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Jogo limpo
Kenneth Maxwell fala do livro que lança
no final do ano e diz que a política econômica adotada no país nos últimos dez anos evitou uma recaída populista
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE AUSTIN
Depois de estudar o passado
brasileiro, o britânico Kenneth Maxwell agora quer
explicar o Brasil do presente. Autor de "A Devassa da Devassa"
(que mereceu segunda edição no
ano passado pela Routledge, com o
título original inglês de "Conflicts
and Conspiracies - Brazil and Portugal 1750-1808"), "Mais Malandros -Ensaios Tropicais e Outros" e "Marquês de Pombal - Paradoxo do Iluminismo" [os três pela Paz e Terra],
entre outros, Maxwell prepara, para
o final do ano, "Brazil Beyond 500"
[Brasil Além dos 500], um estudo sobre a sociedade brasileira contemporânea.
Ele tem ainda um livro com lançamento previsto para o Brasil, no primeiro semestre. Trata-se de "O Império Derrotado", que vai sair pela
Companhia das Letras, e conta a história da Revolução dos Cravos, em
1974, e do fim do império colonial
lusitano na África, no ano seguinte.
Vinculado à Universidade Harvard, onde é "senior fellow" do Centro David Rockefeller para Estudos
Latino-Americanos e professor visitante do departamento de história,
Maxwell falou à Folha em Austin, no
Texas, logo depois de assistir à estréia contemporânea da "Missa de
Nossa Senhora da Conceição", composta em 1810 pelo padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), em
edição crítica de Ricardo Bernardes.
O concerto marcou o encerramento do simpósio "Música e Cultura na
Corte Imperial de dom João 6º no
Rio de Janeiro", no qual o historiador inglês apresentou a conferência
"Velho Mundo nos Trópicos - O Rio
na Regência".
Folha - Como surgiu a idéia de um livro sobre o Brasil de hoje?
Kenneth Maxwell - Queria escrever
um livro sobre o Brasil que não fosse
apenas uma história cronológica,
pois eu não achava que isso ajudaria
a explicar o país. Estava interessado
em tentar explicar o Brasil, o que é
obviamente impossível, mas pelo
menos tentar distinguir aqueles que
fossem os cinco ou seis elementos
que eu poderia explicar para mim e
para um público de fala inglesa.
Eu queria olhar para o Brasil com
aprofundamento histórico, mas
com atenção para as circunstâncias
contemporâneas, para explicar como o Brasil se desenvolveu, geograficamente e em termos de sociedade.
E também acho importante ver como sua elite e sua burocracia se formaram. O livro ia se chamar "Brazil
at 500" [Brasil aos 500], mas os anos
passaram; já estou com dois terços
do manuscrito prontos e espero tê-lo terminado até o final do ano.
Folha - Em que estágio ele está?
Maxwell - Obviamente, não está indo muito bem, porque é difícil lidar
com essas questões. É o tipo de livro
que se desenvolve organicamente. Já
redigi a parte histórica, pois obviamente sinto-me mais confortável
com ela.
Mas ainda há muitas lacunas, que
não são fáceis de preencher -é preciso muita pesquisa. Isso é especialmente verdadeiro quando se tenta
entender, por exemplo, grupos que
se tornaram muito poderosos e importantes no Brasil, como os advogados. Como é sua formação e seu
pensamento, como se tornam políticos são coisas importantes de entender, e não é simples, porque varia de
região para região. Como juízes e as
pessoas do sistema judiciário são escolhidas...
Enfim, questões com as quais as
pessoas se confrontam em seu cotidiano, mas não são muito comentadas. Não estou tanto interessado no
aspecto estatístico, mas em como esses grupos estão representados em
termos da posição que eles têm na
sociedade brasileira e como eles
vêem o Brasil. Considero, por exemplo, um item muito interessante os
diplomatas, sua formação no Itamaraty, o que acontece durante esse
treinamento, o que eles pensam, e
como isso afeta a maneira de eles
imaginarem o Brasil.
Folha - O sr. já chegou a alguma conclusão?
Maxwell - Não, porque você começa lidando com uma série de preconceitos. Por exemplo, há coisas que
abordamos na conferência que fizemos aqui, como a visão esquizofrênica que os brasileiros têm sobre si
mesmos: ser o país do futuro e ter os
elementos para não ser o país do futuro. O tema envolve como o Brasil
vê a si mesmo no ambiente global. E
há também as grandes figuras que
tentaram interpretar o Brasil ao longo da história.
Muita gente fez isso na primeira
metade do século 20 e teve um papel
muito importante. Também estou
muito interessado em olhar para Lula e Fernando Henrique Cardoso.
São dois regimes que de muitas
formas têm, com efeito, uma visão
bastante similar de como o Brasil deveria ser, mas eles a abordam com
grandes diferenças de retórica e vêm
brigando cada vez mais a esse respeito, muito embora sua visão do
Brasil no mundo seja, em muitas
formas, muito similar. O livro provavelmente vai terminar com uma
discussão sobre como o Brasil lida
com o mundo globalizado.
Folha - E como o Brasil lida com o
mundo globalizado moderno ?
Maxwell - A questão está ainda a
ser respondida, mas me parece que o
Brasil está chegando a um consenso
para se tornar um poder capitalista
de âmbito médio. Isso parece óbvio
quando se olha para as estatísticas,
mas não quando se olha para a retórica. O que isso quer dizer? Em outras palavras: lidar com uma economia aberta em um mundo aberto. Isso é um segmento.
Collor fez
algumas coisas radicais interessantes, mas ainda não é
possível falar delas
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O outro segmento é ver como o
Brasil lidava com o mundo de maneira fechada, que obviamente é o
padrão anterior, com Vargas, a indústria nacionalizada e o papel do
Estado, que teve seu sucesso mas
também teve sua bancarrota. Esses
são os estágios e momentos em que
estou interessado.
Folha - Quando foi quebrado esse
"padrão Vargas"?
Maxwell - Genericamente, você
consegue identificar uma fase, de
meados da década de 20 até meados
do regime militar, em que o Brasil foi
essencialmente um país fechado e
bastante autoritário, fosse qual fosse
o grau de patriotismo do regime. E
isso não aconteceu só com o Brasil,
mas com vários países, inclusive na
Europa. Esse estágio acabou, e estamos claramente em um outro. Ainda não estão claras suas conseqüências, se serão boas ou más, mas é um
estágio definível.
Folha - Quais as características desse novo estágio?
Maxwell - Isso está bem claro: ele
envolve uma economia aberta, comércio com o mundo, privatização
das indústrias, enfim, muitas das
coisas conhecidas com o chamado
Consenso de Washington [conjunto
de políticas econômicas neoliberais
apresentado em 1989 por economistas propondo reformas liberalizantes para a América Latina], mas obviamente com um componente social e um componente nacional.
Não é necessariamente uma desistência do desenvolvimento e da independência, mas, se der certo, acho
que vai tornar o Brasil, na verdade,
mais independente e um "player"
mais efetivo no mundo.
Folha - Devemos considerar que tudo isso começou com Collor?
Maxwell - Em alguns sentidos. Collor fez algumas coisas radicais interessantes, mas ainda não é possível
vê-las e falar delas, por causa das
conseqüências de sua queda. Mas foi
claramente um período de transição; muitas dessas coisas estavam se
cristalizando e se modificando naquele período.
Você pode datar o começo de tudo
provavelmente em algum momento
no meio dos anos 80, quando se tornou evidente que o caminho pelo
qual o Brasil estava indo havia chegado a um impasse e que novas coisas dramáticas e consistentes tinham que ser tentadas -não um
plano por ano ou uma moeda nova
por ano, como vinha sendo o caso.
Talvez não houvesse outra escolha
para tornar o Brasil competitivo no
mundo. Esse é o novo jogo, e, se ele
vai resolver os problemas estruturais
fundamentais do Brasil, é uma grande questão. Esse novo padrão começa a diminuir a desigualdade? Ele
torna o Estado mais eficiente? Dá
mais educação ao povo? Mais infra-estrutura e saúde? Incorpora mais
gente à economia? As respostas ainda não estão claras.
Folha - Não dá para dizer o que esse
novo modelo fez e não fez até agora?
Maxwell - Nenhuma dessas coisas
mudou. Continua havendo uma distribuição desigual de renda, não só
no Brasil mas na América Latina como um todo. A distribuição de renda é uma das piores do mundo, e isso não será resolvido do dia para a
noite nem com uma revolução do
velho tipo, como não o fez em nenhuma outra parte do mundo.
Folha - O sr. acha que as diferenças
entre Lula e FHC são meramente retóricas? Há continuidade entre os governos de FHC e Lula? Não houve nenhum tipo de ruptura?
Maxwell - Não acho que houve
ruptura. Houve continuidade no
sentido mais amplo de onde o Brasil
está. Nesse sentido mais amplo,
acho que, uma vez que o Brasil estava no sentido desse novo modelo,
não havia muito espaço para manobra. Mas como você se move dessas
coisas relativamente fáceis para as
mais difíceis?
Nada é fácil no Brasil, mas há coisas mais fáceis, como privatizar: você está vendendo coisas que os outros, presumivelmente, vão querer
comprar. É mais difícil mudar leis,
atitudes e burocracias para, por
exemplo, tornar a compra de casas
populares mais fácil no Brasil. Não é
simples conseguir empréstimos ou
hipotecas; em outras palavras, as
coisas que marcaram nos EUA ou na
Europa Ocidental uma incorporação sólida das pessoas à economia.
Mas acho que o Brasil está no estágio de tomar aqueles pequenos passos difíceis que podem ajudar a levar
recursos para aqueles que deles necessitam. Provavelmente não os
mais pobres, mas construir uma
classe média -que acho que é o
grupo, no Brasil, que está mais espremido entre os realmente ricos,
que podem manipular o sistema, e
os pobres, que não estão no sistema.
Acho que há um interesse do lado
capitalista bem-sucedido de fazer isso acontecer, porque aumentaria o
mercado. Em outras palavras, estaria no interesse desse setor fazer a vida melhorar para a maior parte da
população. Se bem que isso foi verdade nos últimos 500 anos, e eles
não o fizeram... Mas acho que tanto
FHC e Lula quanto as pessoas em
torno deles são bem genuínas ao
quererem isso e não acho que algum
deles possa ser criticado por não
querer incorporar mais brasileiros a
um padrão de vida mais razoável.
Folha - Mas, embora seu discurso já
não fosse mais o mesmo, Lula não carregava uma esperança de mudanças
que levou o povo a votar nele?
Maxwell - Acho que o povo esperava mais mudanças e mais rápido. O
que acho interessante sobre Lula é
que ele não caiu, até agora, na armadilha populista. Ele não prometeu
mais do que entregou, desde que entrou no governo.
Uma das coisas mais significativas
que ele falou é que não quer ser lembrado por um "Plano Lula". Ele não
compactua com a noção de que a cada quatro anos você recria ou reinventa as coisas. Esse é um ponto extremamente importante, e a coisa
notável não é simplesmente ele dizer
isso, mas, sim, que a maioria da população brasileira, nas pesquisas de
opinião, a despeito do que dizem as
elites, crê que é isso que ele está tentando fazer.
Sei que isso é chocante para os intelectuais brasileiros, porque eles
não querem ouvir isso, mas olhe para outros lugares da América Latina.
Como Chávez, que é o exemplo clássico de populismo latino-americano
à antiga, prometendo e fazendo coisas que ele só pode fazer por causa
da grande renda do petróleo, dificilmente sustentável se os preços do
petróleo baixarem; ou os Andes e a
Bolívia, com problemas étnicos e de
incorporação muito mais sérios que
o Brasil.
Se você olhar para o Brasil nesse
contexto, essa política muito mais
modesta, mas consistente, tem sido
mantida há uns dez anos -se se somar as administrações e contar o último ano de Itamar Franco. É um
período bastante impressionante na
história brasileira.
Folha - O sr. acha que o antiamericanismo cresceu depois do recente assassinato do agente italiano Nicola
Calipari por tropas dos EUA no Iraque,
quando da libertação da jornalista
Giuliana Sgrena?
Maxwell - Se você entra numa
guerra como a do Iraque, haverá situações em que esse tipo de coisa
acabará acontecendo. E eu não vejo
isso melhorando enquanto esse tipo
de guerra acontecer. Há algumas
coisas mais positivas acontecendo
por aqui. É importante que as pessoas entendam que os EUA são um
país complicado, no qual é possível
acontecerem coisas como, hoje, a
gente ter uma obra brasileira maravilhosa de 200 anos atrás [a "Missa
de Nossa Senhora da Conceição"]
executada a pequena distância do
lugar que era a residência oficial de
Bush. As pessoas deveriam se lembrar de que há esse lado dos EUA.
Mas claro que o outro lado sempre
estará lá e não vai melhorar. Acho
que a invasão do Iraque foi uma má
idéia, disse isso na época e por isso
não estou pessoalmente surpreso
com as conseqüências...
Folha - O sr. vê espaço para a diminuição deste sentimento contra os Estados Unidos?
Maxwell - Há um desenvolvimento
interessante aqui. Os EUA estão se
preocupando com o antiamericanismo. Isso é uma mudança: até o 11 de
Setembro, a atitude por aqui era a de
"que o resto do mundo vá para o inferno", e eles não se importavam
com o que o mundo pensava. Nos
últimos três ou quatro meses, devo
ter recebido uns sete ou oito convites
para reuniões discutindo o antiamericanismo. Se isso vai mudar o comportamento deles ainda há de ser
visto, mas agora há uma consciência
de que esse é um grande fenômeno
mundial.
Irineu Franco Perpetuo viajou a convite
do Teresa Lozano Long Center of Latin American Studies da Universidade do Texas, em
Austin.
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