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Gilda, Gilda, Gilda
Negligenciado por quase 30 anos, "Exercícios de Leitura" marcou a reflexão crítica com seu estilo provocador
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dentre os ensaístas
formados pela
USP, Gilda de Mello e Souza oferece
o mais provocativo
e atual estilo de leitura.
À semelhança de Mário de
Andrade [1893-1945], a quem
se refere nominalmente nos
"Exercícios de Leitura", ela
tem "uma concepção aberta,
totalmente dinâmica do ofício
de pensar", "uma confiança no
pensamento como percurso e
não como ponto de chegada".
Formada por modernistas
europeus e brasileiros de peso,
seu estilo de leitura da arte é
devorado pela "ansiedade da
influência", teorizada por Harold Bloom ["A Angústia da Influência - Uma Teoria da Poesia", ed. Imago].
A alimentar e movimentar
seu estilo pessoal está o recurso ao paradoxo. Conceito, aliás,
que se repete à exaustão no primeiro ensaio dos "Exercícios
de Leitura". Recorde-se a frase
emblemática que abre o livro:
"O que me traz aqui, na presença de vocês, é na verdade um
paradoxo".
A preocupação teórica dos
exercícios de leitura é com o
percurso percorrido e em aberto da aquisição e da transmissão do saber. Ali estava ela,
mestra, diante de discípulos,
para falar de três dos seus mestres: Jean Maugüé [1904-85],
Lévi-Strauss [1908-2009] e Roger Bastide [1898-1974].
O bastão passado pelos velhos a ela, a que correspondeu
com amor e competência, o repassou em história e reflexão
aos futuros mestres. Um instante exemplar.
Numa aula de 1972, que teria
sido "inaugural", mas na verdade é "terminal", a mestra opta
pela astúcia do paradoxo para
falar aos discípulos, não sobre
os "mestres do passado", mas
sobre os mestres de sempre.
A aula, que deveria simbolizar a abertura do ano letivo -e
a simboliza pelo viés da "ansiedade da influência" carreada ao
mais jovem pelo mestre-, corresponde ao fechar numa noz,
como teria dito [o filósofo italiano] Benedetto Croce, a primeira idade universitária da
USP por uma testemunha, protagonista e remanescente.
Rico e pobre
No período anterior a 1972,
houve a possibilidade da "união
híbrida de disciplinas díspares". Fechou-se numa noz "a
estética rica e a estética pobre
dos professores franceses", para que dela a nova geração pudesse se alimentar.
Será que se alimentou?
Ao adjetivarem o substantivo
estética, "rico" e "pobre" não
trazem a conotação econômica
que veio a se tornar moeda corrente entre os ensaístas uspianos. Guardam, respectivamente, valor absoluto e valor arqueológico que, se respeitados,
poderiam ter sido mais bem
aproveitados e questionados.
Os adjetivos traduzem, pois,
formas divergentes de desbravamento do saber universal e
nacional, que foram e ainda são
oferecidas aos discípulos paulistas pelos mestres franceses.
Dois deles, Maugüé e Lévi-Strauss, permanecem eurocêntricos. São hegelianos. Seu ensino "supõe uma hierarquia das
artes e um ideal absoluto de beleza". Acabam por rejeitar a
vanguarda que diziam defender. Já Bastide, modesto tradutor de Gilberto Freyre, se torna
"um brasileiro em potencial".
Ele não se preocupa com a
obra de arte -e menos ainda
com a obra-prima. Graças à invenção de categorias imersas
numa estética de antropólogo,
tenta surpreender o modo como o barroco tropical revela
"uma das formas mais válidas e
mais altas do conhecimento".
Dentre os três, Bastide é o autêntico defensor da vanguarda.
Hoje é, por um lado, precursor de um Stuart Hall e, por outro, de um James Clifford. E
Gilda de Mello e Souza, na cadeira de estética da USP, o negligenciado elemento de "liaison". Só por negligência dos leitores é que posso entender os
30 anos que separam a primeira da segunda edição de "Exercícios de Leitura" [publicado
originalmente em 1980].
Instante exemplar
Ainda de Bastide, Gilda rouba o "sentido da ascensão da
mulher", ligado à "vida dos salões" numa sociedade patriarcal que se verticaliza. Rouba-o
para se emaranhar na "miopia"
do narrador de "A Maçã no Escuro", de Clarice Lispector.
Naquele romance, a analista
surpreende "o homem pela sua
própria negação, isto é, pela ausência de linguagem e pensamento". O cuidado clariciano
pelo instante exemplar, que é
também alicerce do paradoxo,
rejeita a trama romanesca, pilar do romance oitocentista,
masculino e burguês.
A visão de míope -expressão
da "filosofia do instante", frisemos- está para o estilo feminino assim como a estética
"camp" (Sontag) está para o estilo gay hollywoodiano. Será
que o soubemos no devido momento? Ou negligenciamos?
A lista da atualidade dos ensaios seria infinita.
De Clarice a Tarsila do Amaral e a Anita Malfatti, um salto.
O comportamento desta "é de
quem foi rejeitada: pela vida,
que não a fez bonita; pela crítica, que investiu contra a sua arte; pela estética vigente, que
não lhe permitiu extravasar o
drama pessoal; pelos companheiros, que não a trataram como mulher".
Outro salto. Agora da rapsódia "Macunaíma" [de Mário de
Andrade] para o estatuto de autoficção (híbrido de autobiografia e ficção), de que fala Vincent Colonna em "Autofiction
et Autres Mythomanies Littéraires" [Autoficção e Outras
Mitomanias Literárias, ed.
Tristram]. Leia-se o desbravador ensaio "O Avô Presidente".
Os minguados toques gráficos oferecidos a uma resenha
não permitem outros toques
críticos.
SILVIANO SANTIAGO é crítico literário e escritor, autor de "Heranças" (ed. Rocco).
EXERCÍCIOS DE LEITURA
Autora: Gilda de Mello e Souza
Editoras: Duas Cidades/34 (tel. 0/ xx/
11/3816-6777)
Quanto: R$ 44 (368 págs.)
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