São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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Gilda, Gilda, Gilda

Negligenciado por quase 30 anos, "Exercícios de Leitura" marcou a reflexão crítica com seu estilo provocador

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentre os ensaístas formados pela USP, Gilda de Mello e Souza oferece o mais provocativo e atual estilo de leitura.
À semelhança de Mário de Andrade [1893-1945], a quem se refere nominalmente nos "Exercícios de Leitura", ela tem "uma concepção aberta, totalmente dinâmica do ofício de pensar", "uma confiança no pensamento como percurso e não como ponto de chegada".
Formada por modernistas europeus e brasileiros de peso, seu estilo de leitura da arte é devorado pela "ansiedade da influência", teorizada por Harold Bloom ["A Angústia da Influência - Uma Teoria da Poesia", ed. Imago]. A alimentar e movimentar seu estilo pessoal está o recurso ao paradoxo. Conceito, aliás, que se repete à exaustão no primeiro ensaio dos "Exercícios de Leitura". Recorde-se a frase emblemática que abre o livro: "O que me traz aqui, na presença de vocês, é na verdade um paradoxo".
A preocupação teórica dos exercícios de leitura é com o percurso percorrido e em aberto da aquisição e da transmissão do saber. Ali estava ela, mestra, diante de discípulos, para falar de três dos seus mestres: Jean Maugüé [1904-85], Lévi-Strauss [1908-2009] e Roger Bastide [1898-1974].
O bastão passado pelos velhos a ela, a que correspondeu com amor e competência, o repassou em história e reflexão aos futuros mestres. Um instante exemplar.
Numa aula de 1972, que teria sido "inaugural", mas na verdade é "terminal", a mestra opta pela astúcia do paradoxo para falar aos discípulos, não sobre os "mestres do passado", mas sobre os mestres de sempre.
A aula, que deveria simbolizar a abertura do ano letivo -e a simboliza pelo viés da "ansiedade da influência" carreada ao mais jovem pelo mestre-, corresponde ao fechar numa noz, como teria dito [o filósofo italiano] Benedetto Croce, a primeira idade universitária da USP por uma testemunha, protagonista e remanescente.

Rico e pobre
No período anterior a 1972, houve a possibilidade da "união híbrida de disciplinas díspares". Fechou-se numa noz "a estética rica e a estética pobre dos professores franceses", para que dela a nova geração pudesse se alimentar. Será que se alimentou?
Ao adjetivarem o substantivo estética, "rico" e "pobre" não trazem a conotação econômica que veio a se tornar moeda corrente entre os ensaístas uspianos. Guardam, respectivamente, valor absoluto e valor arqueológico que, se respeitados, poderiam ter sido mais bem aproveitados e questionados.
Os adjetivos traduzem, pois, formas divergentes de desbravamento do saber universal e nacional, que foram e ainda são oferecidas aos discípulos paulistas pelos mestres franceses.
Dois deles, Maugüé e Lévi-Strauss, permanecem eurocêntricos. São hegelianos. Seu ensino "supõe uma hierarquia das artes e um ideal absoluto de beleza". Acabam por rejeitar a vanguarda que diziam defender. Já Bastide, modesto tradutor de Gilberto Freyre, se torna "um brasileiro em potencial".
Ele não se preocupa com a obra de arte -e menos ainda com a obra-prima. Graças à invenção de categorias imersas numa estética de antropólogo, tenta surpreender o modo como o barroco tropical revela "uma das formas mais válidas e mais altas do conhecimento".
Dentre os três, Bastide é o autêntico defensor da vanguarda.
Hoje é, por um lado, precursor de um Stuart Hall e, por outro, de um James Clifford. E Gilda de Mello e Souza, na cadeira de estética da USP, o negligenciado elemento de "liaison". Só por negligência dos leitores é que posso entender os 30 anos que separam a primeira da segunda edição de "Exercícios de Leitura" [publicado originalmente em 1980].

Instante exemplar
Ainda de Bastide, Gilda rouba o "sentido da ascensão da mulher", ligado à "vida dos salões" numa sociedade patriarcal que se verticaliza. Rouba-o para se emaranhar na "miopia" do narrador de "A Maçã no Escuro", de Clarice Lispector.
Naquele romance, a analista surpreende "o homem pela sua própria negação, isto é, pela ausência de linguagem e pensamento". O cuidado clariciano pelo instante exemplar, que é também alicerce do paradoxo, rejeita a trama romanesca, pilar do romance oitocentista, masculino e burguês.
A visão de míope -expressão da "filosofia do instante", frisemos- está para o estilo feminino assim como a estética "camp" (Sontag) está para o estilo gay hollywoodiano. Será que o soubemos no devido momento? Ou negligenciamos?
A lista da atualidade dos ensaios seria infinita.
De Clarice a Tarsila do Amaral e a Anita Malfatti, um salto.
O comportamento desta "é de quem foi rejeitada: pela vida, que não a fez bonita; pela crítica, que investiu contra a sua arte; pela estética vigente, que não lhe permitiu extravasar o drama pessoal; pelos companheiros, que não a trataram como mulher".
Outro salto. Agora da rapsódia "Macunaíma" [de Mário de Andrade] para o estatuto de autoficção (híbrido de autobiografia e ficção), de que fala Vincent Colonna em "Autofiction et Autres Mythomanies Littéraires" [Autoficção e Outras Mitomanias Literárias, ed. Tristram]. Leia-se o desbravador ensaio "O Avô Presidente".
Os minguados toques gráficos oferecidos a uma resenha não permitem outros toques críticos.


SILVIANO SANTIAGO é crítico literário e escritor, autor de "Heranças" (ed. Rocco).

EXERCÍCIOS DE LEITURA
Autora: Gilda de Mello e Souza
Editoras: Duas Cidades/34 (tel. 0/ xx/ 11/3816-6777)
Quanto: R$ 44 (368 págs.)


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