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O sociólogo Oskar Negt, amigo do social-democrata Gerhard Schroeder, fala sobre a crítica atual ao capitalismo
O capital sem freios
JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha, de Hannover
A vitória do social-democrata
Gerhard Schroeder na Alemanha,
no ano passado, coloca em primeiro plano uma geração de intelectuais egressos do célebre Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ao qual pertenceu Theodor
Adorno, radicados em Hannover
desde o início dos anos 70, entre
os quais se destaca Oskar Negt, 64.
Professor titular do Instituto e
amigo pessoal do novo chanceler,
Negt é um dos autores do programa de governo na área cultural e
um dos principais conselheiros de
Schroeder. Nascido em Koenisgberg, cidade de Kant, Negt doutorou-se com Adorno e teve ampla
militância junto ao movimento
sindical nos anos 70. Sua obra
mais conhecida foi escrita com o
escritor e cineasta Alexander Kluge, "Eigensinn und Geschichte"
("Teimosia e História"), uma
montagem cinematográfica da
economia política.
Na entrevista a seguir, Negt fala
à Folha sobre a adesão dos intelectuais ao programa de Schroeder e
a crítica atual ao capitalismo.
Folha - Qual a função do intelectual na Alemanha de Schroeder?
Oskar Negt - Seja na "República berlinense" de Schroeder ou na
"República de Bonn" de Kohl, os
intelectuais têm, essencialmente, a
função de estabelecer uma consciência de responsabilidade diante
da totalidade social.
Vivemos hoje numa situação em
que o capitalismo pela primeira
vez em sua história, ora com
maior, ora com menor intensidade, parece dispensar qualquer instância domesticadora, qualquer
camada de proteção ou freio regulador. O Estado Nacional regulador, que administrava em sua jurisdição o lucro e a acumulação
abstrata da mais-valia, está desaparecendo diante de nossos olhos.
Os grandes empresários e os conglomerados deixam de pagar a tributação recolhida em nome do interesse público. Essa camada de segurança está se rompendo e, com
o colapso do bloco oriental, ao
qual não é mais preciso se comparar, desencadearam-se forças produtivas explosivas.
Somente agora o capital funciona exatamente na escala internacional e na velocidade descritas
por Karl Marx, na sua lógica pura
de acumulação e abstração, também chamada de "globalização".
Nessa situação -e não estou me
referindo aqui aos países de uma
modernidade recuperadora, mas
sim aos países avançados-, depara-se com um problema central:
esse capital e essa lógica de mercado, em tal grau de intensidade,
prescindem cada vez mais da utilização da força viva de trabalho: o
desemprego estrutural foge do
controle, embora tal desemprego
dependa também de elementos
conjunturais. Hoje, em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos, na medida em que a
economia se desenvolve, a força de
trabalho viva torna-se supérflua.
Um estudo da Siemens recentemente publicado mostra que em
dez anos a produção seria multiplicada por dez com o emprego da
metade ou de um terço da força de
trabalho atual. Então surge a questão central: como podemos inserir
esse fenômeno em nossa rede conceitual e controlar o desemprego
explosivo em massa. Esse é um
ponto essencial da crítica dos intelectuais.
Folha - Com Schroeder, está novamente no poder o programa social-democrata. Quais são as chances de ele obter êxito?
Negt - Nenhum governo do
mundo tem a capacidade de implantar utopias, salvo como ilusão
ou completo desastre. Eu mesmo
me empenhei no programa de governo, mas penso que esse governo social-democrata somente poderá implementar reformas sociais se for permeável aos movimentos de base nos sindicatos, escolas e universidades.
O ponto decisivo nessa mudança
de eixo político foi tornar o clima
cultural da sociedade mais favorável. Mas, se as pessoas depositam
grandes expectativas em resultados imediatos, poderá haver grande frustração, pois a conjuntura
internacional é desfavorável.
Embora seja amigo de Schroeder
e tenha feito muito para que ele
fosse eleito, nem por isso estou legitimando decisões de governo.
Considero-me um intelectual político, com um recuo diante do poder e que deseja preservar um potencial crítico. Não sou da opinião
de que se deva esperar tudo desse
governo, precisamos mudar nossas relações e assumir cada vez
mais responsabilidade pelo conjunto da sociedade.
Folha - Tal mudança política encontra uma paisagem intelectual
avessa ao pensamento totalizador.
Qual é o elemento vivo da crítica
formulada pela Escola de Frankfurt que deve ser preservado?
Negt - A Escola de Frankfurt é
um poderoso reservatório de possibilidades de atitudes e idéias,
uma herdeira do humanismo renascentista na sua interdisciplinariedade, uma ferramenta poderosa
do pensamento dialético.
Uma de suas linhas vem da teoria
habermasiana, mas que é uma teoria exclusiva, que não tem mais
muito a ver com a linha principal
dos franfkurtianos.
O segundo ponto de conservação
desse "núcleo de verdade" é a insistência do momento dialético do
pensamento, que na escola dos
epígonos de Habermas desapareceu por completo e na qual existem apenas estruturas dualistas,
binárias, operando com oposições
lineares entre "mundos do trabalho" e "mundos da vida".
O terceiro ponto a ser enfatizado
são as linhagens e tradições que
convergem nessa encruzilhada, da
economia política às heranças derivadas de Kant, Hegel, Marx e
Freud nas obras de Horkheimer,
Neumann, Benjamin e Adorno.
Essa síntese única é a identidade da
pensamento frankfurtiano. Essas
linhas, acredito, sempre permaneceram em nossa reflexão no instituto que criamos em Hannover,
quando chegamos de Frankfurt,
mas não mais em Habermas.
Habermas não pensa mais dialeticamente, recuando suas posições
para as estruturas de poder do capitalismo. Nunca o capitalismo foi
tão transparente em seus interesses. Nunca o poder do capital foi
tão avassalador como hoje, não
podemos falar sob hipótese alguma, como Habermas, do dinheiro
como um meio. O dinheiro está
absolutamente impregnado de relações de poder, não obstante a palavra "capitalismo" tenha estado
cada vez mais presente na boca de
Habermas nos últimos anos.
Para mim, a questão central continua sendo a crítica da economia
política, embora o sistema tenha se
"culturalizado". As forças econômicas se ocupam cada vez mais
com a esfera cultural, também
com consequências positivas. Mas
a questão propriamente política
dos focos de poder está excluída
integralmente do centro da teoria
habermasiana.
José Galisi Filho é doutorando em Germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e
bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal.
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