São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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Utopia vip


Após passar uma semana em Heathrow, em Londres, o escritor suíço Alain de Botton defende que aeroportos são espaços democráticos, mas diz que as pessoas não deveriam viajar tanto

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Em mais um livro de prosa carregada de imagens poéticas e leves considerações filosóficas, o best-seller Alain de Botton retoma o tema da viagem em "A Week at the Airport" (Uma Semana no Aeroporto, Profile Books, 112 págs., °8,99, R$°26), lançado em setembro no Reino Unido.
Assim como "A Arte de Viajar" (ed. Rocco), trata-se de um livro ilustrado. Desta vez, em lugar de reproduções de obras de arte, o produto (ainda sem data de lançamento definida no Brasil) tem fotografias de Richard Baker, que acompanhou o escritor em suas visitas a Heathrow, o maior aeroporto britânico, em agosto.
Escrito a pedido da empresa controladora de Heathrow, o volume dá continuidade ao interesse do suíço (radicado em Londres) nos detalhes pouco visíveis da aviação civil.
Essa indústria, pressionada pela concorrência acirrada, por apelos à menor emissão de poluentes e pela redução de custos, é tratada pelo autor mais como "arte" e como "paixão".
Enquanto ele concedia esta entrevista à Folha por telefone, a British Airways e sindicalistas -que protestam contra a redução das equipes de comissários de voo e contra o congelamento de salários- negociavam para evitar uma greve que ameaça cancelar cerca de 1 milhão de bilhetes durante os feriados de fim de ano. Não houve acordo e a greve foi barrada na Justiça na quinta-feira passada. Os sindicalistas prometem insistir nos protestos.

 

FOLHA - Em seu livro, o sr. diz que, "considerada em termos coletivos, como uma indústria coesa, a aviação civil nunca apresentou lucro.
Igualmente significativa, a publicação de livros tampouco"...
ALAIN DE BOTTON
- Contrariando um princípio básico do capitalismo, essas indústrias não têm o lucro como motivação, mas a paixão.

FOLHA - A subvenção, o perdão de dívidas para a aviação civil têm mais a ver com paixão do que com um esforço civilizatório?
DE BOTTON
- Obviamente há razões de identidade nacional para as pessoas quererem ter companhias aéreas e seus países as apoiarem, mas a motivação principal é a diversão. É divertido voar.
Atores irracionais investem nesse mercado, mesmo se não houver retorno em dinheiro.
Isso dificulta que a concorrência se organize em torno do lucro. De um ponto de vista de negócio, temos um mercado corrompido.

FOLHA - Atualmente é comum lembrar quanto as viagens de carro e avião contribuem para a emissão de carbono na atmosfera. Como defensor do ato de viajar, o que pensa a respeito?
DE BOTTON
- Os voos representam 4% das emissões. Isso é muito, mas não 40%, que é o caso da indústria pecuária. Comer um hambúrguer ou um bife pode ser ruim para o ambiente, mas é o avião que é tomado como símbolo da poluição. Afinal, é uma máquina grande, não um animal quadrúpede.
Mas teremos de viajar menos. Voamos muito sem necessidade. Faço isso frequentemente: recebo um convite para algum evento, as passagens são baratas, penso que seria tolice dizer não. Executivos que poderiam resolver tudo pela internet, por teleconferência, ainda viajam demais.
Um efeito interessante é que as pessoas irão viajar com menor frequência, e, geralmente, quem mais se diverte nos aeroportos é quem viaja menos. Retornaremos à época em que o ato de viajar era algo especial.

FOLHA - Quão igualitário é um aeroporto?
DE BOTTON
- Todos podem se olhar e compartilham a maioria dos espaços... São forçados a ver seus companheiros humanos.
O lugar é cheio de extremos.
Em Heathrow vemos grandes famílias, que claramente não são ricas, partindo para a África. Elas provavelmente levaram muito tempo juntando dinheiro para viajar e estão carregadas de presentes, ao lado de executivos de primeira classe.

FOLHA - Em "A Arte de Viajar", o sr. descreve a interpretação que o escritor e crítico T.S. Eliot fez do elogio de Baudelaire, sobre as máquinas e os lugares relacionados às viagens. Em "Uma Semana no Aeroporto", o sr. segue os passos de Baudelaire?
DE BOTTON
- De certa forma, sim. O aeroporto me fascina porque não pertence a ninguém. Trata-se de um lugar onde quem não se considera pertencente a lugar nenhum pode se sentir em casa. Existe em um universo separado, a "Aeroportolândia".
Curiosamente, muitas pessoas que me viram no aeroporto vieram segredar: "Não conte para ninguém, mas devo ser a única pessoa que adora aeroportos". Há uma cultura de achar ruim o aeroporto, a confusão, mas no fundo muita gente gosta. É um lugar de sonhos.

FOLHA - Durante a confusão das festas de fim de ano ou ao longo das agruras de uma greve, o aeroporto não perde sua magia?
DE BOTTON
- É claro que, se você está levando cinco crianças e não consegue viajar, pode ser uma experiência infernal.
Mas, quando há um pouco de atraso, como nos dias em que neva sobre a pista, as pessoas acabam conversando, e a frieza britânica desaparece.

FOLHA - Após essa experiência em Heathrow, qual é sua opinião sobre o filme "O Terminal", de Steven Spielberg?
DE BOTTON
- Eu não o assisti para não ficar influenciado. Ainda não o vi. Gosto de pensar em "Alice nas Cidades", de Wim Wenders: trata muito de aeroportos, é um filme lindo. Aeroportos são muito cinematográficos e acho que o fotógrafo [Richard Baker] conseguiu valorizar esse aspecto no livro.

FOLHA - Depois de escrever um livro sobre a arte de viajar, o que o surpreendeu em Heathrow?
DE BOTTON
- Há detalhes do processo, como o homem que percorre a pista de pouso todas as noites em busca de metais que possam causar acidentes.
Ou uma função na British Airways que consiste em estabelecer as rotas de cada aeronave num programa de computador, em que cidade ela estará daqui a uma semana.
A gente pensa que o avião está sempre indo para o mesmo lugar de onde veio, mas não é assim.

FOLHA - Num mundo de padronização, que diferenças podemos encontrar entre os aeroportos?
DE BOTTON
- É preciso olhar para as pequenas diferenças: as formas como são escritas as placas, os cafés... Há uma carga enorme de sabor local. É como os comerciais de Coca-Cola:
não é porque a bebida é a mesma que os comerciais são iguais no mundo todo.

FOLHA - Quais são seus aeroportos favoritos?
DE BOTTON
- Heathrow é um deles, inclusive por ser perto de casa. O de Zurique [Suíça], muito bonito. E o de Cingapura, muito feio, mas exótico. Sou também um fã dos pequenos aeroportos. Evocam o tempo dos pioneiros da aviação.

FOLHA - Qual é sua opinião sobre os aeroportos brasileiros?
DE BOTTON
- Tenho lido sobre problemas relacionados à crescente demanda aí, mas não me lembro de detalhes específicos.
Sei que há uma cultura muito diferente por causa das grandes distâncias: o brasileiro não vê uma viagem de três horas como muito longa, enquanto o europeu faz mais alarde, pois representa o tempo de ir de uma ponta a outra em seus países.
Minha principal lembrança é viajar num avião da Varig. O voo atrasou demais, foi caótico, mas agradável, com um sabor brasileiro. As pessoas eram amigáveis. A tripulação pediu que os passageiros votassem, e decidimos comer o jantar antes mesmo de o avião decolar.
Esse tipo de coisa não existe em uma empresa europeia.

FOLHA - O sr. considera "Uma Semana no Aeroporto" um complemento à "Arte de Viajar"?
DE BOTTON
- Está mais para lente de aumento ou capítulo extra. No primeiro livro eu escrevia um capítulo sobre aeroportos, aqui pude detalhar mais, além das belas fotos.

FOLHA - Ambos têm a mesma prosa poética. Inclusive há fórmulas repetidas, como lembrar que o avião sobrevoa uma cidade enquanto lá embaixo "enchem-se chaleiras" e o pouso da aeronave libera "uma rajada de fumaça que deixa evidentes sua velocidade e seu peso". Por que considerou isso necessário?
DE BOTTON
- Era necessário porque não dá para querer que eu reinvente a roda... Pensei em repetir algumas imagens; nem todo mundo leu antes. Acho que ninguém se incomodou com uma ou duas metáforas repetidas.

FOLHA - Como foi escrever sob encomenda?
DE BOTTON
- Não foi diferente de qualquer outro livro. Tive liberdade para escrever o que quisesse. Seria ruim se fosse um livro de propaganda de Heathrow, se soasse como publicidade; a ideia era fazer uma reportagem.

FOLHA - Eles o convidaram por causa de "A Arte de Viajar"?
DE BOTTON
- Na verdade, sondaram vários escritores e eu me candidatei. "A Arte de Viajar" me fez pensar que eu seria o homem certo para o serviço.

FOLHA - Enquanto conversamos, sindicalistas negociam uma greve que pode paralisar Heathrow. Qual é sua opinião sobre a demanda dos trabalhadores?
DE BOTTON
- É suicídio pedir o que eles pedem à British Airways, que é manter certos direitos que quase todas as suas concorrentes não oferecem.
É um peso, é como voar com um submarino pendurado no avião. Os empregados da British Airways têm uma vida confortável, mas correm o risco de ficar sem emprego.

FOLHA - Sua entrevista com Willie Walsh, o presidente da British Airways, converte uma "falha jornalística", isto é, a ausência de perguntas sobre a crise da empresa, em vantagem, buscando o homem que há dentro do administrador. Desde então Walsh tem sido uma das figuras centrais na negociação com os sindicalistas. Qual é sua opinião sobre ele e sua atuação?
DE BOTTON
- Nem queria entrevistá-lo, mas isso me foi apresentado como uma honra, uma oportunidade. Sabia que ele seria discreto, profissional, não faria revelações, o que seria chato. Na negociação ele é durão, conhecido por reduzir o número de funcionários em sua empresa anterior.
Mas, agora, está entre duas situações difíceis: ceder aos sindicatos pode significar tirar as esperanças da British Airways de mudar sua política trabalhista, correndo o risco de destruir a empresa lentamente; mas enfrentar uma greve pode destruí-la rapidamente.

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