São Paulo, domingo, 19 de março de 2000


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+ brasil 500 d.C.
Na lista de espera dos antidepressivos estão intelectuais de pires na mão, tentando convencer os "organismos de financiamento" que suas investigações dão lucro ou pensadores que param de pensar para se engalfinharem com colegas por uma bolsa de estudos
A ansiedade da opulência

Jurandir Freire Costa

A notícia saiu no "The Wall Street Journal": "Não faz muito tempo, as fontes de medo nos Estados Unidos eram visíveis como um avião de bombardeio nos céus. Hoje, com tanta prosperidade e segurança, os céus estão limpos, mas os medos persistem". O setor de equipamentos de segurança para casas "faturou US$ 72 bilhões"; 17% dos americanos sofrem de "alguma desordem de ansiedade" e, nos últimos anos, "políticos, grupos de interesse e mídia" criaram um sem número de perigos para satisfazerem a fome de medo dos americanos: "O bug do milênio, o veneno Antrax, bactérias que comem carne humana, alimentos transgênicos, brigas violentas no trânsito, sequestro de crianças, roubo de carros com motorista dentro, chuva ácida e o vírus Ebola". Em suma, a "ansiedade superou a depressão como problema de saúde mental predominante nos EUA". Para explicar o disparate, o articulista recorre a um psicoterapeuta e a um sociólogo. O primeiro descreve a "ansiedade como uma condição dos privilegiados" que, livres de ameaças reais, se dão ao luxo de "olhar para dentro" e criar medos irracionais; o segundo diz que "vivemos na era mais segura da humanidade" e, no entanto, "desperdiçamos bilhões de dólares em medos ampliados bem mais do que o justificável".

O fato cultural
Não temos como confirmar ou negar a credibilidade empírica da notícia. Mais importante, contudo, é entendê-la como produção de um fato cultural. O fato cultural, diferente dos fatos físicos, só existe ao ser interpretado de forma plausível, isto é, ao ser articulado a um conjunto de crenças assumidas como verdadeiras. Tornado plausível, o fato pode, então, ser aceito ou recusado. O fato cultural aceito é, em geral, aquele cujos autores possuem poder suficiente para transformá-lo em realidade social. A imprensa americana é capaz de criar fatos e torná-los realidades sociais, pelo enorme poder econômico e ideológico que detém. Assim, afirmar que saímos da era da depressão e entramos na era da ansiedade significa criar modelos de conduta emocional com os quais muitos irão se identificar. Nem sempre podemos discriminar o que sentimos com clareza. A plasticidade, as sutilezas e as ambiguidades dos afetos permitem, facilmente, o "shuttle service" entre emoções afins. Da depressão com traços ansiosos à ansiedade com traços depressivos o passo é curto. Algumas matérias de capa em revistas de grande tiragem, alguns depoimentos de especialistas no assunto, muita pressão comercial dos laboratórios e eis no berço o novo "indivíduo ansioso"! Passemos rápido pelo lado caça-níqueis da questão. O próprio articulista se encarrega de dizer que os ansiolíticos se tornaram "os medicamentos mais quentes dos laboratórios farmacêuticos". A medicalização leviana da ansiedade, se já não é, pode vir a ser um negócio das arábias. Isentemos os reais avanços científicos da psicofarmacologia de compromissos com essa história escusa e deixemos o resto com polícia. O outro lado é menos evidente e mais inquietante. Se a informação do jornalista é justa, a opinião dos especialistas é tendenciosa de ponta a ponta. Não existe, é claro, interpretação neutra em relação a valores ou interesses. Mas há diferença entre explicitar os valores e interesses que justificam a interpretação proposta e insinuar que o que se diz foi diretamente soprado pela mãe-ciência.

Padrão universal
Dizer que o medo e a ansiedade dos americanos são "irracionais" é fazer de um estilo de vida datado padrão fixo e universal de racionalidade. Em bom português e sem meias palavras, os peritos dizem algo mais ou menos assim: os americanos estão nadando em riqueza, e, como não têm do que se queixar, adquiriram o costume neurótico de desentocar medos irracionais para projetá-los no admirável mundo novo ao redor. A explicação impressiona pela ingenuidade ou pela má-fé. Ninguém contrai o "mau hábito" de olhar para dentro de si do dia para a noite. A obsessão consigo não é um efeito colateral do modo de vida atual; é um dos seus mais indispensáveis ingredientes. A hipertrofia do interesse pelo "mundo interno" e pelo corpo é a contrapartida do desinteresse ou hostilidade pelo "mundo externo" e pelos outros. Disseram e repetiram, nos últimos tempos, que interesse demais pelo mundo é suspeito, sobretudo se for político. Já padecemos demais nas mãos de revolucionários, fanáticos, terroristas, obscurantistas e porta-vozes de messianismos e salvacionismos de toda sorte. Chegou a hora do bom senso. Entreguemos aos fazedores de dinheiro nosso bem-estar. Eles são espertos, audazes, além de nos protegerem contra eventuais recaídas totalitárias, se for o caso. Entretanto -prossegue o catecismo- esse bem-estar tem um preço, a insegurança. O custo da eficiência é a eterna vigilância! Só confie em seu corpo e sua mente. O resto é concorrente; o resto está sempre cobiçando e disputando seu emprego, seu sucesso, seu patrimônio e sua saúde ou doença, se forem lucrativas. Mas como ninguém consegue viver "full time" de olho nas entranhas, aqui e ali, mesmo o mais empedernido praticante da "interioridade" põe o nariz na rua. Nesse momento, querendo ou não, vê as consequências do abandono do mundo. Ter medo de venenos químicos, "bactérias canibais", sequestros, alimentos transgênicos, chuva ácida etc talvez fosse irracional na Idade Média, não hoje em dia. Hoje, escrúpulo se tornou piada; quem não atira primeiro -com perdão da gíria- "toma chumbo na asa". Sentir medo e ansiedade, em condições semelhantes, é um estado emocional perfeitamente racional e inteligível.

Miséria moral
Os teóricos da "irracionalidade ansiosa" parecem esquecer que riqueza material não é antônimo de miséria moral. Sentir-se condenado a jamais ter repouso físico ou mental, sob pena de perder a saúde, a longevidade, a forma física, o desempenho sexual, o emprego, a casa, a segurança na velhice, a assistência em caso de doença ou invalidez ou o simples respeito dos familiares, amigos e conhecidos pode ser um inferno em vida para pobres ou para ricos. Os candidatos à ansiedade são, assim, bem mais numerosos e bem menos ociosos do que pensam o psicoterapeuta e o sociólogo.
Na lista de espera dos ansiolíticos e antidepressivos estão "winners" que temem cair para a segunda divisão; "losers" que jamais sairão do banco de reserva; cientistas e intelectuais de pires na mão, tentando convencer os "organismos de financiamento" que suas investigações dão lucro; pensadores que param de pensar para se engalfinharem com colegas por uma bolsa de estudos a mais; adultos sem crianças; filhos sem pais; órfãos do romantismo sentimental, sem contar, é claro, a legião dos que nunca terão acesso à segurança e à prosperidade no país do "Wall Street".
Antes que a ansiedade americana chegue até nós, não custa ler o belo, inteligente e oportuno livro de Oswaldo Giacoia Júnior, "Labirintos da Alma" (Editora da Unicamp, 1997). A partir dele, é possível pensar em razões da ansiedade que a razão do "Wall Street" desconhece: "Viver de tal modo que não tem mais nenhum sentido viver, este se torna agora o "sentido" da vida". Nietzsche é mais barato do que uma caixa de psicotrópicos e, talvez, um remédio mais humano contra o niilismo de nossos dias.


Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br



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