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ANTONIO CANDIDO
O moço arredio
LYGIA FAGUNDES TELLES
especial para a Folha
Vi Antonio Candido pela primeira vez na Escola Caetano de
Campos da praça da República. Eu
fazia o clássico quando certa tarde
dei com aquele ajuntamento no
pátio e, no meio da roda da estudantada ainda adolescente, Antonio Candido e Paulo Emilio fazendo política. Fui informada, aquele
mais tímido e mais franzino, esse
era o Antonio Candido, e o outro
flamante, de olhar entortado, era
o Paulo Emilio. Na véspera alguém já tinha pichado o degrau de
pedra da escada com as letras veementes, "pão, terra e liberdade".
Exultei quando fiz a ligação do
piche revolucionário com os dois
visitantes: na minha pobreza,
também eu era uma anarquista
(anarquista foi substituído mais
tarde por subversivo, observa Antonio Candido no seu livro "Recortes"), mas a diferença é que eu
era uma anarquista mascarada, as
mocinhas desse tempo tinham
que ficar enrustidas se ambicionavam algum futuro na burguesia
tradicional.
Me lembro que cheguei a perguntar a Antonio Candido onde
eles estudavam para fazermos os
contatos, mas nessa hora o diretor
da escola já se aproximava perigosamente e consegui apenas uma
despedida ligeira. A gente se vê
por aí! Fui vê-lo alguns anos mais
tarde quando eu já cursava a Faculdade de Direito do largo São
Francisco e assim mesmo de passagem, mas ele era também acadêmico? E de que turma? Tanta gente, meu Deus! Tanta gente e tantos
acontecimentos, os congressos e
as passeatas contra o Estado Novo, fui incumbida de comprar na
rua Direita o crepe preto para o
lenço que iríamos amarrar na boca nessa passeata contra a censura.
Me lembro que pedi alguns metros "daquele crepe fúnebre que
cobre os caixões" e o caixeiro, a
rir, "mas o defunto é tão grande
assim?". Alguém me informou
(as informações!) que esse Antonio Candido participava agora das
cúpulas rebeldes com aquele outro acadêmico eterno, o Germinal
Feijó. Quanto ao outro de olhar
entortado, esse devia andar pela
Europa, fugindo Deus sabe de
quem.
Antonio Candido no largo São
Francisco. Falava rapidamente,
cordial, mas cerimonioso. Simpático, mas arredio. Falou alto naquela sessão sobre a importância
da União Democrática Socialista
no auge da repressão de Vargas e
que já esboçava curiosamente o
vestíbulo do AI-5: as prisões e as
torturas. Delirei com o programa
do partido anunciado, vou fazer a
minha ficha, pensei, e um colega
conservador me avisou: "Isso vai
dar cadeia!". E mais congressos e
mais associações e mais brigas entre os intelectuais, ah! como os intelectuais brigavam. "O tempora,
o mores!" (Ó tempos, ó costumes!), a gente gostava de se espantar em latim.
"A revista "Clima' é uma verdadeira beleza, não existe nesses
Brasis um grupo de jovens tão maravilhosos", me disse Mário de
Andrade durante um chá na Confeitaria Vienense, tempo de leiterias e confeitarias, a Vienense ao
som de violinos de velhos violinistas tocando valsas velhíssimas.
Soube então que Antonio Candido
estava na Faculdade de Filosofia,
enquanto o companheiro militante tinha trancado a matrícula para
continuar na Europa, mexendo
com cinema. Nesse chá fiquei ainda sabendo, o poeta Álvares de
Azevedo morreu virgem e o poema "Ainda uma Vez, Adeus!", de
Gonçalves Dias, era o mais belo
poema de amor da nossa língua.
A consagração (não gosto da palavra, mas vá lá!) começava a se
consolidar: disciplinado e lúcido,
o professor e ensaísta construía
uma obra maior que exigia competência. E amor. A admiração
por ele aprofundou-se na minha
convivência com Paulo Emilio,
que foi me revelando, aos poucos,
como convém, o tamanho desse
amigo. Ele dizia o Candido. E chamava a minha atenção para esse
ou aquele capítulo de um livro ou
então contava algum fato (engraçado ou dramático) que viveram
naqueles verdes anos. Me lembro
tanto daquele dia no Irã (foi em
1968?) quando entramos na loucura de um mercado persa para
comprar caviar. No nosso regresso (Festival de Cinema em Cartago) o Paulo Emilio queria oferecer
um jantar com o melhor caviar do
mundo (mar Cáspio) aos melhores amigos do mundo, Candido e
Gilda. Decio e Rute.
A segunda revista (menos famosa do que "Clima") nasceu em
1973: "Argumento". Essa revista,
que teve também a presença de
Fernando Gasparian, foi apresentada com uma simplicidade comovente: "Nascemos sem ilusões
e não está no nosso programa nutri-las. A independência custa caro
e não encoraja as subvenções".
Toda razão tinham os teimosos diretores declarando-se sem ilusões,
porque logo a revista receberia um
"recado" da censura, breve advertência do presidente da República antes de baixar o decreto (os
decretos!) que fez "Argumento"
desparecer depois do terceiro número.
Penso agora que a melhor homenagem a Antonio Candido é transcrever aqui (ainda "Recortes") o
fragmento do capítulo que ele dedicou ao "Navio Negreiro", de
Castro Alves. Um crítico frio?
Nunca! Confesso que abri meio ao
acaso o livro e lá dou com um trecho, mas onde a frieza na crítica
aos versos do romântico baiano?
Sem dúvida, Antonio Candido
trabalha com rigorosa lucidez,
mas somada à virtude maior, a coragem. E a paixão.
"Os escravos estão acorrentados na dança macabra, formando
filas sinuosas; os chicotes, igualmente longos, sinuosos e flexíveis,
caem sobre eles como instrumentos de tortura. Ora, ao evocar o estado anterior de liberdade o poeta
os tinha mostrado soltos, caçando
tigre e leão, guerreando, enquanto
as mulheres procriavam ou cismavam na cabana. A escravidão chega e os arruma na fileira agrilhoada pelos predadores, na unidade
coleante da caravana de prisioneiros, cujo desfecho é a imagem da
serpente que "faz doidas espirais'
no tombadilho."
E, adiante, prossegue Antonio
Candido: "A nós, resta imaginar o
entusiasmo que devia despertar o
moço baiano, declamando com
ênfase esses versos nos pobres teatrinhos de São Paulo, aos quais
trazia a teatralidade heróica do cenário de mares e firmamentos,
varridos de tempestade, semeados
de estrelas. Adotando a maneira
empolada daquele tempo, podíamos dizer que essas tempestades
eram menos intensas, e essas estrelas brilhavam menos do que a
flama da sua generosidade, sacudida pelo horror da tragédia no
mar".
Lygia Fagundes Telles é escritora, autora de
"As Meninas" (José Olympio), "As Horas Nuas"
(Nova Fronteira) e "A Estrutura da Bolha de Sabão" (Record), entre outros.
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