São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

O principal colecionador de obras raras do Brasil fala do documentário sobre sua biblioteca que será exibido amanhã em SP e diz que o livro ficou mais acessível

O leitor sem preconceitos

Maurício Santana Dias
da Redação

Bibliófilo mais ilustre do país, o empresário José Mindlin abriu recentemente as portas de sua biblioteca para que a cineasta e escritora Cristina Fonseca mostrasse alguns dos seus segredos no documentário "Biblioteca Mindlin - Um Mundo em Páginas", que terá sua pré-estréia amanhã no Cinesesc-SP, às 20h30, e será exibido para todo o Brasil pela rede SescSenac de Televisão (STV), transmitido pela Net, no próximo sábado, às 21h. Com depoimentos de José Saramago, Antonio Candido, Jean-Claude Carrière e do próprio Mindlin, entre outros, o filme revela um pouco da constituição desse tesouro que está prestes a ser doado à USP. Na entrevista a seguir, Mindlin fala de livros, cultura, política e projetos para o futuro.
No documentário, o crítico Antonio Candido diz que a biblioteca Mindlin é "um dos grandes feitos culturais do Brasil". Como o sr. vê isso?
Na verdade fico desvanecido. O Drummond me dizia que todos nós temos nossas vaidadezinhas, e é o que eu sinto, mesmo sendo um exagero do Candido. Fiz uma biblioteca para uso próprio que foi crescendo, virando fonte de referência, informação. Acho que se pode dizer que ela é uma contribuição à cultura brasileira à medida que constitui um acervo permanente de pesquisa e leitura. Espero que ela tenha um efeito multiplicador.
Num dos seus depoimentos, o sr. diz que "as histórias de garimpagem [dos livros] dariam margem a muita conversa". Parte desse trabalho já foi descrito em sua biografia "Uma Vida entre Livros" (Companhia das Letras). O sr. está escrevendo uma história dessa garimpagem?
Penso em escrever, mas não estou dando conta da engrenagem de correspondências e atividades. A cada dia primeiro me digo que vou começar um livro, mas depois a vida vai me levando para outras coisas. Mas a verdade é que constantemente escrevo e dou entrevistas a respeito das minhas garimpagens.
O sr. também diz no documentário: "Meu gosto é eclético. A gente deve ler sem preconceito". O sr. já leu o autor brasileiro mais popular hoje, candidato a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras?
Uma cunhada e uma amiga do Rio resolveram há um tempo me passar um trote e me mandaram "O Alquimista". Acho um erro aquela tirada do Oswald: "Não li e não gostei". Eu li e não gostei. Mas agora pelo menos posso expressar um juízo baseado em experiência própria: o livro é de um primarismo absoluto, inclusive cheio de erros gramaticais. Costumo dizer que Paulo Coelho está para a literatura assim como o bispo Edir Macedo está para a religião.
Se tivesse que escolher umas quatro ou cinco obras de sua biblioteca, com quais ficaria?
Ah, vamos ver... Não usaria o critério da preciosidade, mas o da minha predileção como leitor. Ficaria com a primeira edição de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", com os originais de "Grande Sertão: Veredas", com a primeira edição do Proust ["Em Busca do Tempo Perdido"] e com a primeira edição completa dos "Ensaios" de Montaigne, publicada em 1588. Eu me sinto muito bem entre esses livros. A gente entrava aqui e se esquecia dos Médicis da vida. De certo modo a biblioteca é também meu refúgio.
Que outras bibliotecas particulares brasileiras o sr. destacaria?
Surpreendentemente não há muitas. Quer dizer, há muitas excelentes, mas geralmente são limitadas a um tema específico. O Plínio Doyle tinha um ótimo acervo de literatura brasileira, que agora está na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), mas não tinha nenhum livro francês. Há outras excelentes e restritas a uma determinada área do conhecimento, como a Guerra de Canudos ou Brasil Colônia. Acabei fazendo uma biblioteca mais eclética, em grande parte por conta do meu gosto. Por exemplo, gosto de romance policial, mas até hoje não li o "Paraíso Perdido" de John Milton -nem acho que vou morrer por isso. Vou lendo aquilo que mais me atrai, e não o que é ditado por esse ou aquele cânone.
O acesso ao livro no Brasil ainda é muito restrito. Como tornar o livro mais "democrático"?
Acho que as coisas têm melhorado de uns tempos para cá. O grande problema está na distribuição. As distribuidoras geralmente pedem 40% do preço de capa; outros 30% ficam com as livrarias; e o resto vai para as editoras e direitos autorais. Assim fica difícil. Mas hoje há coleções de livros de menos de R$ 10,00 e bem editados, como os "pocket books" da editora L&PM. Acho porém -o que pode parecer um paradoxo, vindo de um colecionador de livros como eu- que o leitor não precisa necessariamente ter a posse do livro para ler. Para isso precisaríamos de mais e melhores bibliotecas públicas.
Portanto temos dois problemas de base: o da distribuição e o de carência de bibliotecas públicas. Nesse sentido o governo poderia contribuir comprando mais livros para as bibliotecas existentes e investindo na criação de novas. Calcula-se que hoje existam umas 2.000 bibliotecas públicas, mas na verdade só temos de fato umas mil, o que é pouquíssimo. E mesmo estas quase não renovam o acervo, as instalações são precárias etc.
Sua biblioteca será doada à USP. Como o sr. a imagina daqui a 30 anos?
Será uma doação indireta. Se eu soubesse que a USP seria bem administrada nos próximos anos, faria uma doação direta. Mas... preferi optar por uma fundação privada que funcionará na USP, por 99 anos. Depois desse período a biblioteca seria incorporada à universidade, caso nesse meio tempo ela não tenha sido privatizada ou até desaparecido. Sou um cético que acredita em catequese, acredito no convencimento pelas idéias. Mas a biblioteca continuará a crescer, mesmo depois de se instalar na USP. Ela tem que ser viva. Se não, vira um monumento funerário. Meu sonho é que daqui a 100 ou 150 anos ela se torne uma das maiores do Brasil, como algumas bibliotecas privadas norte-americanas que, iniciadas em meados do século 19, hoje são gigantescas.
Numa recente entrevista o sr. disse: "Empresa que apóia a cultura não faz mais que a sua obrigação". Seus colegas empresários assinariam embaixo essa declaração?
Acho que está crescendo a noção de obrigação social no setor privado. Parto da premissa de que a empresa não é um fim em si mesma, faz parte do desenvolvimento social. Não gosto de ser visto como um mecenas. Fiz e faço com a Metal Leve várias edições e gosto disso. Quando a empresa fez 25 anos, em 1975, comemoramos com uma edição fac-similar da "Revista de Antropofagia".
É preciso que essa mentalidade se espalhe entre os empresários. A profissionalização dos administradores de empresa, todos universitários, tem ajudado nisso. Tenho visto grupos de empresários e ONGs fazendo muita coisa boa. No fundo sou um otimista incorrigível. E meus 70 anos de acompanhamento da vida brasileira me permitem dizer isso. É preciso ter perspectiva histórica.



Texto Anterior: Et + cetera
Próximo Texto: Nas pegadas do Guesa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.