São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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"Questão de Ênfase" reúne ensaios escritos entre 1981 e 2001 pela crítica Susan Sontag, morta em 2004, sobre Machado de Assis, Debussy e Fassbinder

A cosmopolita peso-pesado

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

A literatura brasileira tem uma dívida com Susan Sontag. Intelectual de prestígio no mundo todo, a autora de "Contra a Interpretação" (L&PM) e "A Vontade Radical" (Companhia das Letras) divulgou com empenho a obra de Machado de Assis [1839-1908] junto do público norte-americano. Sua análise de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" sai agora em português, ao lado de outros 40 ensaios sobre literatura, ópera, cinema, fotografia, dança, política e artes plásticas. Reunindo textos publicados entre 1981 e 2001, "Questão de Ênfase" chega às livrarias poucas semanas depois da morte de Sontag, aos 71 anos.


Uma espécie de seriedade fundamental muitas vezes compromete os escritos de Sontag


Seus comentários sobre "Memórias Póstumas" causam uma impressão estranha. A autora identifica, é claro, a ironia e o pessimismo de Machado de Assis, traçando uma detalhada comparação entre os procedimentos machadianos e os de Laurence Sterne (1713-1768).
O romance de Machado de Assis pertence, diz Sontag, a uma "tradição de bufonaria narrativa -a voz loquaz em primeira pessoa que tenta ganhar as boas graças dos leitores- que procede de Sterne até alcançar, no século 20, "Eu Sou um Gato", de Natsume Soseki, a ficção breve de Robert Walser, "A Consciência de Zeno" e "Senilidade", de Italo Svevo, "Uma Solidão Barulhenta Demais", de Hrabal, e boa parte da obra de Beckett".
A lista de autores já dá idéia da abrangência das leituras de Sontag, uma decidida adversária do provincianismo crítico. Outros autores analisados em "Questão de Ênfase" são o mexicano Juan Rulfo, a russa Marina Tsvetáieva, os poloneses Witold Gombrowicz e Adam Zagajewski e o alemão W.G. Sebald, sem contar um nome pouco conhecido da literatura norte-americana, Glenway Wescott (1901-1987).

Sorte grande
"Eu tinha muitas admirações", diz Susan Sontag em "30 Anos Depois", texto autobiográfico sobre seus primeiros passos como ensaísta. "Havia muito o que admirar", completa. Essa disposição certamente a acompanhou ao longo de toda a carreira. "Fiquei exultante de ser", continua a autora, "a primeira a dar atenção a alguns dos assuntos sobre os quais escrevia; às vezes eu nem conseguia acreditar na minha sorte e em que eles tivessem esperado por mim para serem analisados".
Talvez venha daí a estranheza que, apesar da competência de Susan Sontag, seu ensaio sobre "Brás Cubas" acaba provocando. Não apenas o entusiasmo, mas o tom assertivo, o ritmo de marcha, ao lado de uma curiosa dificuldade no assédio a seu objeto, fazem do estilo da ensaísta o antípoda das reticências e astúcias felinas de Machado. É que, antes de chegar ao assunto, a qualquer assunto, a autora precisa generalizar.
Nesse caso, ela formula uma teoria sobre os escritos autobiográficos que a cada frase parece tropeçar nas próprias dificuldades expositivas:
"Uma vez que só uma vida completa revela a sua forma e o sentido que uma vida pode ter, uma biografia que se pretende definitiva deve esperar até a morte do seu tema. Infelizmente, as autobiografias não podem ser compostas nessas circunstâncias especiais. E quase todas as autobiografias ficcionais dignas de nota respeitaram a limitação das autobiografias reais. (...) Por mais próximo do ponto ideal de observação a que a idade avançada possa levar o autobiógrafo fictício, ele ou ela ainda estará escrevendo no lado errado da fronteira, além do qual uma vida, uma história de vida, enfim faz sentido."
Tantas considerações, apenas para explicar que Brás Cubas escreve depois de morto, derivam de uma espécie de seriedade fundamental -uma falta de leveza e de humor, de jogo de cintura, diríamos- que muitas vezes compromete os escritos de Sontag.
Não quando ela fala de política: seus dois textos sobre a guerra na Bósnia, por exemplo -"Esperando Godot em Sarajevo" e "Lá e Aqui"-, são contundentes, maduros, sem a solidariedade fácil a que se entregam tantos intelectuais politicamente corretos. Uma rápida intervenção sobre o papel dos intelectuais ("Respostas a um Questionário", de 1997), também incluída em "Questão de Ênfase", mostra igualmente Susan Sontag no melhor de sua forma.
Nada mais distante do estilo da autora, contudo, do que o narrador ficcional moderno, cuja voz é "vulnerável, em dúvida a respeito de si mesma", como ela observa a respeito de Glenway Wescott. Numa espécie de mal-entendido de gosto literário, Sontag sempre se vê atraída por escritores cujo poder de sedução ela bem que tenta, mas se mostra incapaz de imitar: Roland Barthes é o caso mais intenso desse desencontro amoroso. Jorge Luís Borges é outro.
Os dois textos que ela dedica a esses autores -o primeiro, longo e claudicante, o segundo, em forma de carta pessoal, assinado candidamente "Susan"- estão entre os mais insatisfatórios da coletânea.

Breguice
Há momentos que raiam a banalidade e a breguice: "Uma prosa de poeta é a autobiografia do fervor", diz Sontag a respeito de Marina Tsvetáieva. Em "A Escrita como Leitura", lemos que "escrever é (...) uma série de permissões que damos a nós mesmos para sermos expressivos de determinadas maneiras. Para saltar. Para voar. Para cair". Nos romances de Elizabeth Hardwick não há nada de novo, "exceto a linguagem, sempre redescoberta. Cauterizar o tormento das relações pessoais por meio das escolhas lexicais arrojadas, da pontuação nervosa, dos ritmos de frase cambiantes. É uma questão de adjetivos. É uma questão de ênfase".
Ênfase não falta aos textos de Susan Sontag, mas os adjetivos estão longe de ser o forte da autora. "Ferdydurke", romance de Gombrowicz, é "extravagante, brilhante, perturbador, audaz, engraçado... maravilhoso". Dom Quixote, o personagem de Cervantes, é caracterizado como "profundo, heróico, genuinamente nobre".
Sem dúvida, Sontag sacrifica o luxo dos adjetivos em benefício da concisão, da frase de impacto, do aforismo radical. "É da natureza do pensamento aforístico estar sempre num estado de conclusão", sentencia a autora, numa frase que bem serviria como contra-exemplo do gênero que professa.

Cinema e ópera
Num texto sobre os cem anos do cinema, Sontag lamenta previsivelmente o estado dessa arte depois da década de 60: "A morte da cinefilia é a morte do cinema", afirma, com evidente intuito polêmico. Mas ainda aqui não escapa do trivial: "O que se levava dos filmes para casa era apenas uma parte da experiência mais vasta de perder-se em rostos, em vidas que não eram as nossas (...), a experiência mais forte era simplesmente render-se ao que estava na tela, ser transportado por aquilo. As pessoas queriam ser seqüestradas pelo filme". A frase final, certamente buscando impacto "aforístico", não diminui a imprecisa e entusiástica histeria do início.
Mas é no cinema e na ópera -áreas especialmente permeáveis ao entusiasmo e à histeria- que Susan Sontag dá mostras de notável discernimento crítico: seus ensaios sobre Wagner, sobre "Pelléas e Melisande", de Debussy, e sobre o cinema de Fassbinder (um paralelo entre "Berlin Alexanderplatz" e "Ouro e Maldição", de Stroheim) valem, sem dúvida, por todo o livro.

Questão de Ênfase
420 págs., R$ 52,00 de Susan Sontag. Trad. Rubens Figueiredo. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/ 11/3707-3500).



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