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ANTONIO CANDIDO
Milhares de livros
JOSÉ MINDLIN
especial para a Folha
Há pessoas sobre quem é difícil
falar, porque não há nada, ou
muito pouco, a dizer sobre elas. A
não ser que se faça o que fez Raphael Bordallo Pinheiro, no seu
famoso "Álbum das Glórias", em
que a legenda da caricatura do infante dom Augusto Maria Fernando Cardoso Miguel Gabriel Raphael Agrícola Francisco d'Assis
Gonzaga Pedro d'Alcantara Loyola se resume a dizer: nasceu
............... ..........................................
é infante e general.
E há pessoas sobre quem é difícil
falar, porque há coisas demais a
dizer sobre elas. E, quando só são
coisas boas, isso se torna mais difícil, porque falar mal de alguém é
fácil. Os leitores já devem ter percebido que estou pensando em
Antonio Candido, que se enquadra claramente na segunda categoria do difícil. Com a agravante
de que não gosta que falem dele ou
que escrevam sobre ele.
Ora, convidado a escrever um
artigo para o caderno "Mais!" da
Folha em sua homenagem, por
ocasião de seus 80 anos, fico sem
saber o que seria melhor: ignorar
sua aversão à publicidade ou respeitar seu íntimo desejo de recolhimento?
O primeiro impulso seria o de
ignorar, porque é difícil deixar
passar em branca nuvem a comemoração de uma data tão emblemática, em que ele ingressa na faixa dos octogenários indômitos,
como foram Drummond, Afonso
Arinos, Pedro Nava ou Cyro dos
Anjos, e como são tantos outros,
felizmente ainda vivos, como Nise
da Silveira, Plínio Doyle, Nelson
Werneck Sodré, Alphonsus Guimarães Filho ou Barbosa Lima Sobrinho.
Por outro lado, minha amizade
de vida inteira com Antonio Candido me obrigaria a não contrariá-lo. Como vêem, é um sério dilema; mas creio que achei um jeito
de contornar o problema.
Como temos muitas afinidades e
interesses comuns que nos unem,
tentarei evocar alguns aspectos de
nossas vidas em que eles se tornaram evidentes. Não sei se, fazendo
isso, uma separação de personagens (ele e eu) será possível ou
não, mas, em todo caso, vou tentar. Parece-me, no entanto, inevitável eu aparecer, mas certamente
minha presença será puramente
secundária.
Nossa primeira afinidade surgiu
quando, ainda jovens, nos sentimos atraídos pela mesma moça,
que namoramos alternadamente.
Mas a atração passou, e a amizade
não se abalou.
Um grande interesse comum,
que vem à lembrança desde logo é
o amor à leitura. Não sei quantos
livros Antonio Candido leu na vida, mas devem ter sido uns bons
milhares. Acho até que seria uma
boa idéia fazer essa contagem
quando ele completar 90 anos (e
eu estarei me aproximando do
centenário), isso, naturalmente,
sem querer limitar a onipotência
divina...
Antonio Candido é um proustiano inveterado e respeitável, e sua
proustiana me causa uma ponta
de inveja -sentimento perdoável
num assunto como esse. Mas é
uma inveja saudável, porque foi
nessa proustiana que fiquei conhecendo edições de Proust e
obras sobre ele que não conhecia,
e nem sei se chegaria a conhecer.
Amor à arte foi outro interesse
comum, que nos deu oportunidade, por exemplo, de estarmos juntos por muitos anos no conselho
do Museu Lasar Segall. Só que,
nesse campo, ele teve mais firmeza
do que eu, quando resolveu deixar
todos os conselhos a que pertencia
e reservar mais tempo para o que
mais o interessava e absorvia - a
leitura, o estudo, e os escritos. Felizmente, houve uma exceção, e
ele continua envolvido, há mais de
dez anos, no conselho da Vitae,
com grande proveito para a instituição e muita alegria para seus
companheiros.
Outra afinidade fundamental foi
nosso horror ao arbítrio e à violência. Nas duas ditaduras que o
Brasil enfrentou desde 1930, sempre se situou abertamente, como
eu, no campo da oposição. Mas isso não impediu que me aconselhasse a aceitar o convite para assumir a secretaria de Cultura,
Ciência e Tecnologia de São Paulo
em pleno regime militar, porque,
disse ele na ocasião, com o bom
senso que o caracteriza, "se quem
quer a abertura política não aceita
um cargo como esse, ele será ocupado por quem não quer". E
acrescentou que estava convencido de que eu deixaria o cargo se
não pudesse permanecer nele com
dignidade -o que, aliás, aconteceu.
Seu senso de humor é admirável,
e incrível sua capacidade de se divertir e de divertir os amigos, com
imitações de personagens, cantorias e "sketches", feitos com frequência junto com Sérgio Buarque de Holanda.
Uma de minhas frustrações na
vida foi não ter sido seu aluno,
mas isso apenas formalmente,
pois sempre aprendi muito com
ele, e continuo aprendendo, nos
seus livros e nas nossas conversas.
Antonio Candido é um exemplo
do que pode e deve ser um grande
professor.
Receio estar me perdendo com
estas notas desordenadas, em que
tentei, sem resultado, não falar dele diretamente. Pelo jeito, não era
mesmo possível, como também
não me foi possível ficar de fora
deste caderno.
Sinto-me feliz por termos vivido
na mesma época, sempre amigos
desde o tempo de solteiros (e
olhem que festejo neste ano 60
anos de casado!). Isso por si só já
seria uma dádiva do destino, mas
tivemos a sorte de mais dádivas
-nossas mulheres, Gilda e Guita,
participam dessa amizade, e temos a alegria de ver em nossos filhos edições melhoradas de nós
mesmos. E ainda por cima somos
hoje meio compadres, pois Antonio Candido é padrinho de nosso
neto Manu.
Tudo isso é muito gostoso. Acho
que foi bom ter na realidade ignorado as possíveis objeções de Antonio Candido e participado desta
homenagem. Quem tem tantos
amigos como ele tem, não podia
mesmo se esconder numa toca,
sem permitir que esses amigos
manifestassem seu carinho e sua
admiração.
José Mindlin é empresário e bibliófilo, autor de
"Uma Vida entre Livros" (Companhia das Letras).
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