São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000 |
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+ livros Escrito em forma de diário, "A Chave", de Junichiro Tanizaki, ritualiza a repressão e a incomunicabilidade em uma relação amorosa O império do gelo
Cristovão Tezza
O diário, como forma composicional, tem sido um dos recursos literários mais produtivos
da modernidade; ao mesmo
tempo em que esse gênero nega por
princípio a onisciência narrativa, não abdica entretanto de um ponto de vista
concreto, histórico e temporal sobre o
mundo, um ponto de vista relativo e não
confiável. A desconfiança resulta não
apenas do olhar unilateral próprio da
convenção do diário, mas também da simulação explícita de quem o assina.
A novela "A Chave", do japonês Junichiro Tanizaki, um escritor praticamente
desconhecido no Brasil, mas popular em
seu país, é uma amostra admirável do
potencial de ambiguidade
que o gênero permite. O
próprio Tanizaki declarava que só o que o interessava na literatura eram as
mentiras.
"A Chave" é o cruzamento de dois diários que
se alternam ao longo de
alguns meses, o do marido ("Ikuko, minha adorável esposa, realmente não sei se você está lendo meu
diário ou não") e o da mulher ("Nessas
horas ele com certeza deve descer ao salão de chá, retirar meu diário da gaveta
da cômoda e lê-lo"), e gira em torno do
casal, da filha Toshiko e do amigo Kimura. O sexo está presente em cada uma das
linhas da novela, mas não se espere nada
explícito, picante ou explosivo: o livro é
antes o império do gelo do que o dos sentidos.
"A Chave" será, também, a história de
um crime, um dos mais originais já cometidos na literatura. Insatisfeito com o
desempenho sexual da mulher ("Envergonho-me de começar o ano expondo
tais queixas, mas ao mesmo tempo acho
bom escrever sobre elas"), o marido parece empurrá-la em direção ao colega Kimura (ambos são professores universitários), como a exacerbar o próprio
ciúme e alimentar a paixão, numa sequência de
simulações e subentendidos em que a filha também terá um papel relevante ("os maridos se
acostumam à silhueta de
sua mulher de tal forma que é mais fácil
para um terceiro observar mais atentamente essas sutilezas").
Trata-se de uma guerra misteriosamente consentida por todos, de um jogo
de xadrez sexual que revela em cada um
de seus lances o desejo de escapar de um
mundo congelado de repressão, hierarquia e incomunicabilidade, tudo isso no
limiar tenso da invasão da cultura ocidental. O marido faz referência ao romance de William Faulkner (1897-1962)
"Santuário" (que é justamente a história
brutal de uma colegial violentada por um
bandido), e a mulher, pela primeira vez,
veste roupas ocidentais ("A moda agora
parece ser usar o quimono como se usa
uma roupa européia, mas minha mulher, ao contrário, veste a roupa européia
como se fosse um quimono"). A Chave 126 págs., R$ 21,50 de Junichiro Tanizaki. Tradução de Jefferson José Teixeira. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801). Cristovão Tezza é professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná e autor, entre outros, de "Breve Espaço entre Cor e Sombra" e "Ensaio da Paixão" (Rocco). Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Trecho Índice |
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