|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura
O principal colecionador de obras raras do Brasil fala do documentário sobre sua biblioteca que será exibido amanhã em SP e diz que o livro ficou mais acessível
O leitor sem preconceitos
Maurício Santana Dias
da Redação
Bibliófilo mais ilustre do país, o empresário José
Mindlin abriu recentemente as portas de sua biblioteca para que a cineasta e escritora Cristina
Fonseca mostrasse alguns dos seus segredos no
documentário "Biblioteca Mindlin - Um Mundo em
Páginas", que terá sua pré-estréia amanhã no Cinesesc-SP, às 20h30, e será exibido para todo o Brasil pela rede
SescSenac de Televisão (STV), transmitido pela Net, no
próximo sábado, às 21h. Com depoimentos de José Saramago, Antonio Candido, Jean-Claude Carrière e do
próprio Mindlin, entre outros, o filme revela um pouco
da constituição desse tesouro que está prestes a ser doado à USP. Na entrevista a seguir, Mindlin fala de livros,
cultura, política e projetos para o futuro.
No documentário, o crítico Antonio Candido diz que a biblioteca Mindlin é "um dos grandes feitos culturais do
Brasil". Como o sr. vê isso?
Na verdade fico desvanecido. O
Drummond me dizia que todos nós
temos nossas vaidadezinhas, e é o que
eu sinto, mesmo sendo um exagero
do Candido. Fiz uma biblioteca para
uso próprio que foi crescendo, virando fonte de referência, informação.
Acho que se pode dizer que ela é uma
contribuição à cultura brasileira à
medida que constitui um acervo permanente de pesquisa e leitura. Espero que ela tenha um efeito multiplicador.
Num dos seus depoimentos, o sr. diz que "as histórias de
garimpagem [dos livros] dariam margem a muita conversa". Parte desse trabalho já foi descrito em sua biografia
"Uma Vida entre Livros" (Companhia das Letras). O sr. está escrevendo uma história dessa garimpagem?
Penso em escrever, mas não estou dando conta da
engrenagem de correspondências e atividades. A cada dia primeiro me digo que vou começar um livro, mas depois a vida vai me levando para outras coisas.
Mas a verdade é que constantemente escrevo e dou
entrevistas a respeito das minhas garimpagens.
O sr. também diz no documentário: "Meu gosto é eclético. A gente deve ler sem preconceito". O sr. já leu o autor
brasileiro mais popular hoje, candidato a uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras?
Uma cunhada e uma amiga do Rio resolveram há
um tempo me passar um trote e me mandaram "O
Alquimista". Acho um erro aquela tirada do Oswald:
"Não li e não gostei". Eu li e não gostei. Mas agora pelo menos posso expressar um juízo baseado em experiência própria: o livro é de um primarismo absoluto, inclusive cheio de erros gramaticais. Costumo
dizer que Paulo Coelho está para a literatura assim
como o bispo Edir Macedo está para a religião.
Se tivesse que escolher umas quatro ou cinco obras de
sua biblioteca, com quais ficaria?
Ah, vamos ver... Não usaria o critério da preciosidade, mas o da minha predileção como leitor. Ficaria
com a primeira edição de "Memórias Póstumas de
Brás Cubas", com os originais de "Grande Sertão:
Veredas", com a primeira edição do Proust ["Em
Busca do Tempo Perdido"] e com a primeira edição
completa dos "Ensaios" de Montaigne, publicada
em 1588. Eu me sinto muito bem entre esses livros. A
gente entrava aqui e se esquecia dos Médicis da vida.
De certo modo a biblioteca é também meu refúgio.
Que outras bibliotecas particulares brasileiras o sr. destacaria?
Surpreendentemente não há muitas. Quer dizer, há
muitas excelentes, mas geralmente são limitadas a
um tema específico. O Plínio Doyle tinha um ótimo
acervo de literatura brasileira, que agora está na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), mas não tinha nenhum livro francês. Há outras excelentes e restritas a uma determinada área do conhecimento, como a Guerra de Canudos ou Brasil Colônia. Acabei fazendo uma biblioteca mais eclética, em grande parte por conta do
meu gosto. Por exemplo, gosto de romance policial, mas até hoje não li o
"Paraíso Perdido" de John Milton -nem acho que vou morrer por isso.
Vou lendo aquilo que mais me atrai, e não o que é ditado por esse ou aquele cânone.
O acesso ao livro no Brasil ainda é muito restrito. Como tornar o livro mais "democrático"?
Acho que as coisas têm melhorado de uns tempos
para cá. O grande problema está na distribuição. As
distribuidoras geralmente pedem 40% do preço de
capa; outros 30% ficam com as livrarias; e o resto vai
para as editoras e direitos autorais. Assim fica difícil.
Mas hoje há coleções de livros de menos de R$ 10,00
e bem editados, como os "pocket books" da editora
L&PM. Acho porém -o que pode parecer um paradoxo, vindo de um colecionador de livros como eu- que o leitor não precisa necessariamente ter a
posse do livro para ler. Para isso precisaríamos de
mais e melhores bibliotecas públicas.
Portanto temos dois problemas de base: o da distribuição e o de carência de bibliotecas públicas.
Nesse sentido o governo poderia contribuir comprando mais livros para as bibliotecas existentes e investindo na criação de novas. Calcula-se que hoje
existam umas 2.000 bibliotecas públicas, mas na verdade só temos de fato umas mil, o que é pouquíssimo. E mesmo estas quase não renovam o acervo, as
instalações são precárias etc.
Sua biblioteca será doada à USP. Como o sr. a imagina daqui a 30 anos?
Será uma doação indireta. Se eu soubesse que a USP
seria bem administrada nos próximos anos, faria
uma doação direta. Mas... preferi optar por uma fundação privada que funcionará na USP, por 99 anos.
Depois desse período a biblioteca seria incorporada
à universidade, caso nesse meio tempo ela não tenha
sido privatizada ou até desaparecido. Sou um cético
que acredita em catequese, acredito no convencimento pelas idéias. Mas a biblioteca continuará a
crescer, mesmo depois de se instalar na USP. Ela tem
que ser viva. Se não, vira um monumento funerário.
Meu sonho é que daqui a 100 ou 150 anos ela se torne
uma das maiores do Brasil, como algumas bibliotecas privadas norte-americanas que, iniciadas em meados do século 19, hoje são gigantescas.
Numa recente entrevista o sr. disse: "Empresa que apóia
a cultura não faz mais que a sua obrigação". Seus colegas
empresários assinariam embaixo essa declaração?
Acho que está crescendo a noção de obrigação social
no setor privado. Parto da premissa de que a empresa não é um fim em si mesma, faz parte do desenvolvimento social. Não gosto de ser visto como um mecenas. Fiz e faço com a Metal Leve várias edições e
gosto disso. Quando a empresa fez 25 anos, em 1975,
comemoramos com uma edição fac-similar da "Revista de Antropofagia".
É preciso que essa mentalidade se espalhe entre os
empresários. A profissionalização dos administradores de empresa, todos universitários, tem ajudado nisso. Tenho visto grupos de empresários e ONGs
fazendo muita coisa boa. No fundo sou um otimista
incorrigível. E meus 70 anos de acompanhamento
da vida brasileira me permitem dizer isso. É preciso
ter perspectiva histórica.
Texto Anterior: Et + cetera Próximo Texto: Nas pegadas do Guesa Índice
|