|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 500 d.C.
O Brasil é um dos países onde a indústria cultural deitou raízes mais fundas
e, por isso mesmo, vem produzindo estragos de monta; tudo se tornou
objeto de manipulação bem azeitada, embora nem sempre bem-sucedida
Da cultura à indústria cultural
Milton Santos
Neste ano 2000, muitas iniciativas podem apenas encobrir
uma vontade festeira, permanecendo na superfície das
questões em lugar de aprofundá-las. Como a festa faz parte da vida, pode-se até
aceitar que certos temas ganhem esse
tratamento. Há outros, no entanto, que
exigem uma atitude mais severa, por
exemplo a cultura.
Nesse último caso, o debate tem que ir
mais longe que os comentários encomiásticos ou acerbos que se fazem em
torno dos espetáculos e pessoas, como se
pudesse ser transformado em "show business" o capítulo destinado a uma apreciação mais sisuda da questão.
Puro e profundo
O momento parece propício para enfrentar o necessário
balanço da forma como evolui, no país, a
própria idéia de cultura, sobretudo neste
último meio século. Esse debate deve,
necessariamente, incluir, a partir das definições encontradas -múltiplas definições e não apenas uma- a determinação das tarefas também múltiplas, que
deveremos enfrentar nesta passagem de
século, para ajudar a retratar a sociedade
brasileira naquilo que ela tem de mais
puro e mais profundo.
O conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade,
da integridade e da liberdade. Ela é uma
manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do
futuro desejado. Por isso mesmo, tem de
ser genuína, isto é, resultar das relações
profundas dos homens com o seu meio,
sendo por isso o grande cimento que defende as sociedades locais, regionais e
nacionais contra as ameaças de deformação ou dissolução de que podem ser
vítimas.
Deformar uma cultura é uma maneira
de abrir a porta para o enraizamento de
novas necessidades e a criação de novos
gostos e hábitos, subrepticiamente instalados na alma dos povos com o resultado
final de corrompê-los, isto é, de fazer
com que reneguem a sua autenticidade,
deixando de ser eles próprios.
Ao longo dos séculos, a cultura se manifesta pelas mais diversas formas de expressão da criatividade humana, mas
não apenas no que hoje chamamos "as
artes" (música, pintura, escultura, teatro,
cinema etc) ou através da literatura e da
poesia em todos os seus gêneros, mas
também por outras formas de criação intelectual nas ciências humanas, naturais
e exatas. É a esse conjunto de atividades
que se deveria denominar de cultura.
As culturas nacionais desabrocham como reflexo do que se convencionou chamar de gênio de um povo, expresso pela
língua nacional, que é também uma espécie de filtro, veículo das experiências
coletivas passadas e também forma de
interpretar o presente e vislumbrar o futuro. É verdade que na sociedade babelizada que é a nossa, as contaminações de
umas culturas pelas outras tornaram-se
possível industrialmente, dando lugar a
uma mais forte influência daquelas tornadas hegemônicas sobre as demais, que
assim são modificadas. É por isso que toda controvérsia sobre o assunto deve ser
atualizada e, para ser consequente, tem
de ser começada e terminada com a difícil, mas escorregadia, discussão sobre a
indústria cultural: o que é, como se dão
seus efeitos perversos em termos de lugar e de tempo. Sem isso o debate pode
se dar hoje, mas é como se ainda estivéssemos vivendo em outro século e em outro planeta.Sem essa precaução, corremos o risco de colocar no mesmo saco as
diversas manifestações ditas culturais e
de avaliar com a mesma medida os seus
intérpretes.
Condições particulares
O Brasil,
pelas suas condições particulares desde
meados do século 20, é um dos países
onde essa famosa indústria cultural deitou raízes mais fundas e por isso mesmo
é um daqueles onde ela, já solidamente
instalada e agindo em lugar da cultura
nacional, vem produzindo estragos de
monta. Tudo, ou quase, tornou-se objeto
de manipulação bem azeitada, embora
nem sempre bem-sucedida. O Brasil
sempre ofereceu, a si mesmo e ao mundo, as expressões de sua cultura profunda através do talento dos seus pintores e
músicos e poetas, como de seus arquitetos e escritores, mas também dos seus
homens de ciência, na medicina, nas engenharias, no direito, nas ciências sociais.
Hoje, a indústria cultural aciona estímulos e holofotes deliberadamente vesgos e é preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural não é
apenas formado por produtores e atores
que vendem bem no mercado. Ora, este
se auto-sustenta cada vez mais artificialmente mantido, engendrando gênios
onde há medíocres (embora também haja gênios) e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sempre as
mais desejáveis. Por estar umbilicalmente ligada ao mercado, a indústria cultural
tende, em nossos dias, a ser cada vez menos local, regional, nacional.
Nessas condições, é frequente que as
manifestações genuínas da cultura,
aquelas que têm obrigatoriamente relação com as coisas profundas da terra, sejam deixadas de lado como rebotalho ou
devam se adaptar a um gosto duvidoso,
dito cosmopolita, de forma a atender aos
propósitos de lucro dos empresários culturais. Mas cosmopolitismo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas servilidade a modelos e modas importados e rentáveis.
Sistema de caricaturas
Nas circunstâncias atuais, não é fácil manter-se
autêntico e o chamamento é forte, a um
escritor, artista ou cientista para que se
tornem funcionários de uma dessas indústrias culturais. A situação que desse
modo se cria é falsa, mas atraente, porque a força de tais empresas instila nos
meios de difusão, agora mais maciços e
impenetráveis, mensagens publicitárias
que são um convite ao triunfo da moda
sobre o que é duradouro. É assim que se
cria a impressão de servir a valores que,
na verdade, estão sendo negados, disfarçando através de um verdadeiro sistema
bem urdido de caricaturas, uma leitura
falseada do que realmente conta.
No arrastão suscitado pelo bombardeio publicitário, o que não é imediatamente mercantil fica de fora, enquanto a
sociedade embevecida mistura no seu
julgamento valores e autores. Quem é gênio verdadeiro, quem é canastrão diplomado? Há quem possa ser gênio e mercadoria sem ser ao mesmo tempo gênio e
canastrão, mas essa distinção não exclui
a generalidade da impostura com que
alhos e bugalhos se confundem.
A pedra de toque do êxito legítimo, que
não se mede pelo resultado imediato ou
pelo sucesso apenas mercantil, estará em
saber distinguir trigo e joio, cultura autêntica e indústria cultural. Como, porém, subsistir enquanto se espera? Como
assegurar aos jovens que o seu esforço
receberá, um dia, o reconhecimento? Esse é um grave problema do trabalho intelectual em geral e das tarefas especificamente culturais em particular, em tempos de globalização, sobretudo nos regimes neoliberais como o nosso.
O Ministério da Cultura deveria promover uma reflexão nacional e pluralista
sobre a questão. Em sua falta, as universidades públicas bem poderiam fazer jus
à sua vocação e corajosamente assumir a
responsabilidade da iniciativa. Não dá
mais para fazer de conta que o problema
não existe.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP. É autor, entre outros, de "Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e Meio Técnico-Científico-Informacional" (Hucitec). Ele escreve a cada dois meses na seção "Brasil 500 d.C." do Mais!.
Texto Anterior: + arte: Eisenstein secreto Próximo Texto: Jurandir Freire Costa: A ansiedade da opulência Índice
|