São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
Arte da observação



LUCIANA STEGAGNO PICCHIO
especial para a Folha

Pedem-me um testemunho sobre Antonio Candido. E eu hesito entre o orgulho de pertencer, embora estrangeira, à grande família dos amigos do mestre brasileiro e o receio de, levada pela amizade e a profunda admiração que sinto e sempre senti, desde o primeiro momento, por ele, ultrapassar retoricamente aqueles limites de rigor e de pudor que são a marca da sua personalidade de homem e de estudioso. Sem contar a ironia. Porque uma das características que chocam de imediato o interlocutor de Antonio Candido é, debaixo da sua enorme seriedade, a sua ironia, o seu saudável talento a desmistificar qualquer situação, humana e literária. O seu sorriso.
O seu jeito de verdadeiro ator, capaz de improvisar ludicamente cenas plurilíngues, portuguesas, italianas, francesas, inglesas, todas de dicção impecável, a sua arte de reproduzir as vozes e os movimentos de amigos privilegiados e longínquos: Giuseppe Ungaretti, Murilo Mendes, mas também Teresina Carini Rocchi, "obscura, mas admirável militante socialista italiana, vinda para o Brasil em 1890", de quem ele costuma mostrar com orgulho aos amigos italianos o álbum de recordações. Arte da memória, mas também da observação.
Todos nós, nacionais e estrangeiros, nos educamos nas obras de Antonio Candido: na "Formação da Literatura Brasileira", mas também naqueles livros de ensaios que, consultados na hora da escrita, nos dão sempre a impressão de que tudo está dito, que nunca, nas nossas tentativas de aproximação ao objeto literário, poderemos dizer mais e melhor, de forma tão segura e peremptória. Mesmo quando o que ele diz parece chocar com algumas das nossas mais enraizadas convicções.
Tenho aqui um dos seus últimos trabalhos publicados, um caderninho de iniciação à literatura brasileira "para principiantes". Com que rigor e segurança este grande patriota, que nos momentos difíceis do seu país, de luta contra a repressão, se encontrou sempre na primeira linha em defesa dos direitos dos brasileiros, de todos os brasileiros, expõe, mais radicalmente do que nunca, talvez pelo desejo de clareza que os destinatários da pequena obra exigem, a tese de que a literatura do Brasil faz parte das literaturas do ocidente da Europa, que, como dizia Ruggero Jacobbi, ela é a imagem profunda de um mundo que em vão chamamos terceiro, pois na verdade é a segunda Europa!
Contra qualquer nacionalismo, nosso também, de estrangeiros desejosos de encontrar, desde "o começo", no grande corpo das obras literárias produzidas no Brasil, as peculiaridades capazes de caracterizar um repertório de textos como uma literatura nacional.
Aparece aqui, com efeito, a espinha da personalidade humana e política de Antonio Candido: o seu socialismo, no sentido mais amplo da palavra -em direção diacrônica bem como sincrônica. O argumento é que, apesar das tentativas de poucos autores iluminados, a começar pelo padre José de Anchieta, que, com a promoção da língua geral, tinha procurado valorizar no país uma cultura de interação entre os indígenas e os conquistadores, a literatura brasileira nascera como ato de imposição dos "senhores" da metrópole, só adquirindo durante os séculos aquelas características temáticas e expressivas que fariam dela uma literatura nacional.
Obrigada, amigo e mestre Antonio Candido. Obrigada também por esta nova e peremptória aula de literatura.


Luciana Stegagno Picchio é professora aposentada de literatura brasileira na Universidade La Sapienza (Roma), autora, entre outros, de "História da Literatura Brasileira" (Nova Aguilar).



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