São Paulo, domingo, 19 de julho de 1998

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ANTONIO CANDIDO
O dia em que o crítico subiu na mesa

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
especial para a Folha

Sopravam os ventos da abertura, o ano era 1979 e a estação, o outono. Professores e demais funcionários públicos pela primeira vez paralisavam juntos o trabalho, em longa e ingrata greve, afinal perdida. Absoluta novidade, os funcionários, ainda que proibidos pelos estatutos, saíram em passeata.
Despontaram lideranças, entre as quais a de Luiza Erundina, que dali foi para o segundo cargo mais importante do país, o de prefeita da cidade de São Paulo, e a de Flávio Aguiar, logo depois presidente da Associação dos Docentes da USP.
Naturalmente, como em todo movimento de massa, houve altos e baixos, incidentes dramáticos e quiproquós. Dentre as diversas ações, restou como a mais lembrada um comício havido em certa tarde chuvosa de meados de abril, no jardim da Faculdade de Medicina, afinal reunidos, após várias assembléias parciais convocadas nos locais de trabalho, os professores de primeiro e segundo graus, os do ensino superior e os funcionários. Ao largo, na avenida Dr. Arnaldo, a polícia se mantinha em peso e de prontidão.
Ninguém sabe como nem por quê, no ritmo febril daqueles dias, tinham esquecido de pedir permissão ao diretor da faculdade. Transpirou a notícia de que ele estava uma fera. Deliberou-se rapidamente, concluindo-se que era imperativo ir logo dar-lhe uma satisfação.
Lá se foi o vice-presidente da Adusp falar com o diretor, que o recebeu muito irascível e ameaçando mandar a polícia entrar para expulsá-los do jardim. Por seu lado, o presidente, com uma comitiva, procurava o secretário da Segurança Pública, firmando o compromisso de que nem os grevistas sairiam, nem a polícia entraria.
Enquanto isso, a tensão geral chegava ao auge e despencava uma tempestade, com raios e trovoada. E o pessoal ali firme, ao ar livre, debaixo do aguaceiro. O sistema de som, é claro, entrou em pane. Adotou-se então a prática da ladainha, inventada pelos estudantes, pela qual os da frente repetiam o que ouviam e iam repassando para os de trás. E não dava para ver quem falava.
Às reclamações dos manifestantes, o pessoal se mexeu e acabou desencavando, não se sabe de onde, uma mesinha. A humilde peça de mobiliário encontrou sua gloriosa serventia ao se metamorfosear em tribuna para os oradores da sessão. E foi assim que se registrou para a posteridade o instantâneo do vice-presidente e primeiro orador, Antonio Candido, subindo na mesa pelo comando de greve da USP e clamando por união. Em minutos, adequou os pingos aos "is" -outros que não aqueles tombando do céu- e serenou os ânimos, botando ordem nos trabalhos.
A reivindicação salarial da greve estava nos 70% de aumento, mais um abono. O astuto governador acabou concedendo o abono, mas não o aumento. Com isso, alienou as bases -para as quais, por ganharem tão pouco, o abono se tornava mais significativo que o aumento-, desarmando a greve. Sem falar na intimidação, o governo deblaterando ameaças públicas, com declarações à mídia sobre iminentes demissões. E chamadas ao Dops de vários grevistas.
Culminação do movimento, seu mais memorável evento veio a ser esse comício, e até hoje as pessoas conferem umas com as outras: "Qual, aquele em que Antonio Candido subiu na mesa?".


Walnice Nogueira Galvão é professora aposentada de teoria literária na USP, autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).



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