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+ brasil 500 d.C.
Na lista de espera dos antidepressivos estão intelectuais de pires na mão,
tentando convencer os "organismos de financiamento" que suas
investigações dão lucro ou pensadores que param de pensar para se
engalfinharem com colegas por uma bolsa de estudos
A ansiedade da opulência
Jurandir Freire Costa
A notícia saiu no "The Wall Street
Journal": "Não faz muito tempo,
as fontes de medo nos Estados
Unidos eram visíveis como um
avião de bombardeio nos céus. Hoje,
com tanta prosperidade e segurança, os
céus estão limpos, mas os medos persistem". O setor de equipamentos de segurança para casas "faturou US$ 72 bilhões"; 17% dos americanos sofrem de
"alguma desordem de ansiedade" e, nos
últimos anos, "políticos, grupos de interesse e mídia" criaram um sem número
de perigos para satisfazerem a fome de
medo dos americanos: "O bug do milênio, o veneno Antrax, bactérias que comem carne humana, alimentos transgênicos, brigas violentas no trânsito, sequestro de crianças, roubo de carros com
motorista dentro, chuva ácida e o vírus
Ebola". Em suma, a "ansiedade superou
a depressão como problema de saúde
mental predominante nos EUA".
Para explicar o disparate, o articulista
recorre a um psicoterapeuta e a um sociólogo. O primeiro descreve a "ansiedade como uma condição dos privilegiados" que, livres de ameaças reais, se dão
ao luxo de "olhar para dentro" e criar
medos irracionais; o segundo diz que
"vivemos na era mais segura da humanidade" e, no entanto, "desperdiçamos bilhões de dólares em medos ampliados
bem mais do que o justificável".
O fato cultural
Não temos como
confirmar ou negar a credibilidade empírica da notícia. Mais importante, contudo, é entendê-la como produção de
um fato cultural. O fato cultural, diferente dos fatos físicos, só existe ao ser interpretado de forma plausível, isto é, ao ser
articulado a um conjunto de crenças assumidas como verdadeiras. Tornado
plausível, o fato pode, então, ser aceito
ou recusado. O fato cultural aceito é, em
geral, aquele cujos autores possuem poder suficiente para transformá-lo em
realidade social.
A imprensa americana é capaz de criar
fatos e torná-los realidades sociais, pelo
enorme poder econômico e ideológico
que detém. Assim, afirmar que saímos
da era da depressão e entramos na era da
ansiedade significa criar modelos de
conduta emocional com os quais muitos
irão se identificar.
Nem sempre podemos discriminar o
que sentimos com clareza. A plasticidade, as sutilezas e as ambiguidades dos
afetos permitem, facilmente, o "shuttle
service" entre emoções afins. Da depressão com traços ansiosos à ansiedade com
traços depressivos o passo é curto. Algumas matérias de capa em revistas de
grande tiragem, alguns depoimentos de
especialistas no assunto, muita pressão
comercial dos laboratórios e eis no berço
o novo "indivíduo ansioso"!
Passemos rápido pelo lado caça-níqueis da questão. O próprio articulista se
encarrega de dizer que os ansiolíticos se
tornaram "os medicamentos mais quentes dos laboratórios farmacêuticos". A
medicalização leviana da ansiedade, se já
não é, pode vir a ser um negócio das arábias. Isentemos os reais avanços científicos da psicofarmacologia de compromissos com essa história escusa e deixemos o resto com polícia. O outro lado é
menos evidente e mais inquietante. Se a
informação do jornalista é justa, a opinião dos especialistas é tendenciosa de
ponta a ponta. Não existe, é claro, interpretação neutra em relação a valores ou
interesses. Mas há diferença entre explicitar os valores e interesses que justificam a interpretação proposta e insinuar
que o que se diz foi diretamente soprado
pela mãe-ciência.
Padrão universal
Dizer que o medo e a ansiedade dos americanos são "irracionais" é fazer de um estilo de vida datado padrão fixo e universal de racionalidade. Em bom português e sem meias
palavras, os peritos dizem algo mais ou
menos assim: os americanos estão nadando em riqueza, e, como não têm do
que se queixar, adquiriram o costume
neurótico de desentocar medos irracionais para projetá-los no admirável mundo novo ao redor.
A explicação impressiona pela ingenuidade ou pela má-fé. Ninguém contrai
o "mau hábito" de olhar para dentro de
si do dia para a noite. A obsessão consigo
não é um efeito colateral do modo de vida atual; é um dos seus mais indispensáveis ingredientes. A hipertrofia do interesse pelo "mundo interno" e pelo corpo
é a contrapartida do desinteresse ou hostilidade pelo "mundo externo" e pelos
outros.
Disseram e repetiram, nos últimos
tempos, que interesse demais pelo mundo é suspeito, sobretudo se for político.
Já padecemos demais nas mãos de revolucionários, fanáticos, terroristas, obscurantistas e porta-vozes de messianismos
e salvacionismos de toda sorte. Chegou a
hora do bom senso. Entreguemos aos fazedores de dinheiro nosso bem-estar.
Eles são espertos, audazes, além de nos
protegerem contra eventuais recaídas totalitárias, se for o caso. Entretanto
-prossegue o catecismo- esse bem-estar tem um preço, a insegurança. O
custo da eficiência é a eterna vigilância!
Só confie em seu corpo e sua mente. O
resto é concorrente; o resto está sempre
cobiçando e disputando seu emprego,
seu sucesso, seu patrimônio e sua saúde
ou doença, se forem lucrativas.
Mas como ninguém consegue viver
"full time" de olho nas entranhas, aqui e
ali, mesmo o mais empedernido praticante da "interioridade" põe o nariz na
rua. Nesse momento, querendo ou não,
vê as consequências do abandono do
mundo. Ter medo de venenos químicos,
"bactérias canibais", sequestros, alimentos transgênicos, chuva ácida etc talvez
fosse irracional na Idade Média, não hoje
em dia. Hoje, escrúpulo se tornou piada;
quem não atira primeiro -com perdão
da gíria- "toma chumbo na asa". Sentir
medo e ansiedade, em condições semelhantes, é um estado emocional perfeitamente racional e inteligível.
Miséria moral
Os teóricos da "irracionalidade ansiosa" parecem esquecer
que riqueza material não é antônimo de
miséria moral. Sentir-se condenado a jamais ter repouso físico ou mental, sob
pena de perder a saúde, a longevidade, a
forma física, o desempenho sexual, o
emprego, a casa, a segurança na velhice,
a assistência em caso de doença ou invalidez ou o simples respeito dos familiares, amigos e conhecidos pode ser um inferno em vida para pobres ou para ricos.
Os candidatos à ansiedade são, assim,
bem mais numerosos e bem menos ociosos do que pensam o psicoterapeuta e o
sociólogo.
Na lista de espera dos ansiolíticos e antidepressivos estão "winners" que temem cair para a segunda divisão; "losers" que jamais sairão do banco de reserva; cientistas e intelectuais de pires na
mão, tentando convencer os "organismos de financiamento" que suas investigações dão lucro; pensadores que param
de pensar para se engalfinharem com colegas por uma bolsa de estudos a mais;
adultos sem crianças; filhos sem pais; órfãos do romantismo sentimental, sem
contar, é claro, a legião dos que nunca terão acesso à segurança e à prosperidade
no país do "Wall Street".
Antes que a ansiedade americana chegue até nós, não custa ler o belo, inteligente e oportuno livro de Oswaldo Giacoia Júnior, "Labirintos da Alma" (Editora da Unicamp, 1997). A partir dele, é
possível pensar em razões da ansiedade
que a razão do "Wall Street" desconhece:
"Viver de tal modo que não tem mais nenhum sentido viver, este se torna agora o
"sentido" da vida". Nietzsche é mais barato do que uma caixa de psicotrópicos e,
talvez, um remédio mais humano contra
o niilismo de nossos dias.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de
"A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude nem Favor" (Rocco). Ele escreve mensalmente na
seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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