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ANTONIO CANDIDO
Ser simples
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
especial para a Folha
Não quero, aqui, fazer o elogio
de Antonio Candido. Desejo, antes, enviar-lhe um presente, em
seu aniversário. Se o que posso
oferecer não retribui o quanto lhe
devo, com certeza é o que de melhor tenho a dar. Espero contar-lhe um pouco do muito que
dele aprendi, tanto na vida do espírito quanto nas coisas do mundo. Se não tiver êxito, e me enganar em minhas palavras, peço-lhe
que releve o desacerto de meu juízo e receba minhas lembranças
como penhor de amizade, levando
em conta mais a intenção que o
valor do presente.
Ainda estudante, minha primeira experiência com Antonio Candido permitiu-me constatar seu
respeito pelo diálogo intelectual,
num meio em que a arrogância e o
narcisismo ditavam a afirmação
de si, excluindo quem fosse arredio à etiqueta pedante, supostamente engenhosa e erudita, que
regia a dinâmica das classes e "salões". A lhaneza de Antonio Candido, seu talento para ouvir o outro, sua discrição e lisura para
com todos, sua real estima pelos
amigos, caíam como um encanto
nesse conturbado cenário. Com
sua presença, a afabilidade própria ao estudioso se conjugava às
idéias-força do saber: apuro do
conhecimento, pesquisa paciente
e inovadora, exposição rigorosa e
-balizando esse processo-
compromisso com o tempo necessário.
Creio que essas escolhas só podem vir de um verdadeiro amor
pela cultura e de um sincero propósito de criá-la e transmiti-la. O
caminho da reflexão é difícil, exige
disciplina e perseverança, isola e
obriga a renúncias, chega a ser angustiante no esforço de colher as
coisas e expressá-las na chave certa. Só faz sentido dirigir toda uma
existência nesse rumo se houver
gosto autêntico pela vida do espírito, com a experiência do prazer
que engendra e a firme convicção
de que ele define responsabilidades tanto no campo teórico quanto no prático. Todo alvo acidental
-todo prestígio ou poder- que a
instrumentalize se torna pequeno,
incomensurável com o delicado e
árduo trabalho de nutrir e plasmar
a alma.
Em Antonio Candido a harmonia entre saber especulativo, finura da sensibilidade e empenho político é reforçada por generosa
simpatia para com o próximo. Em
outra fase de nossas carreiras, ambos já professores, nos encontramos no interesse e afeição pelo
mesmo personagem, o caipira
digno e livre, maltratado por um
mundo hostil.
Nossos recortes e leituras desse
universo divergem; nem por isso
deixei de receber seu precioso reconhecimento ante a ortodoxia
então dominante nas ciências sociais. Divisei, nesse ensejo, uma
tranquila e segura atitude de tolerância doutrinária, necessário
desfecho de um juízo reto sobre
um trabalho honesto.
Aí está mais um aprendizado: a
liberdade de pensamento, a paciência para fundamentá-lo, a audácia de exprimi-lo supõem coragem intelectual e firmeza de caráter. Antonio Candido manteve esses traços unificados ao longo de
sua vida. Sua vocação literária não
excluiu, pelo contrário, incorporou séria reflexão política à crítica
da cultura. No plano mais diretamente ético, jamais negou o enorme peso de seu nome e sempre resistiu a todo poder arbitrário.
Opôs-se a Vargas, assim como nos
recentes e amargos dias de mando
militar defendeu ativamente os direitos do ser humano. Participou
de partidos políticos sem se curvar, sustentando seus pressupostos teóricos e fins práticos.
Essa unidade do espírito, abrangendo realizações intelectuais,
sensíveis e éticas, é o mais precioso dom de Antonio Candido a alguns de seus alunos. Diante da árida pretensão de ciência, mostrou-nos a graça, beleza e verdade
essenciais à arte; contra o pesado
jargão dos compêndios, ofereceu-nos o estilo claro, conciso e
perspicaz de sua prosa poética;
contra a frieza analítica, produziu
uma obra em que racionalidade e
sentimento encontram justo acordo; contra o oportunismo político, deu-nos o paradigma de altaneira e discreta fidelidade a princípios.
Não é fácil manter essa inteireza
de posições neste fim de século
confrangedor, no qual se alastra o
ataque, tecido em mentira e desfaçatez, a direitos longa e duramente defendidos com sofrimentos,
prisões, mortes, torturas, exílios.
Estamos numa encruzilhada, em
que a desvalorização das vidas humanas -miséria, doença, ignorância- prepara uma sementeira
para os fascismos. Nesse desenlace, que elude grandes esperanças,
a figura de um homem simples
-não a tolice que se chama candura de coração, mas o inteligente
e forte ideal de integridade sintetizando consciência e ato- forma
um raro e belo modelo. Ser simples, no grande e antigo valor desse termo, é a riqueza que nos oferece Antonio Candido.
Uma falha existe em meu estimado mestre: a modéstia indevida
que rouba o justo orgulho de si.
Por isso, se minhas palavras, ao
invés de agradá-lo, o constrangerem, posso ter me enganado; mas
não errei em lhe dirigir estas recordações, porque, assim fazendo, creio testemunhar o reconhecimento pelo bem que fez. Alegre-se, peço, com o meu presente,
seja ele bom ou mau.
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da Universidade Estadual de
Campinas e professora aposentada do departamento de filosofia da USP. É autora de "Homens
Livres na Ordem Escravocrata" (Ed. da Unesp).
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