São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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Senhores passageiros

Do casal hippie aos peões boiadeiros, dos marinheiros às "mulas" engolidoras de droga, cerca de 58 mil viajantes circulam por dia em Cumbica -que ainda traz, em sua arquitetura, as marcas do regime militar

Lalo de Almeida - 12.dez.09/ Folha Imagem
Movimento de passageiros em Cumbica no horário de pico, em torno de 21h

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há alguns anos, num encontro literário na França, ao descobrirem que eu vivia em São Paulo, uma poeta sul-africana e um escritor escocês imediatamente passaram a discorrer sobre os encantos de Buenos Aires.
Antes mesmo de eu poder observar que Buenos Aires não fica no Brasil, arremataram que a única coisa que os desanimava quando pensavam em ir à Argentina (sabiam muito bem onde fica Buenos Aires) era a fatídica escala no aeroporto de Guarulhos. "Que aeroporto!", a sul-africana exclamou e, para minha surpresa, que nunca tinha pensado no assunto, deu uma boa gargalhada.
A convite da Folha, fomos ver do que ela estava rindo.
No livro "A Week at the Airport" [Uma Semana no Aeroporto], resultado da experiência de uma semana como escritor-residente em Heathrow durante o verão europeu, o escritor anglo-suíço Alain de Botton confessa que sempre sonhou em passar mais tempo nos aeroportos.
Logo se vê que é o sonho de uma pessoa que não conhece a humilhação e a ameaça da recusa de um visto, que não vem de um país periférico nem nunca correu o risco de ficar confinado a um deles, e que não lhe passa pela cabeça associar os aeroportos ao horror de não poder circular livremente.
Para os que estão sujeitos a esses inconvenientes, quanto menos tempo ficarem nos aeroportos (tanto na saída como na chegada), melhor.
Em geral, é gente tentando deixar um mundo para trás, em busca de outro melhor. E, para esses, os aeroportos são ao mesmo tempo a única saída e o maior obstáculo a vencer.

Camuflagem militar
Um pesadelo de barreiras e controles, para não falar dos contratempos mais usuais (atrasos, cancelamentos de voos etc.) a que também está sujeito quem não precisa fugir de nada.
Guarulhos foi inaugurado em janeiro de 1985, construído, em terras cedidas pela Aeronáutica ou desapropriadas pelo governo, num local não especialmente indicado para um aeroporto, por conta dos nevoeiros, onde já havia uma base aérea militar -e tomando isso como uma das principais justificativas.

Um homem sorri para mim; só depois é que percebo que está algemado ao braço da cadeira

Foi concebido, quando Paulo Maluf era governador de São Paulo e João Baptista Figueiredo, presidente da República, segundo a arquitetura do "bunker" de concreto, típica dos aeroportos brasileiros daquele período. O revestimento interno é marrom, cinza e verde, as cores da camuflagem militar.
A ideia hoje tão disseminada do aeroporto como um não-lugar de passagem, ao qual ninguém pertence, se traduz em Guarulhos como um lugar onde ao mesmo tempo tudo é barreira. Os novos aeroportos tendem a ser claros e transparentes, com estruturas brancas e muito vidro, o que lhes dá uma aparência de leveza.
Mas é uma transparência enganosa, que, apesar da beleza e da inteligência arquitetônica (que não se veem em Guarulhos), apenas encobre a opacidade mais intransponível.
Como todo mundo sempre soube (e, se não sabia, aprendeu nos últimos anos), os aeroportos não são apenas o lugar do trânsito, mas também de sua contrapartida, a segurança.
Nesse sentido, Guarulhos, sua arquitetura de "bunker" e seu revestimento de camuflagem militar ironicamente não fazem nada para camuflar ou esconder a opacidade e os meandros intransponíveis de todo aeroporto. Tudo está acontecendo, mas nada se vê. Tudo se passa nos bastidores, em corredores e salas sem janelas, sob o regime do sigilo.
Os funcionários temem não só dar declarações que possam ser tomadas como oficiais, mas as respostas mais simples e esperadas de indivíduos que deveriam estar ali para responder pelo cargo que ocupam.
O responsável pelo serviço de achados e perdidos, ao se ver diante de um jornalista, precisa consultar seu superior por telefone antes de poder dizer o que mais se perde e o que mais se acha em Guarulhos.
E isso só para acabar respondendo, depois de consultar o superior, que não está autorizado a dizer nada -e me conduzir de volta à assessoria de imprensa da Infraero.
Ao contrário de Alain de Botton, que passou uma semana como escritor-residente no novíssimo terminal 5 de Heathrow, a convite da multinacional que administra o aeroporto londrino -um dos três maiores do mundo em tráfego de passageiros-, não tive acesso às áreas restritas de Guarulhos durante a minha "residência" de três dias, com o fotógrafo Lalo de Almeida, no maior aeroporto brasileiro.
O acesso às áreas de imigração, trânsito de passageiros, alfândega, pátio, torre de comando etc. dependia de uma aprovação conjunta da Polícia Federal, da Infraero e da Receita Federal, mas só conseguimos o acordo da polícia.
Policiais à paisana
Se a Polícia Federal autoriza a entrada do jornalista e do fotógrafo em áreas restritas, contanto que acompanhados por um policial (e sem ver nisso nenhum problema ou risco de qualquer natureza), a inspetora de plantão da Receita Federal, corresponsável pelo controle dessas áreas, não pensa duas vezes antes de indeferir o pedido já aprovado pela polícia, sob a alegação de que o caso "não está previsto na lei".
Se não fosse a explicação do medo generalizado que os funcionários do aeroporto parecem ter em relação a tudo o que se refere à informação, o temor de uma inspetora da Receita Federal de permitir que um jornalista e um fotógrafo acompanhados de um policial federal circulem por áreas internas, de sua responsabilidade, poderia dar a impressão errada de que ela tivesse realmente algo a temer.
Todas as áreas públicas são, em princípio, milimetricamente controladas por câmeras de vigilância. Policiais à paisana rondam os saguões de Guarulhos à procura de passageiros com comportamento suspeito.
Na tarde de sexta-feira, quando entramos nas dependências da Polícia Federal para pedir a autorização de acesso às áreas restritas, um homem sentado no fundo de um corredor, longe dos olhares do público, sorri para mim, como se fosse um policial.
Só depois de passar por ele é que percebo que está algemado ao braço da cadeira.
A julgar pelas roupas penduradas nas grades, as duas celas que posso entrever no interior de uma sala contígua estão ocupadas. Pela porta entreaberta de um pequeno banheiro, noto que uma mulher com luvas de plástico entrega a um agente o material que acabou de recolher. Um casal de "engolidos" acaba de ser preso em flagrante. Os dois foram induzidos a vomitar a droga antes de serem autuados e transferidos para um hospital.
"Os traficantes aliciam gente desempregada na praça da República. Quem leva a droga só tem o contato da pessoa que o contratou. E acaba pegando 15 anos", diz um policial.
"Eles próprios se denunciam.
A mulher estava muito nervosa. Nós os abordamos, eles costumam cair nas primeiras perguntas. Pedimos que nos acompanhem e aí eles se entregam.
Também recebemos denúncias anônimas", completa o policial responsável pela operação, sem se identificar, deixando que eu mesmo conclua o óbvio: que os próprios aliciadores sacrificam algumas de suas "mulas" para distrair ou saciar o controle da polícia, como um fazendeiro que joga um boi no rio para atrair as piranhas, enquanto o rebanho atravessa são e salvo do outro lado.
"Estamos de olho em algumas rotas, para a Espanha, a África do Sul, Dubai", diz a delegada de plantão.
Comparado com os maiores centros de conexões aéreas internacionais, como Heathrow, um aeroporto na América do Sul, por maior que seja (Guarulhos não está nem entre os 30 mais movimentados do mundo), parece bem menos internacional.
Há uma certa regularidade entre os 58 mil passageiros que circulam por ali diariamente.
São na maioria brasileiros, viajando a turismo ou a trabalho e, desde que se popularizou o transporte aéreo no país, gente de todas as classes, incluindo os que antes só viajavam de ônibus ou não viajavam.
Entre os estrangeiros, a maioria é branca e ocidental.
Os africanos se concentram nos voos para Angola e a África do Sul. Todos os voos para a Ásia fazem escala em algum país americano, europeu ou africano. Os voos diretos para o Oriente Médio são recentes.
A impressão de uniformidade é confirmada pela exceção.
Em dois dias consecutivos, os dois passageiros que mais destoam são por acaso marinheiros profissionais, ambos asiáticos. Sukhginber Singh, um indiano de turbante preto, toma um sundae de chocolate, enquanto espera, na noite de sexta-feira, seu voo para Dubai, onde fará conexão para Mumbai [Índia]. Trabalha na Marinha Mercante. Veio para o Brasil a bordo de um navio de Cingapura, depois de passar por Nova Orleans [EUA].
Terminado o contrato de sete meses, está voltando para casa. Não é a primeira vez que embarca de volta em Guarulhos. Em 2005, veio ao Brasil num navio da Letônia. Não dá para saber se a expressão de resignação é um traço cultural ou de personalidade, se o sundae que ele tem na mão foi por escolha ou por falta de opção: "A única coisa ruim neste aeroporto é a comunicação. Como é que ninguém fala inglês?
Não entendem nada quando pergunto onde é o banheiro nem quando quero comer", diz, exibindo, como um troféu, o sundae que lhe restou, por limitações linguísticas.

Cubículos para dormir
No dia seguinte, é a vez de o indonésio Nawang Budianto perder sua conexão por causa do mau tempo.
Budianto usa uma bandana preta amarrada na cabeça e traz uma bolsa Dolce & Gabbana colorida a tiracolo. Trabalha num navio de cruzeiro que sai da Flórida, passa por Barbados e sobe o Amazonas até Manaus.
Por causa de uma emergência familiar, foi obrigado a abandonar o cruzeiro no meio e voltar para Jacarta. O mau tempo atrasou o voo de Manaus para São Paulo. Vai ter que passar 24 horas em Guarulhos. Mostra o plano de viagem. Deveria ter embarcado na noite de sábado, para chegar a Jacarta na segunda, dia 14, com escalas em Nova York e Dubai.
Agora, só vai chegar no dia 16.
A madrugada reduz o aeroporto à espera. Os poucos passageiros que restaram se espalham pelos bancos ou ao redor deles, deitados no chão.
Às 2h, Budianto está desolado, comendo batatas fritas e olhando para o vazio, sentado numa das praças de alimentação. Ao que parece, a companhia aérea não lhe ofereceu uma noite de hotel. E ele agradece ao ser informado de que o aeroporto dispõe de cubículos sem janelas por R$ 50 a primeira hora e R$ 15 as demais.
É um preço que o francês Raphaël Pertuzi e a costa-riquenha Jessica Portuguez certamente não estão dispostos a pagar pelos três dias que terão de passar no aeroporto.
Assim como eu, chegaram na quinta-feira, depois de uma viagem de um ano e meio, que os levou da América Central para a Europa, a África e o Brasil, de cargueiro, carona, ônibus, táxi, veleiro e bicicleta.
E esperavam embarcar para a Costa Rica, com escala no Panamá, às 4h40 da madrugada de domingo, quando também terminará a minha "residência" -as coincidências acabam aí, porque, ao contrário do casal de mochileiros, não pretendo dormir em Guarulhos.
Quando nos encontramos, os dois estão saindo da lanchonete mais natural que conseguiram achar no aeroporto. "Vamos ficar famosos nos nossos últimos dias no Brasil", ele se vira para ela e diz, rindo, ao saber que somos de um jornal.
Casa na árvore
Os dois têm 28 anos. Jessica tem os cabelos muito pretos e crespos, presos em trancinhas.
É baixinha, usa sapato de crochê e saia.
Raphaël é alto, muito magro, com os cabelos castanhos cacheados. Usa uma camiseta de batique, calças soltas de algodão e sandálias. Vivem de artesanato, tocando didjeridu (instrumento australiano de sopro, feito de troncos de eucalipto ou bambu carcomidos por cupins e com mais de um metro de comprimento, que ele aprendeu a tocar há 13 anos, em Amsterdã) ou jogando malabares nos sinais de trânsito.
Raphaël está há sete anos fora da França. Trabalhou na Guiana Francesa como técnico florestal. Queria construir uma casa numa árvore. Pegou duas malárias. Os efeitos da primeira duraram seis meses. Por pouco não escapou da segunda.
Ao receber alta, saiu sozinho pela América do Sul e acabou na Costa Rica.
Os dois se conheceram há dois anos, quando Raphaël trabalhava como jardineiro de um hotel no litoral do Pacífico e Jessica morava numa barraca, na praia, com uma cadela. O pai, que trabalha com exportação de frutas, arrumou dois lugares para eles num cargueiro para a Bélgica.
A ideia era continuar de carona até o Senegal e depois de veleiro, também de carona, de volta para a Costa Rica. O programa furou quando o dono do veleiro no qual embarcaram em Dacar, para a Venezuela, decidiu parar em Cabo Verde devido ao mau tempo e sem previsão de seguir viagem.

"Como é que ninguém fala inglês aqui? Ninguém entende quando pergunto onde é o banheiro nem quando quero comer"

Com o dinheiro que tinham, compraram uma passagem para Fortaleza. Em Aracati, no Ceará, compraram duas bicicletas velhas (uma Monark e uma de carga) e, durante dois meses e meio, fizeram 1.600 quilômetros, até Lençóis (BA).
"Foi a descoberta do Brasil. Passamos por muitos lugares.
Nunca vimos nada assim. As pessoas nos deixavam viver em casas abandonadas. Em qualquer outro país, teríamos sido expulsos. Os vigias nos davam abrigo. As pessoas nos davam comida vencida nos restaurantes e nos supermercados. Você pode achar que não é nada, mas quando viajei sozinho pela Argentina, tinha que pagar até por comida vencida", diz Raphaël.
Depois de seis meses na Chapada Diamantina, seguiram de ônibus até Brasília, onde ficaram com artistas de circo. Decidiram abortar a aventura quando Jessica teve de ser internada com uma crise de asma.
"Pegamos um ônibus de sacoleiros para São Paulo. Um ônibus ilegal, de uma empresa privada. Quando saímos de Brasília, o cobrador passou fazendo oração para não sermos parados pela polícia. Eles nos deixaram num posto de gasolina aqui em São Paulo, hoje, às 5h da manhã."
Em Guarulhos, descobriram que a passagem comprada no guichê da companhia aérea era bem mais cara do que no site e que, on-line, só podiam comprar para dali a três dias.
"A sorte foi que não precisamos pagar a multa da imigração. Estamos ilegais há sete meses. Tínhamos guardado o dinheiro da multa, mas a polícia nos disse que só precisamos pagar no dia em que voltarmos ao Brasil. Se tivéssemos que pagar a multa, não sobrava dinheiro nem para o pão de queijo", ele continua.
Quando termina de contar a história, estou ao mesmo tempo admirado e humilhado.
Nunca tive coragem de fazer nada parecido. "Você tem que ter um equilíbrio entre confiança e inconsciência. E aí você chega mais longe", Raphaël me diz, sem que eu tenha perguntado nada.
Durante os três dias que ficaram em Guarulhos, os dois dormiram no chão do mezanino, encostados em suas mochilas, lavaram as roupas com o sabão dos banheiros e as secaram nos bosques do estacionamento.
"Este aeroporto é muito tranquilo. Ninguém nos incomodou. Não me imagino passando três noites num aeroporto americano", diz Jessica.
Na segunda noite, depois de eu os convidar para jantar, Raphaël faz questão de retribuir o convite com uma demonstração de didjeridu, o instrumento aborígene, do lado de fora do setor de embarque, diante de taxistas, carregadores e alguns fumantes estarrecidos.
Na madrugada de domingo, eu os acompanho até o check-in. Estão felizes de voltar para casa (eu também). Cansaram de lutar pela sobrevivência mais imediata. Querem trabalhar com meio ambiente. Vão se casar. É estranho estar ali, às três da manhã, me despedindo de um casal de hippies estrangeiros que conheci faz três dias, como se fôssemos parentes.

Vazio
Desejo-lhes boa viagem e vou embora pelo aeroporto vazio.
As imagens dos últimos três dias continuam na minha cabeça. Os dois peões (ou "bullriders", como diziam), com chapéus pretos de boiadeiros, voltando para Comodoro, no interior do Mato Grosso, depois de anos fazendo o circuito dos rodeios profissionais nos EUA.
Os cinco meninos que rondam os saguões do aeroporto, repetindo dia e noite, em inglês, "shoeshine" e "money" para os passageiros estrangeiros, e que fogem correndo ao me confundir com um agente do Conselho Tutelar. O pai que, depois de despachar o filho para Amsterdã, espera ansioso a passagem da tripulação do mesmo voo para lhes dizer que o filho está naquele avião.
O rapaz na cadeira de rodas que, depois de um momento de hesitação e inércia, depois de ter se despedido da namorada na entrada do embarque, de repente avança num ímpeto por entre a massa de gente que se despede de parentes e amigos, para tentar vê-la mais uma vez.
E é como se só aquela frase sobre confiança e inconsciência, que também continua na minha cabeça, pudesse dar algum sentido a toda essa gente de passagem que faz os dias e as noites de um aeroporto.


BERNARDO CARVALHO é escritor, jornalista e tradutor, autor de "O Filho da Mãe", "Nove Noites", "Mongólia" (todos pela Cia. das Letras) e "O Mundo Fora dos Eixos" (Publifolha).


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