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+ arte
Eisenstein secreto
Fátima Gigliotti
de Paris
O cineasta letão Sergei Eisenstein (1898-1948), diretor do clássico "O Encouraçado Potemkin" (1925),
um dos filmes mais citados entre os melhores da história do cinema, permanece um personagem enigmático
para Jean-Claude Marcadé, professor do Instituto de
Estética e História da Arte da Universidade de Paris 1.
Marcadé tenta desvendar parte do enigma no prefácio
ao livro "S.M. Eisenstein - Desenhos Secretos", recentemente lançado na França pela editora Seuil, que traz
uma seleção de 152 desenhos "eróticos" inéditos de Eisenstein, realizados entre 1931 e 1948.
Selecionados entre cerca de 600 desenhos guardados
por Andrei Moskvine, colaborador do cineasta em
"Ivan, o Terrível" (1939-1942), esses desenhos secretos,
segundo Marcadé, "são a expressão de fantasmas e desejos inconfessos da vida privada de Eisenstein, que ele
apenas sugeriu nos seus filmes".
Sem nunca ter estudado pintura ou desenho, Eisenstein foi caricaturista e "ilustrador" da "Gazeta de São
Petersburgo" e do jornal "Notícias da Bolsa", em 1915,
quando morou em São Petersburgo para estudar arquitetura. Assinava os desenhos sob o pseudônimo de Sir
Gay. Até 1923, quando começou a dedicar-se integralmente ao cinema, foi desenhista de figurinos e cenários
de peças, inclusive no teatro de Meyerhold.
Mas nunca abandonou os desenhos -estima-se que
ele tenha feito cerca de 4.000. Desenhava nos intervalos
de filmagem, no trem, numa mesa de bar. Para Marcadé, Eisenstein teve de atender em seu cinema à censura
do Estado e ao puritanismo da cultura russa. "Ele foi
mais livre ao desenhar", diz na entrevista a seguir. "O
desenho é como um ato político, uma maneira de se salvar dessa realidade coercitiva".
Como foram selecionados os desenhos?
O critério foi estético e cronológico. Há vários períodos da obra de Eisenstein representados na seleção,
como os desenhos da sua passagem pelo México
-embora tenha sido editado o livro "Desenhos Mexicanos" (1931-32), nunca houve uma publicação de
desenhos tão "hard". Há neles uma cronologia com
perspectiva histórica, dos motivos bíblicos (Eva, anjos), passando pela zoofilia, mitologia, até a presença
de figuras políticas e artísticas de seu tempo.
Que influências estéticas ecoam nessa seleção?
Certamente de Orozco, com a experiência mexicana,
de Picasso, evidente na releitura erótica das touradas
que ele faz em uma série de desenhos, e de Walt Disney, por quem ele tem uma admiração confessa. Há
uma relação, talvez a principal influência, com os desenhos de Jean Cocteau, que Eisenstein conheceu
nos anos 20 quando esteve em Paris. Mas, ao contrário de Cocteau, que trabalha de maneira grosseira
elementos da realidade, Eisenstein prefere utilizar a
hipérbole, o fantástico, o sexo tem proporções enormes, tão irreais que chegam a provocar um efeito de
humor no grotesco, incomum em Cocteau.
O que há do cineasta Eisenstein nos desenhos?
Num primeiro olhar, a "montagem de atrações".
Nos desenhos, sim, há pênis, vaginas, um erotismo
muito violento, mas totalmente construído, elaborado. Além disso, a forma de erotismo que ele usa é a
encenação. Por exemplo, ele tem uma "queda" pelo
sadomasoquismo. Mas sua visão é teatral, o sadomasoquismo não é apenas o ato sexual imediato, é uma
encenação, há esse aspecto lúdico. Há também a presença constante das máscaras. E há os travestis, a inversão sexual, claro, mas que também é uma inversão com relação aos códigos habituais.
E o que há dos desenhos no cinema de Eisenstein?
A construção do épico, por exemplo, os personagens
de seus filmes são maiores do que a própria natureza, a representação usa recursos da acrobacia às vezes, movimentos grandiosos para obter esse efeito,
constante nos desenhos. Sabe-se que Eisenstein pensava em fazer um filme pornográfico. Há desenhos
que saíram desse projeto, com cenas de copulação.
"Ivan, O Terrível", apenas para dar um exemplo,
possui sequências de erotismo até pouco metafóricas, como a cena da dança, na qual o herói está travestido, ou a da vitória, na qual ele recebe leite de um
camponês. Nos desenhos, leite e esperma estão ligados na representação do êxtase, do orgasmo.
Os filmes seriam a parte "nobre" da obra de Eisenstein,
enquanto os desenhos seriam a parte "chula"?
Em absoluto. Os desenhos são tão elaborados, há neles uma montagem de elementos tão variados, que é
até difícil de classificá-los de pornográficos. Na pornografia há um efeito erótico imediato, destinado a
agir diretamente sobre os sentidos, o que, definitivamente, não ocorre com os desenhos de Eisenstein,
passíveis de leituras em vários níveis. Pode-se dizer,
isso sim, que ele se sentia mais livre ao desenhar.
Por quê?
No cinema, ele teve de atender à censura do Estado e
do puritanismo das culturas soviética e russa, o que
o levou a uma autocensura também. O desenho é como um ato político, uma maneira de fugir, de se salvar dessa realidade "normal" e coercitiva, é como
um exorcismo. Ele tem uma obra prolífica, desenha
com uma virtuosidade e inventividade de elementos
fantásticos, mas são desenhos realmente secretos, ele
inclusive dava para as pessoas. O jornalista russo
Victor Scholovsky, seu amigo, recusou o presente de
alguns desenhos por considerá-los provocantes, o
que mostra o puritanismo da sociedade russa mesmo entre os intelectuais. Os desenhos apresentam situações-limite, é verdade, mas, como em Sade, são
puramente representações da imaginação.
E qual é a concepção de sexualidade que Eisenstein revela com essa "imaginação"?
Todas as formas de sexualidade lhe interessavam, é
por isso que eu falo em meu ensaio de pansexualismo. Quem vê os desenhos pode pensar que Eisenstein não seria capaz de ter uma sexualidade "normal". Para a sua imaginação a sexualidade "sã" não
seria satisfatória, e ele considerava a possibilidade de
outras formas de sexo. Para ele, o homem é portador
de elementos de uma sexualidade milenar, herdada,
e por isso tem o impulso de simbolizar perpetuamente essa herança. Acho que existe uma verdade
nisso, e seus desenhos inserem-se nesse contexto.
No seu ensaio, o senhor parece reafirmar a alegada homossexualidade de Eisenstein.
A questão não é saber se ele era bissexual não-praticante, como disse à sua amiga e biógrafa Marie Seton, ou homossexual, como apontam vários estudos
sobre ele. Nos desenhos, o que pode se notar é uma
multiestratificação da consciência, que se traduz pela colisão de vários elementos figurativos vindos de
zonas mais diversas, míticas, políticas, artísticas, da
natureza. Para Eisenstein, há um trauma cotidiano
na passagem do pensamento sexual, herdado e natural, ao pensamento lógico. O mesmo trauma, arrisco, que há na passagem dos desenhos ao cinema de
Eisenstein. Cercado de uma certa tristeza.
Onde encomendar
"S.M. Einsenstein - Dessins Secrets", de Sergei Eisenstein (Seuil, 250 francos) pode ser encomendado, em São Paulo, na Livraria Francesa (tel. 0/
xx/11/231-4555).
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