São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANTONIO CANDIDO
O mestre à distância

LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha

Em minha mente, pelo visto pouco eufônica, o nome "Antonio Candido" rima com reconhecimento e gratidão intelectuais.
Reconhecimento intelectual: quando garoto no Recife, costumava ler ensaios, publicados em suplementos ou livros, de Álvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido. Foram eles meus iniciadores no padrão da qualidade crítica. Por afinidade eletiva, Candido era contudo o modelo por excelência, pois reunia sensibilidade escrita e o que eu intuiria como o encaminhamento de um método.
Não por acaso, essa escolha se combinava com o fascínio sobre mim exercido pelo "Mimesis", de Erich Auerbach, lido pela primeira vez na tradução pioneira (1951) de Eugenio Imaz. A combinação, fundada no privilégio de uma abordagem sociológica, ganhava sentido diante das direções apresentadas pelas muitas outras leituras de então: (a) a textual-imanentista dos "new critics" norte-americanos, que importava pela Livraria Imperatriz; (b) a leitura dos franceses anteriores a Roland Barthes, com seus quadros sinópticos e seus convencionais comentários de texto; (c) a leitura da tradição marxista, em que ainda não se incluía G. Lukács.
A preferência pelo duo Candido-Auerbach significava, por um lado, a recusa do didatismo e da fluência literatosa da tradição francesa -dela, cedo aprendi a excluir Valéry-, de outro, da superficialidade dogmática do marxismo oficializado.
Muito longe ainda de pôr em questão os limites da abordagem sociológica, ela era o fio de prumo contra a minha própria confusão e ignorância. Logo a seguir, serviria ainda de contraste contra as soluções estilísticas que absorveria em altas doses durante meus anos em Madri (1960-61).
Ensaio capital
A distância dos anos me faz agora entender que a escolha de Candido tinha a qualidade de ser feita em contraposição a modelos então muito mais prestigiosos. E aquilo que sempre lamentei -não haver sido seu aluno e não haver privado de sua amizade- agora percebo que teve ao menos um lado positivo: tive-o por mestre por pura opção intelectual.
Admirado à distância, meu primeiro e fugaz contato com Candido se deveu a Milton Vargas, a quem conhecera a partir da revista "Diálogo", em cujo extraordinário nš 8, de 1957, Candido viria a publicar um dos ensaios até hoje capitais sobre o "Grande Sertão": "O Homem dos Avessos". Mas aquele contato se resumiu a receber autografado exemplar do "Ficção e Confissão" (1956).
Era mesmo por não termos um contato pessoalizado que minha gratidão se tornaria muito maior. Aposentado pelo Ato Institucional nš 1, em consequência da colaboração com um amigo constante desde a adolescência, Paulo Freire, não tive já em 1964 outro caminho senão emigrar para o Sul.

A única dificuldade
Sobrevivendo primeiro como revisor na editora Vozes e depois como membro de enorme equipe em projeto enciclopédico, ao mesmo tempo em que era professor-horista da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), por volta de 1970, tive a oportunidade de substituir Zuenir Ventura, em curso da Escola de Desenho Industrial. Aí, me tornei amigo de uma das filhas de Candido, Ana Luisa Escorel.
Impossibilitado de inscrever-me na pós-graduação da Faculdade de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo diretor declarava que lá eu só entraria passando sobre seu cadáver (!), minha única maneira de profissionalizar-me, por ser impossível sair do país, pois o passaporte me era sistematicamente negado, consistia em ser aceito pela USP.
Sem a interferência de Ana Luisa, eu não teria acesso a Antonio Candido. Lembro-me de que, entregando-lhe meus papéis em uma dependência da USP, dele ouvi que, pelos livros já publicados, a congregação da universidade me concederia o direito de ingressar diretamente no doutorado e, por trabalhar noutra cidade, de ser dispensado da frequência dos cursos (creio que isso já não seria hoje possível).
Apenas lamento que não tenha sabido então contornar a única dificuldade que Candido me apresentou: a de, por seu excesso de trabalho, não poder de fato me orientar. Talvez, se houvesse insistido, teria cometido menos erros e evitado contornos que levei anos para concluir. Mas as lamentações não interferem em minha gratidão.


Luiz Costa Lima é ensaísta e crítico, professor de história social da cultura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.