São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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Jogo limpo

Kenneth Maxwell fala do livro que lança no final do ano e diz que a política econômica adotada no país nos últimos dez anos evitou uma recaída populista

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE AUSTIN

Depois de estudar o passado brasileiro, o britânico Kenneth Maxwell agora quer explicar o Brasil do presente. Autor de "A Devassa da Devassa" (que mereceu segunda edição no ano passado pela Routledge, com o título original inglês de "Conflicts and Conspiracies - Brazil and Portugal 1750-1808"), "Mais Malandros -Ensaios Tropicais e Outros" e "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" [os três pela Paz e Terra], entre outros, Maxwell prepara, para o final do ano, "Brazil Beyond 500" [Brasil Além dos 500], um estudo sobre a sociedade brasileira contemporânea.
Ele tem ainda um livro com lançamento previsto para o Brasil, no primeiro semestre. Trata-se de "O Império Derrotado", que vai sair pela Companhia das Letras, e conta a história da Revolução dos Cravos, em 1974, e do fim do império colonial lusitano na África, no ano seguinte.
Vinculado à Universidade Harvard, onde é "senior fellow" do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos e professor visitante do departamento de história, Maxwell falou à Folha em Austin, no Texas, logo depois de assistir à estréia contemporânea da "Missa de Nossa Senhora da Conceição", composta em 1810 pelo padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), em edição crítica de Ricardo Bernardes.
O concerto marcou o encerramento do simpósio "Música e Cultura na Corte Imperial de dom João 6º no Rio de Janeiro", no qual o historiador inglês apresentou a conferência "Velho Mundo nos Trópicos - O Rio na Regência".
 

Folha - Como surgiu a idéia de um livro sobre o Brasil de hoje?
Kenneth Maxwell -
Queria escrever um livro sobre o Brasil que não fosse apenas uma história cronológica, pois eu não achava que isso ajudaria a explicar o país. Estava interessado em tentar explicar o Brasil, o que é obviamente impossível, mas pelo menos tentar distinguir aqueles que fossem os cinco ou seis elementos que eu poderia explicar para mim e para um público de fala inglesa.
Eu queria olhar para o Brasil com aprofundamento histórico, mas com atenção para as circunstâncias contemporâneas, para explicar como o Brasil se desenvolveu, geograficamente e em termos de sociedade.
E também acho importante ver como sua elite e sua burocracia se formaram. O livro ia se chamar "Brazil at 500" [Brasil aos 500], mas os anos passaram; já estou com dois terços do manuscrito prontos e espero tê-lo terminado até o final do ano.

Folha - Em que estágio ele está?
Maxwell -
Obviamente, não está indo muito bem, porque é difícil lidar com essas questões. É o tipo de livro que se desenvolve organicamente. Já redigi a parte histórica, pois obviamente sinto-me mais confortável com ela.
Mas ainda há muitas lacunas, que não são fáceis de preencher -é preciso muita pesquisa. Isso é especialmente verdadeiro quando se tenta entender, por exemplo, grupos que se tornaram muito poderosos e importantes no Brasil, como os advogados. Como é sua formação e seu pensamento, como se tornam políticos são coisas importantes de entender, e não é simples, porque varia de região para região. Como juízes e as pessoas do sistema judiciário são escolhidas...
Enfim, questões com as quais as pessoas se confrontam em seu cotidiano, mas não são muito comentadas. Não estou tanto interessado no aspecto estatístico, mas em como esses grupos estão representados em termos da posição que eles têm na sociedade brasileira e como eles vêem o Brasil. Considero, por exemplo, um item muito interessante os diplomatas, sua formação no Itamaraty, o que acontece durante esse treinamento, o que eles pensam, e como isso afeta a maneira de eles imaginarem o Brasil.

Folha - O sr. já chegou a alguma conclusão?
Maxwell -
Não, porque você começa lidando com uma série de preconceitos. Por exemplo, há coisas que abordamos na conferência que fizemos aqui, como a visão esquizofrênica que os brasileiros têm sobre si mesmos: ser o país do futuro e ter os elementos para não ser o país do futuro. O tema envolve como o Brasil vê a si mesmo no ambiente global. E há também as grandes figuras que tentaram interpretar o Brasil ao longo da história.
Muita gente fez isso na primeira metade do século 20 e teve um papel muito importante. Também estou muito interessado em olhar para Lula e Fernando Henrique Cardoso.
São dois regimes que de muitas formas têm, com efeito, uma visão bastante similar de como o Brasil deveria ser, mas eles a abordam com grandes diferenças de retórica e vêm brigando cada vez mais a esse respeito, muito embora sua visão do Brasil no mundo seja, em muitas formas, muito similar. O livro provavelmente vai terminar com uma discussão sobre como o Brasil lida com o mundo globalizado.

Folha - E como o Brasil lida com o mundo globalizado moderno ?
Maxwell -
A questão está ainda a ser respondida, mas me parece que o Brasil está chegando a um consenso para se tornar um poder capitalista de âmbito médio. Isso parece óbvio quando se olha para as estatísticas, mas não quando se olha para a retórica. O que isso quer dizer? Em outras palavras: lidar com uma economia aberta em um mundo aberto. Isso é um segmento.


Collor fez algumas coisas radicais interessantes, mas ainda não é possível falar delas


O outro segmento é ver como o Brasil lidava com o mundo de maneira fechada, que obviamente é o padrão anterior, com Vargas, a indústria nacionalizada e o papel do Estado, que teve seu sucesso mas também teve sua bancarrota. Esses são os estágios e momentos em que estou interessado.

Folha - Quando foi quebrado esse "padrão Vargas"?
Maxwell -
Genericamente, você consegue identificar uma fase, de meados da década de 20 até meados do regime militar, em que o Brasil foi essencialmente um país fechado e bastante autoritário, fosse qual fosse o grau de patriotismo do regime. E isso não aconteceu só com o Brasil, mas com vários países, inclusive na Europa. Esse estágio acabou, e estamos claramente em um outro. Ainda não estão claras suas conseqüências, se serão boas ou más, mas é um estágio definível.

Folha - Quais as características desse novo estágio?
Maxwell -
Isso está bem claro: ele envolve uma economia aberta, comércio com o mundo, privatização das indústrias, enfim, muitas das coisas conhecidas com o chamado Consenso de Washington [conjunto de políticas econômicas neoliberais apresentado em 1989 por economistas propondo reformas liberalizantes para a América Latina], mas obviamente com um componente social e um componente nacional.
Não é necessariamente uma desistência do desenvolvimento e da independência, mas, se der certo, acho que vai tornar o Brasil, na verdade, mais independente e um "player" mais efetivo no mundo.

Folha - Devemos considerar que tudo isso começou com Collor?
Maxwell -
Em alguns sentidos. Collor fez algumas coisas radicais interessantes, mas ainda não é possível vê-las e falar delas, por causa das conseqüências de sua queda. Mas foi claramente um período de transição; muitas dessas coisas estavam se cristalizando e se modificando naquele período.
Você pode datar o começo de tudo provavelmente em algum momento no meio dos anos 80, quando se tornou evidente que o caminho pelo qual o Brasil estava indo havia chegado a um impasse e que novas coisas dramáticas e consistentes tinham que ser tentadas -não um plano por ano ou uma moeda nova por ano, como vinha sendo o caso.
Talvez não houvesse outra escolha para tornar o Brasil competitivo no mundo. Esse é o novo jogo, e, se ele vai resolver os problemas estruturais fundamentais do Brasil, é uma grande questão. Esse novo padrão começa a diminuir a desigualdade? Ele torna o Estado mais eficiente? Dá mais educação ao povo? Mais infra-estrutura e saúde? Incorpora mais gente à economia? As respostas ainda não estão claras.

Folha - Não dá para dizer o que esse novo modelo fez e não fez até agora?
Maxwell -
Nenhuma dessas coisas mudou. Continua havendo uma distribuição desigual de renda, não só no Brasil mas na América Latina como um todo. A distribuição de renda é uma das piores do mundo, e isso não será resolvido do dia para a noite nem com uma revolução do velho tipo, como não o fez em nenhuma outra parte do mundo.

Folha - O sr. acha que as diferenças entre Lula e FHC são meramente retóricas? Há continuidade entre os governos de FHC e Lula? Não houve nenhum tipo de ruptura?
Maxwell -
Não acho que houve ruptura. Houve continuidade no sentido mais amplo de onde o Brasil está. Nesse sentido mais amplo, acho que, uma vez que o Brasil estava no sentido desse novo modelo, não havia muito espaço para manobra. Mas como você se move dessas coisas relativamente fáceis para as mais difíceis?
Nada é fácil no Brasil, mas há coisas mais fáceis, como privatizar: você está vendendo coisas que os outros, presumivelmente, vão querer comprar. É mais difícil mudar leis, atitudes e burocracias para, por exemplo, tornar a compra de casas populares mais fácil no Brasil. Não é simples conseguir empréstimos ou hipotecas; em outras palavras, as coisas que marcaram nos EUA ou na Europa Ocidental uma incorporação sólida das pessoas à economia.
Mas acho que o Brasil está no estágio de tomar aqueles pequenos passos difíceis que podem ajudar a levar recursos para aqueles que deles necessitam. Provavelmente não os mais pobres, mas construir uma classe média -que acho que é o grupo, no Brasil, que está mais espremido entre os realmente ricos, que podem manipular o sistema, e os pobres, que não estão no sistema.
Acho que há um interesse do lado capitalista bem-sucedido de fazer isso acontecer, porque aumentaria o mercado. Em outras palavras, estaria no interesse desse setor fazer a vida melhorar para a maior parte da população. Se bem que isso foi verdade nos últimos 500 anos, e eles não o fizeram... Mas acho que tanto FHC e Lula quanto as pessoas em torno deles são bem genuínas ao quererem isso e não acho que algum deles possa ser criticado por não querer incorporar mais brasileiros a um padrão de vida mais razoável.

Folha - Mas, embora seu discurso já não fosse mais o mesmo, Lula não carregava uma esperança de mudanças que levou o povo a votar nele?
Maxwell -
Acho que o povo esperava mais mudanças e mais rápido. O que acho interessante sobre Lula é que ele não caiu, até agora, na armadilha populista. Ele não prometeu mais do que entregou, desde que entrou no governo.
Uma das coisas mais significativas que ele falou é que não quer ser lembrado por um "Plano Lula". Ele não compactua com a noção de que a cada quatro anos você recria ou reinventa as coisas. Esse é um ponto extremamente importante, e a coisa notável não é simplesmente ele dizer isso, mas, sim, que a maioria da população brasileira, nas pesquisas de opinião, a despeito do que dizem as elites, crê que é isso que ele está tentando fazer.
Sei que isso é chocante para os intelectuais brasileiros, porque eles não querem ouvir isso, mas olhe para outros lugares da América Latina. Como Chávez, que é o exemplo clássico de populismo latino-americano à antiga, prometendo e fazendo coisas que ele só pode fazer por causa da grande renda do petróleo, dificilmente sustentável se os preços do petróleo baixarem; ou os Andes e a Bolívia, com problemas étnicos e de incorporação muito mais sérios que o Brasil.
Se você olhar para o Brasil nesse contexto, essa política muito mais modesta, mas consistente, tem sido mantida há uns dez anos -se se somar as administrações e contar o último ano de Itamar Franco. É um período bastante impressionante na história brasileira.

Folha - O sr. acha que o antiamericanismo cresceu depois do recente assassinato do agente italiano Nicola Calipari por tropas dos EUA no Iraque, quando da libertação da jornalista Giuliana Sgrena?
Maxwell -
Se você entra numa guerra como a do Iraque, haverá situações em que esse tipo de coisa acabará acontecendo. E eu não vejo isso melhorando enquanto esse tipo de guerra acontecer. Há algumas coisas mais positivas acontecendo por aqui. É importante que as pessoas entendam que os EUA são um país complicado, no qual é possível acontecerem coisas como, hoje, a gente ter uma obra brasileira maravilhosa de 200 anos atrás [a "Missa de Nossa Senhora da Conceição"] executada a pequena distância do lugar que era a residência oficial de Bush. As pessoas deveriam se lembrar de que há esse lado dos EUA.
Mas claro que o outro lado sempre estará lá e não vai melhorar. Acho que a invasão do Iraque foi uma má idéia, disse isso na época e por isso não estou pessoalmente surpreso com as conseqüências...

Folha - O sr. vê espaço para a diminuição deste sentimento contra os Estados Unidos?
Maxwell -
Há um desenvolvimento interessante aqui. Os EUA estão se preocupando com o antiamericanismo. Isso é uma mudança: até o 11 de Setembro, a atitude por aqui era a de "que o resto do mundo vá para o inferno", e eles não se importavam com o que o mundo pensava. Nos últimos três ou quatro meses, devo ter recebido uns sete ou oito convites para reuniões discutindo o antiamericanismo. Se isso vai mudar o comportamento deles ainda há de ser visto, mas agora há uma consciência de que esse é um grande fenômeno mundial.


Irineu Franco Perpetuo viajou a convite do Teresa Lozano Long Center of Latin American Studies da Universidade do Texas, em Austin.


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