mas tudo
funcionou e a música foi servida em modo esplêndido.
Hei-Kyung Hong, coreana, cantou o papel de Liù. Mostrou-se uma cantora de primeiríssima linha, pelo timbre magnífico, pela musicalidade sem falhas.
Rússia - No teatro do Châtelet, em Paris, foi apresentada outra ópera de clima simbolista: "O Galo de Ouro",
de Rimski-Korsakov. A montagem, confiada a uma
equipe japonesa, foi um deslumbramento. O maestro
Kent Nagano fez as vozes suntuosas e a orquestra soarem com uma poesia de filigrana. Tudo tinha a intensidade e a leveza dos sonhos.
Ao mesmo tempo, no palácio Garnier, a verve de Jérôme Savary juntou seu humor ao de Rossini, numa "Cenerentola". Paris, hoje, no quesito ópera, oferece um
banquete que nenhuma outra cidade parece igualar.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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