São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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O país sem pré-história
A falha arqueológica do Brasil

Marcelo Leite/Folha Imagem
Pintura rupestre do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí


por Marcelo Leite enviado especial ao Piauí voz de Niède Guidon soa divertida, ainda que cansada, quando fala de seus desafetos nos feudos da arqueologia brasileira. Estava certa a agente de turismo Rosa Trakalo ao dizer que a melhor hora para entrevistar a "doutora" seria de carona com ela em suas andanças por São Raimundo Nonato, no sudeste do Piauí. Guidon, 67, dirigindo uma picape Nissan Frontier cabine dupla, conta com tração nas quatro rodas para enfrentar qualquer atoleiro da caatinga verde de inverno (estação de chuvas), e não tem travas na língua.
0Ar condicionado ligado, garrafa de água mineral Perrier acondicionada entre o banco e o freio de mão, a arqueóloga dispara tranquila seus ataques a adversários como André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais, contra o qual move processo por danos materiais: "Eu só fiz isso porque assim ele gasta dinheiro com advogado, para aprender a falar besteira".
0O recurso à Justiça em meio a uma disputa científica -as polêmicas datações do sítio piauiense Boqueirão da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara-pode parecer drástico, mas é sintomático. Autoritarismo é uma qualificação corriqueira, quando se trata de caracterizar esse campo acadêmico, que só vingou depois da Segunda Guerra. Um setor de pesquisa aparentemente sem estatura para enfrentar duas das questões mais importantes da arqueologia mundial, suscitadas pela pré-história americana: quando, afinal, o homem chegou ao Novo Mundo; e qual o grau de densidade populacional e de complexidade cultural na Amazônia antes da colonização.

A discussão sobre a ocupação das Américas consiste em estabelecer se a espécie humana se espalhou pelo continente na época atual, o Holoceno, ou no leistoceno, a Idade do Gelo


Para o bioarqueólogo Walter Neves, 42, da USP, o caso Guidon versus Prous representa "a ponta do iceberg de uma comunidade de arqueólogos que é autoritária". Ele descarta uma interpretação corrente, que atribui esse traço a duas décadas de governos militares, preferindo apontar raízes endógenas para as arbitrariedades -"despreparo e mediocridade". De bermuda e camiseta, cabelos compridos, a figura de Neves contrasta na cantina do Instituto de Biociências da USP com a do historiador e arqueólogo André Prous, 55, em suas calças e camisa sociais. De comum têm a barba grisalha e um paciente trabalho sobre ossos humanos escavados do sítio de Lapa Vermelha, em Lagoa Santa, MG (veja mapa na pág. 8), provavelmente os mais antigos das Américas. No momento, dividem ainda a curadoria de duas exposições arqueológicas que serão montadas no Parque Ibirapuera, em São Paulo, a propósito dos 500 anos de colonização do Brasil. Prous se nega a dar declarações sobre o processo. A ação foi desencadeada por um artigo seu sobre o povoamento da América na "Revista da USP" de agosto de 1997, como parte de um dossiê por Walter Neves e Marta Mirazón Lahr, hoje na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Segundo Neves, Niède Guidon foi convidada a escrever no mesmo número e declinou. Em seu texto, Prous alinhavava certezas e dúvidas sobre vários sítios arqueológicos sul-americanos candidatos a derrubar a chamada barreira de Clóvis (11.200 anos, idade dos restos encontrados nesse sítio do Novo México, na década de 30). De um modo geral, a grande discussão sobre a ocupação das Américas consiste em estabelecer se a espécie humana se espalhou pelo continente na época atual, o Holoceno (de 10 mil anos para cá), camada geológica superficial de que foi retirada a maioria desses restos arqueológicos, ou se a ocupação adentra as profundezas do Pleistoceno, a Idade do Gelo (10 mil a 1,6 milhão de anos atrás).

Preguiça gigante
O Museu do Homem Americano de São Raimundo Nonato é uma das obras surpreendentes plantadas por Niède Guidon na caatinga piauiense. A poucas centenas de metros da entrada da cidade, na estrada que vem de Petrolina (PE) e Remanso (BA), o prédio moderno e deserto está pintado em tom pastel de terra adequado ao terreno e à paisagem, assim como a sede da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham, no centro) e as instalações impecáveis do Parque Nacional da Serra da Capivara, a 30 km, patrimônio cultural da humanidade desde 1991. O museu foi inaugurado em 1998 e ganhou em novembro passado o Centro Cultural Sérgio Motta, durante visita do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na exposição, painéis afirmam que a entrada nas Américas teria ocorrido há 70 mil ou 80 mil anos, pois estaria estabelecida a presença humana no sítio da Pedra Furada há 60 mil anos, quando a região era coberta por floresta tropical úmida e por ela circulavam mamutes, tigres de dente-de-sabre e preguiças gigantes. Além disso, não necessariamente teria sido utilizada apenas a Beríngia, passagem então aberta no que hoje é o estreito de Bering, entre os extremos da Ásia e da América. "Considero que (a América) é um continente muito grande, que vai de pólo Sul a pólo Norte, e que não se pode imaginar que foi povoado única e exclusivamente por um caminho", afirma a arqueóloga. "Eu acho que nós vamos um dia poder evidenciar claramente que o povoamento americano se deu por vários caminhos e a várias épocas." O que Niède Guidon sustenta é que o homem pode ter chegado primeiro à América do Sul, por mais de uma via marítima, e daí se espalhado -inclusive para o Norte, uma idéia científica e geopoliticamente perturbadora, tanto quanto a da Amazônia como um centro de civilização.

Precipitação e premonição
O artigo de Prous resenha as objeções de praxe às datações obtidas no sítio Boqueirão da Pedra Furada: tanto os artefatos de rocha lascada quanto os carvões encontrados, que Guidon considera obra de humanos, podem ser resultado de processos naturais. Por muitos toscos, é possível que os "instrumentos" nada mais sejam que o produto da queda e esfacelamento de blocos. Igualmente as "fogueiras" -nada provaria que seus carvões não tenham sido produzidos por incêndios florestais. Tais ambiguidades minam a credibilidade da interpretação oferecida por Guidon, acredita Prous, que também critica "afirmações precipitadas e nunca verificadas" e "as tentativas sistemáticas de apresentar Pedra Furada como o lugar onde qualquer tipo de vestígio é mais antigo". Para o arqueólogo francês radicado em Minas, "mesmo achados que mereceriam melhor crédito e um exame criterioso acabam sendo colocados "a priori" sob suspeita". Seu texto continha, ainda, uma espécie de premonição: "No Brasil, particularmente, onde cada arqueólogo costuma ser "dono" de um território de pesquisa e onde não existe uma tradição de debate aberto e crítica mútua e pública, os pesquisadores costumam apresentar sobretudo relatórios incompletos, fazendo afirmações que não são sustentadas pela documentação e nem podem ser verificadas. Mesmo as propostas que parecem absurdas à comunidade científica geralmente não são respondidas nas revistas ou nos congressos científicos, fazendo com que os pré-historiadores estrangeiros acreditem que todos os brasileiros endossam sem restrições as teses mais discutíveis". Numa tentativa de ganhar o reconhecimento estrangeiro, em dezembro de 1993, Niède Guidon colheu resultados amargos. Entre dúzias de arqueólogos levados a São Raimundo Nonato para um seminário sobre Pedra Furada estavam os norte-americanos David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay, alguns dos mais destacados questionadores do paradigma de Clóvis, por seu envolvimento nas escavações de sítios aceitos como mais antigos, Monte Verde, no Chile, e Meadowcroft, nos Estados Unidos (veja mapa na pág. 8). Mesmo considerando o encontro um marco da arqueologia americana -"estimulante, intenso, iluminador e por vezes inteiramente desconfortável", escreveu Meltzer em 24 de junho de 1995 na revista de divulgação "New Scientist"-, de volta ao Norte os três redigiram um "paper" desalentador para a publicação técnica "Antiquity" (edição de dezembro de 1994). Eles não aceitavam a análise morfológica e estatística de 595 artefatos líticos (de pedra) efetuada por Fabio Parenti, um italiano que dedicara a Pedra Furada seu doutorado pela Universidade de Paris-1, sob orientação de Guidon.

Motivos pessoais e utilitários
Na direção da picape Nissan, a arqueóloga passa pela entrada da gruta calcárea da Toca do Garrincho, onde afirma ter encontrado dentes humanos de 15 mil anos (4.000 a mais que a Luzia de Prous e Neves), e comenta com desdém o juízo dos colegas estrangeiros. "Não temos nada a aprender com os americanos", diz. "Eu tenho uma formação de primeira classe e não são os meus colegas americanos que vão poder me dar lição." Afirma que só no Brasil se endeusa toda e qualquer universidade dos Estados Unidos e insinua que seus críticos têm motivação utilitarista: "Eu vi o próprio Dillehay apresentando num congresso a data de 33 mil anos (para o sítio de Monte Verde), mas ele mesmo disse depois que preferia não falar mais, porque levou muita porrada na cabeça e ficou com medo de ficar sem dinheiro".
Quanto a André Prous, Guidon diz acreditar que a motivação é de ordem pessoal, pois ela, uma brasileira, o teria superado em seu próprio país (França), ao obter o posto oficial de pesquisadora que ele nunca ocupou. Daí o questionamento na Justiça, e não pela via normal das revistas e dos congressos. O efeito colateral, no entanto, parece ser o de desestimular o debate científico, como deixou claro Walter Neves em arguição pública de concurso para livre docência na USP, em 7 de janeiro, quando o examinador João Stenghel Morgante o questionou sobre datações mais antigas que a de Luzia, vale dizer, sobre as discutíveis datas obtidas por Guidon em Pedra Furada: "Não sou um homem rico, por isso tenho sido extremamente cauteloso".

A análise do crânio de Luzia aponta pelo menos uma entrada mais antiga no continente americano, anterior ao limite estabelecido pelo sítio de Clóvis (12 mil anos), por grupos humanos aparentados com africanos e australianos, e não com asiáticos


A cautela de Walter Neves é mais retórica que prática. Ele repete para quem quiser ouvir que as datas de São Raimundo Nonato e a hipótese de migrações marítimas não passam de "pirotecnias" arqueológicas. Com sua reputação de gosto pela polêmica, dias antes do concurso de livre docência na USP comentava-se nos corredores do Instituto de Biociências que "correria sangue" na arguição, desta vez entre ele e geneticistas de populações humanas. Dois renomados professores de universidades federais compunham a banca, Francisco Salzano (RS) e Sérgio Danilo Pena (MG), cujos estudos de comparação estrutural de DNA (a molécula-código dos genes) de populações atuais indicam que o "Adão americano" migrou da Ásia (Sibéria Central) para a América, numa única leva. O trabalho mais famoso de Neves, uma análise morfológica do crânio de Luzia, aponta conclusões divergentes: pelo menos uma entrada mais antiga no continente, anterior ao limite de Clóvis (12 mil anos), realizada por grupos aparentados com africanos e australianos, não com asiáticos. O debate entre ele e Pena teve momentos de genuína picuinha, como a grafia do nome deste numa referência daquele e a pronúncia do nome do filósofo da ciência Karl Popper (tanto Pena quanto Neves estavam errados), mas se manteve dentro dos limites do aceitável, em matéria de malícia e maledicência acadêmicas. "No ano 2000, ainda se fala de fósseis versus moléculas", lamentava o arguidor. "É típico de geneticistas fazer afirmações sem base etnográfica", retrucava o candidato, de gravata e rabo-de-cavalo.

"New archaeology"
Neves não economizou críticas aos arqueólogos, tampouco. Esse campo de pesquisa, diagnostica, tem quatro décadas de atraso no Brasil. A maior parte do trabalho desenvolvido ainda segue a escola descritiva européia, que começou a ser questionada nos anos 60 pela "new archaeology" norte-americana, depois conhecida como arqueologia processual -aquela que se preocupa em reconstituir dedutivamente, a partir dos sítios, processos sociais globais dos grupos que o ocuparam, e não apenas colecionar e classificar fragmentos. Segundo o bioarqueólogo, o pior ano da reação contra essa nova arqueologia se deu em 1985, quando foram escorraçados de suas instituições quatro pesquisadores que ensaiavam os métodos modernizados: o próprio Neves e Solange Caldarelli, do Instituto de Pré-História da USP, Tania Andrade Lima, do Museu Nacional, e Irmhild Wüst, da PUC de Goiás.
O pesquisador da USP rende homenagens em um de seus artigos sobre Luzia ao francês Paul Rivet, que reinou sobre o Museu do Homem de Paris e foi um dos primeiros a especular sobre semelhanças físicas entre o "homem de Lagoa Santa" e aborígenes australianos. Rivet era o modelo de Paulo Duarte, tido como um dos pais da arqueologia brasileira (ao menos na USP) e ponto de divergência de uma rede que até hoje marca essa área.
Depois de trabalhar com o antropólogo francês em Paris, Duarte recebeu de Rivet subvenção de 1 milhão de francos para criar no Brasil um laboratório de pesquisa sobre o homem americano. Em 1952 surgia a Comissão de Pré-História de São Paulo, presidida por Duarte, que daria origem a um importante trabalho de identificação e preservação de sambaquis (sítios com conchas e ossos) que culminaria na primeira legislação federal específica para proteção do patrimônio arqueológico, a lei 3.924, de 1961. Antes disso, em 1959, fundara e dirigira o Instituto de Pré-História (IPH).
Por obra de Rivet e Duarte vieram pesquisar no Brasil dois jovens franceses, Joseph Emperaire e Annette Laming-Emperaire. Paulo Duarte também foi responsável pela iniciação em arqueologia de duas professoras secundárias do interior paulista, Niède Guidon e Luciana Pallestrini (diretora do IPH quando saíram Neves e Caldarelli). Mais à frente, Guidon e André Prous trabalhariam sob a orientação de "madame" Emperaire, autora da escavação que descobriu em 1975 os ossos de Luzia em Lagoa Santa (MG).
A arqueóloga francesa morreu em 1977, envenenada por gás num hotel de Curitiba, quando se dirigia do Uruguai para novos trabalhos de campo em Minas. Duarte terminou cassado por motivos políticos, em 1969, fato que levaria Sérgio Buarque de Holanda a pedir sua aposentadoria, em solidariedade.
O historiador e arqueólogo Pedro Paulo Abreu Funari, 40, correlaciona a decadência da "arqueologia humanista" de Paulo Duarte com a ascensão de um outro casal estrangeiro na arqueologia brasileira, desta vez de norte-americanos: Betty Meggers e Clifford Evans, que já haviam escavado na foz do Amazonas na década de 40. Coincidência ou não, eles aportaram de volta ao país em abril de 1964 e, em seis meses, tinham travado contato com muitas autoridades de Brasília, o suficiente para render-lhes a fama de trabalhar para a CIA, famigerada agência de informações dos Estados Unidos. O fato é que foram incumbidos de montar um plano para cinco anos (1965-1970), logo batizado de Pronapa (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas). Nascia a confraria dos pronapistas, cujos membros se tratavam por "irmãos" e viriam a dominar a arqueologia brasileira por décadas, por meio do CNPq, mãe de todas as verbas.

A norte-americana Betty Meggers marcou uma geração de especialistas, e não só arqueólogos, com um clássico determinista de 1971, o livro "Amazônia: homem e cultura em um falso paraíso"


"Arqueologia é ocupação de espaço, reconhecimento de território, geoestratégia, conhecer o território onde pode haver guerrilha", interpreta Pedro Paulo Funari. Mas o historiador não exclui a hipótese de que Meggers e Evans tenham apenas se aproveitado da imagem confiável, aos olhos de um governo militar, de neutros pesquisadores americanos para tomar posse de um gigantesco feudo ao sul do Equador. Como lembra o próprio Funari, Meggers se dava muito bem com intelectuais de esquerda, como o antropólogo Darcy Ribeiro. O reinado de Betty Meggers abrangeu sobretudo a Amazônia. Terminado o Pronapa, veio o Pronapaba (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica), que teve no ex-militar Mário Ferreira Simões um fiel continuador do determinismo ambiental de Meggers, no Museu Paraense Emílio Goeldi. A norte-americana, até hoje ativa e influente no Instituto Smithsonian, de Washington, marcou toda uma geração de especialistas em floresta amazônica -não só arqueólogos- com um livro clássico de 1971, "Amazonia: Man and Culture in a Counterfeit Paradise" (Amazônia: homem e cultura em um falso paraíso). Os escritos de Meggers fazem muitas referências às péssimas condições para trabalho de campo na floresta -calor, umidade, insetos. Há quem acredite que essa experiência negativa conformou sua visão da Amazônia como um ambiente inóspito para o homem. Por essa concepção pessimista, a floresta acomodada sobre solos pobres não teria como dar sustentação a populações maiores, com agricultura desenvolvida. O padrão atual dos povoamentos teria sido a norma desde sempre: pequenos grupos, alguns seminômades, dependentes de agricultura rudimentar baseada na mandioca, assim como da caça e da pesca escassas. A exceção seriam as várzeas, em que os sedimentos provenientes dos Andes fertilizam a faixa alagável de rios barrentos. Nessas regiões teriam vicejado umas poucas culturas mais complexas, como as produtoras das cerâmicas Marajoara e Santarém, mas ainda assim de forma instável e por incursões de povos de fora da Amazônia, provenientes do Caribe ou dos Andes.

O rio da Dúvida
Segundo Eduardo Goes Neves, 33, do Museu de Arqueologia e Etnografia (MAE-USP), o controle do acesso aos sítios era exercido por Mário Simões, até sua morte em 1985, por intermédio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de cuja autorização depende legalmente cada arqueólogo, para poder iniciar suas escavações. Um dos primeiros a sofrer restrições, por não rezar pelo credo pronapista, foi José Proenza Brochado (aliás desligado da PUC do Rio Grande do Sul, em 1999, medida que outros arqueólogos interpretaram como politicamente motivada). Mas quem furou o cerco foi outra norte-americana, com um sobrenome ilustre: Anna Curtenius Roosevelt, bisneta de Theodore Roosevelt, que, em 1914, depois de ter sido presidente dos Estados Unidos, se aventurara pelas selvas de Mato Grosso com o coronel Cândido Rondon, para mapear o rio da Dúvida. Eram muitas as pistas de que a ocupação da Amazônia pré-colonização não ocorrera exatamente segundo o figurino empobrecido de Betty Meggers. Havia relatos de cronistas do século 16, como Gaspar de Carvajal, que acompanhara o espanhol Francisco de Orellana numa expedição em busca do Eldorado e falava de cidades nas margens amazônicas e de hordas de guerreiras (as "amazonas" que emprestariam mais tarde o nome ao rio). A elaboração das cerâmicas sugeriam sociedades capazes de comportar tal especialização, muito mais complexas e hierarquizadas do que grupos esparsos no Falso Paraíso. A própria Anna Roosevelt, em escavações anteriores na região venezuelana do Orinoco, havia topado em Parmana com indícios de agricultura de milho, cujo teor nutritivo é mais compatível com o sustento de grandes agrupamentos humanos. Havia, ainda, os grandes aterramentos ("tesos") da ilha de Marajó, encontrados às dúzias. E as famosas terras-pretas, manchas de solo fértil em plena terra firme (ou seja, longe de várzeas), resultantes da acumulação de dejetos durante longas fases de ocupação humana, um alvo preferencial de escavações arqueológicas. As densidades dos agrupamentos indígenas pós-colonização não foram mais capazes de dar origem a jazidas de terras-pretas, o que faz supor populações muito mais densas nos séculos precedentes. Segundo Goes Neves, do MAE-USP, o geógrafo norte-americano William Denevan, da Universidade da Califórnia em Berkeley, chegou a calcular em até 5,6 milhões de pessoas a população teoricamente possível da Amazônia. Aos poucos, o paradigma sobre a ocupação da Amazônia parece pender para o lado de Anna Roosevelt. Seu maior trunfo até o presente são datações de fragmentos cerâmicos dos sítios de Taperinha e Pedra Pintada, no Pará, que estavam dormindo nas gavetas de instituições norte-americanas como o Smithsonian, pois não combinavam com os dogmas do determinismo ambiental. Alguns haviam sido escavados pelo geólogo Charles Frederic Hartt -em 1885. Por meio do método de termoluminescência, Roosevelt estabeleceu que alguns daqueles cacos tinham mais de 7.000 anos, a mais antiga cerâmica já encontrada nas Américas, constatação irreconciliável com a noção de que as sociedades que as produziram eram incursões provisórias e instáveis de outras partes, mais "desenvolvidas". "As teses de Meggers são mais adequadas para o discurso de preservação da Amazônia do que as de Anna Roosevelt e as nossas", afirma Goes Neves, aduzindo mais um argumento contra o alinhamento de Betty Meggers aos governos militares, período em que foram plantadas as bases da devastação da floresta nos anos 80. "Amazonino (Mendes) e (Gilberto) Mestrinho podem ler e dizer que já foi (intensamente) ocupada no passado." O pesquisador narra já ter atraído a ira de antropólogos por ter apurado, com métodos arqueológicos, que um grupo indígena ocupara tradicionalmente área menor do que a que lhe estava sendo atribuída para efeitos de demarcação de terras.

Sem milho em Marajó
Roosevelt sofreu seus reveses, porém. Segundo Goes Neves, ela baseou suas escavações na ilha de Marajó sobre a premissa de que os vários tesos eram contemporâneos e construídos por uma sociedade de milhares de pessoas, organizada como um cacicado e provavelmente sustentada pela agricultura do milho. Em uma apreciação da arqueologia amazônica escrita para uma coletânea recente ("Archaeology in Latin America", de Gustavo Politis e Benjamin Alberti, 1999), Goes Neves afirma que "o relatório preliminar do trabalho no Teso dos Bichos não traz prova conclusiva do cultivo intenso de milho, ou mesmo de que o milho fosse um gênero alimentício importante em Marajó durante o período da Fase Marajoara".
Assim como a arqueóloga Roosevelt já se deu mal em uma de suas batalhas, apesar de no atacado estar vencendo o conflito de paradigmas com Betty Meggers, seria também equivocado concluir que ela está do lado do Bem e que usa somente recursos e métodos civilizados.
Nessa espécie de guerra santa, Roosevelt já demonstrou disposição de defender com garras e dentes seu território acadêmico, como sentiu na pele este repórter quando estagiava na revista alemã de divulgação científica "Bild der Wissenschaft". Após sucessivas entrevistas com Meggers e sua adversária, em que uma era solicitada a responder às objeções da outra, Roosevelt deu por interrompida a colaboração com a investigação e enviou carta ao diretor da revista denunciando o que considerava incompetência, viés e desinformação do jornalista. A reportagem foi publicada em novembro de 1989, sem novas contestações da arqueóloga.
Nada se conhece de comparável, entre os métodos de Roosevelt, a outra denúncia feita por ela em 1995 e citada por Goes Neves no volume de 1999. Ela revelou que Mário Simões, o colaborador de Meggers, havia obtido datas de até 5.500 anos para cerâmicas encontradas em sambaquis próximos da foz do Amazonas, da chamada Fase Mina. Publicadas apenas em português, essas datações realizadas nos laboratórios da Smithsonian teriam sido descartadas por Simões e Meggers porque não combinavam com sua perspectiva conceitual.
A crônica de arbitrariedades, golpes baixos e fofocas da arqueologia brasileira é rica, com várias camadas de compadrio, paroquialismo e truculência. Denunciar e pedir a punição de peixes menores em busca de águas próprias parece ser procedimento comum. O próprio Eduardo Goes Neves, que em janeiro de 1995 assinou com Walter Neves (nenhum parentesco) carta à Folha elogiando reportagem de Ricardo Bonalume Neto sobre críticas aos achados do sítio Boqueirão da Pedra Furada, viu o diretor de sua instituição -o Museu de Arqueologia e Etnografia da USP- receber fax "agressivo" de Niède Guidon, que também havia enviado fax diretamente para Walter Neves, do Instituto de Biociências da USP, notificando-o de sua intenção de "entrar na Justiça com uma ação por difamação". Por mais que essas disputas -evidentemente menores- mereçam ficar de fora das exposições sobre os 500 anos do Brasil, o fato é que elas emperram o avanço da investigação sobre duas questões científicas importantes, ambas relevantes para a identidade nacional. Curioso é que a maioria dos envolvidos parece concordar no diagnóstico de que as questões só serão solucionadas com mais e melhor trabalho de campo.

Melhorar as amostras
Guidon, por exemplo, acusa seus adversários de falar muito e fazer pouco: "O que eu acho é que não temos ainda informações suficientes para dizer que foi assim ou não foi assim. Nós temos de ter a cabeça aberta para pesar tudo que tem. O que está faltando é mais trabalho de campo. A arqueologia americana perde muito tempo com discussões e trabalha pouco no campo". Seu desafeto André Prous conclui seu artigo na "Revista da USP" com outra exortação: "Quem quiser trabalhar o problema das origens do homem nas Américas deverá procurar novos locais que ofereçam condições melhores para a interpretação, ou descobrir novos métodos para resolver as dúvidas surgidas nos "velhos" sítios. São frustrantes o tempo e os esforços despendidos para tentar obter, nas mesmas condições, resultados sempre duvidosos. A ênfase deve ser na melhoria qualitativa e não na multiplicação quantitativa das pesquisas".
Sobre a questão amazônica, Eduardo Goes Neves fecha seu texto no volume de 1999 dizendo que "o valor heurístico da dicotomia várzea/terra firme precisa ser testada com trabalho arqueológico adicional em áreas de terra firme, considerando os dados etnográficos que indicam que algumas sociedades de várzea subexploram consistentemente os recursos de seus hábitats". Walter Neves, em seu concurso de livre docência na USP, afirmou que as hipóteses sobre povoamento das Américas estão baseadas em um número muito pequeno de esqueletos. "Precisamos melhorar nossa amostra. Vou voltar a ser arqueólogo", avisou.
Mãos à obra, então. O Brasil não pode esperar outros 500 anos para saber o que acontecia por aqui antes de encontrar-se com o colonizador europeu.


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