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NAS PEGADAS DO GUESA
PARA ENGENHEIRO PERUANO, QUE PESQUISA HÁ MAIS DE 15 ANOS A POESIA DE SOUSÂNDRADE, OSTRACISMO DE "O GUESA" SE DEVE A SEU MODERNISMO ANTECIPADOR E À DIFICULDADE DE ACESSO À OBRA, QUE FOI PUBLICADA NO BRASIL APENAS UMA VEZ EM VERSÃO INTEGRAL
da Redação
A cada 20 ou 30 anos a obra poética do maranhense Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), o Sousândrade, reaparece em novas edições para
logo em seguida sumir feito um cometa no ar rarefeito da literatura brasileira. Pelo menos é o que tem acontecido nos últimos cem anos.
Para ter uma idéia da inacessibilidade à sua obra, nesse
longo período foram publicadas apenas duas antologias
que reúnem fragmentos de poemas do autor, talvez o mais
ilustre e mais desconhecido das letras nacionais. Trata-se
da famosa e sempre indisponível "ReVisão de Sousândrade", preparada por Augusto e Haroldo de Campos em 1964 (Edições Invenção) e reeditada em 1982 (Nova Fronteira). Agora, no centenário da morte do escritor, o livro
volta à cena, ampliado e revisto, em publicação da ed. Perspectiva.
É preciso mencionar ainda a magra antologia da coleção
"Nossos Clássicos" (Agir), organizada pelos mesmos autores, e a edição fac-similar de "O Guesa" feita por Jomar
Moraes, obra máxima de Sousândrade, lançada em pequena tiragem pela editora Sioge em 1979 e também esgotada há tempos. Mas, a depender da perseverança dos pioneiros Augusto e Haroldo e do empenho de novos pesquisadores,
Sousândrade deixará de ser essa presença cíclica e quase
fantasmática na cultura brasileira para ganhar consistência mais palpável (e legível) em livrarias, estantes públicas e domésticas. O fascínio que ronda o autor de "O Guesa", "Harpas Selvagens", "Eólias" e "O Novo Éden" pode ser
entendido em linhas gerais pela confluência de dois fatos.
O primeiro diz respeito à própria ausência da obra no mercado editorial brasileiro, o que contribuiu para transformar Sousândrade numa espécie de fetiche, poeta volta e meia referido e citado, mas no fundo bem pouco lido.
O segundo fato deriva da modernidade antecipadora de
seus poemas. Escrito basicamente nas décadas de 1860-70,
quando a maioria dos poetas ainda estava cantando em
decassílabos o luar ou "a infância querida", "O Guesa" tem
algumas passagens -como o famoso "Inferno de Wall
Street" e o "Tatuturema"- que são mais radicais em invenção formal do que as mais ousadas criações das vanguardas do século 20.
Neologismos, poliglotismo, quebra da métrica e da sintaxe, referências eruditas misturadas a notícias de jornal, mitologia indígena, há de tudo nesses "infernos" poéticos. No entanto, por não ter sido lido pelas gerações de Mário, Oswald e, mais tarde, Drummond, Joaquim de Sousa deixou de ser o "Andrade" precursor -que poderia ter sido- do modernismo brasileiro.
Neste número em homenagem a Sousândrade, morto
em 21/4/1902, dia da morte de Tiradentes, o Mais! antecipa um ensaio inédito de Augusto de Campos que integra a nova edição da "ReVisão" e traça
um panorama do autor de "O Inferno de Wall Street"
-que, além de poeta, foi grande viajante.
O caderno traz ainda, a seguir, uma entrevista exclusiva com o pesquisador peruano Carlos Torres, que há 15
anos estuda a vida e a obra do escritor maranhense.
Sem nenhum apoio além da própria vontade e do próprio bolso, Torres, 54, engenheiro radicado em Salvador (BA) desde 1977, vem rastreando cada pista que
possa esclarecer os muitos pontos obscuros da obra de
Sousândrade. O imenso material que recolheu, as descobertas que fez, os textos e notas que escreveu sobre o autor de "O Guesa", tudo isso permanece absolutamente inédito e à espera de um editor.
Na entrevista abaixo, feita ao longo de vários telefonemas, Torres fala de sua pesquisa, revela alguns dos seus achados e comenta projetos futuros, que incluem uma edição crítica de "O Guesa" e uma versão em CD-ROM
do poema. (Maurício Santana Dias)
Como você conheceu a obra de Sousândrade e por que se
interessou em pesquisá-la?
Fui apresentado a Sousândrade pelo saudoso Erthos
Albino de Souza, apaixonado pelo poeta e patrocinador da primeira edição da "ReVisão de Sousândrade". Há uns 15 anos, Erthos estava pensando em publicar uma versão com ortografia atualizada de "O
Guesa". Sabendo que eu era peruano, pediu a minha
opinião sobre a grafia dos nomes incas mencionados
no canto 11. Apesar de ser um dos cantos mais "bem
comportados" de "O Guesa", a leitura me permitiu
vislumbrar a complexidade da obra, o que me levou
a estudá-la mais profundamente. Em minhas atividades profissionais na área tecnológica -sou engenheiro-, sempre dei muita importância à pesquisa
bibliográfica. Decidi então aplicar essa experiência à
pesquisa sobre a obra de Sousândrade.
Acho que, no fundo, foi o prazer da descoberta o
que aumentou meu desejo de aprofundar a pesquisa. Descobrir que frases aparentemente desconexas
encobriam uma mensagem perfeitamente inteligível
para quem achasse sua chave serviu de estímulo para prosseguir o trabalho. É difícil descrever a sensação de acreditar ser a primeira pessoa a entender trechos que Sousândrade escreveu há 120 anos.
Em que consiste o seu trabalho?
Ele é basicamente uma exegese da obra de Sousândrade. Procurei identificar as referências que não eram evidentes nos textos originais. O objetivo foi facilitar a leitura e a compreensão dos textos. As referências pesquisadas abrangem personagens, eventos (históricos, da "petite histoire", autobiográficos), lugares, citações, "inter" e "intratextualidade", neologismos e arcaísmos, estrangeirismos etc.
Dessa análise surgiram características e inter-relações no corpus sousandradino não descritas anteriormente na literatura crítica -que podem sugerir
novos temas de pesquisa. Além da análise da obra,
pesquisei a vida e a época de Sousândrade para entender o contexto em que ele viveu e escreveu. O trabalho vem sendo feito ao longo dos últimos 15 anos,
vasculhando jornais, livros e documentos consultados em bibliotecas e arquivos de cinco países.
É preciso paciência para chegar a resultados na
pesquisa sousandradina. Além de seguir várias pistas falsas, é necessário entender o contexto histórico
e o próprio estilo do poeta para "farejar" as referências, além, é claro, do conhecimento (ou redescoberta) das ferramentas de pesquisa disponíveis.
Por exemplo, referências históricas indicavam a
existência de um índice manuscrito (em mais de mil
cadernos) do jornal "New York Herald". Como o
"Herald" e seu proprietário James Gordon Bennett
são mencionados muitas vezes no "Inferno", decidi
localizar esse índice. Achei-o finalmente num depósito no Estado de Michigan (EUA), onde infelizmente não podia ser consultado. Consegui que o material
fosse doado para a Biblioteca Pública de Nova York,
onde vários anos depois pude consultá-lo.
O trabalho continua, já que faltam aspectos a serem esclarecidos, sobretudo os referentes à vida do autor -sobre a qual se sabe bem pouco- e sua estada na Inglaterra e França. Mas não faço análise literária, comparando semelhanças ou diferenças entre a obra e o estilo de Sousândrade e os de outros poetas, anteriores, contemporâneos ou posteriores. Não
se trata de uma obra acadêmica, tarefa que deixo para especialistas.
"O Guesa" antecipa em muitos aspectos as experiências
modernistas. Por que ele ficou esquecido por tanto tempo, inclusive pelos modernistas?
Não sei se "esquecimento" seria a palavra adequada,
talvez "desconhecimento" venha mais ao caso. Sousândrade era um poeta provinciano, afastado do
centro cultural do país, mesmo tendo publicado
"Harpas Selvagens" (1857), sua obra de estréia, no
Rio de Janeiro (numa edição particular que ficou encalhada na editora Laemmert). "O Guesa", sua obra mais conhecida, foi editada em Londres (provavelmente em 1884). Publicou as "Obras Poéticas"
(1874) em Nova York, onde morou pelo menos 12
anos. Em São Luís, publicou "Novo Éden" (1893),
sua última obra, que está esperando um estudo à altura de sua genialidade.
Mas é importante frisar que nenhuma das obras
dele foi reeditada. Honrosa exceção é a edição fac-similar de "O Guesa", promovida por Jomar Moraes
(da Academia Maranhense de Letras) em 1979, esgotada há vários anos. Hoje não é nem sequer possível encontrar no mercado editorial brasileiro "O Inferno de Wall Street" e o "Tatuturema", os trechos mais famosos de "O Guesa", conhecidos coletivamente como "infernos".
Voltando à pergunta, o primeiro motivo do "olvido" de Sousândrade é o desconhecimento e a falta de acesso à sua obra. Ainda hoje ele é um poeta mais comentado do que lido. Um segundo motivo é dado
pelo próprio Sousândrade, que escreveu em 1877:
"Ouvi dizer já por duas vezes que "O Guesa Errante"
será lido 50 anos depois: entristeci; decepção de
quem escreve 50 anos antes".
Esse comentário continua valendo 125 anos após a
queixa do poeta. É que "O Guesa" não é obra de leitura fácil. Na época em que foram escritos os "infernos", sua estrutura e sua linguagem destoavam dos
padrões a que o público estava acostumado. Depois
de 125 anos, muitas das referências contemporâneas
só podem ser entendidas pesquisando os jornais da
época (será que daqui a cem anos referências ao
"maníaco do parque" ou ao "racionamento de energia" serão facilmente identificáveis?).
Qual era o público de Sousândrade?
Difícil responder. Poderia esquivar-me dizendo que
escrevia para a posteridade ou para si mesmo, mas
não é suficiente. Como já mencionei, Sousândrade
publicou "Harpas Selvagens" em 1857, sem dúvida
procurando conquistar o mundo e a fama (ou pelo
menos um público maior que o do Maranhão).
Aparentemente não foi bem-sucedido. Um artigo
de 1925 relata que esse livro era a única obra sua disponível nos sebos do Rio, já que, ao ser liquidado o
estoque da Tipographia Universal de Laemmert
(1909), um bom número de exemplares das "Harpas" ingressou no mercado de livros. De seu segundo livro, "Impressos" (1868), foi feita "uma tiragem
limitadíssima, que foi distribuída entre amigos, sem
que haja no mercado um único exemplar da obra",
segundo o "Diário do Povo" do Rio (1869).
Os livros publicados em Nova York ("Obras Poéticas", "O Guesa Errante") entre 1874-7 não trazem nem sequer indicação de editora.
Que as edições foram particulares, pode ser comprovado pela ausência nos catálogos da época. Os catálogos ingleses tampouco mencionam a edição londrina (1884?) de "O Guesa", publicada por Cooke &
Halsted. Em minhas pesquisas só me lembro de ter
visto um único anúncio de jornal de uma livraria
pernambucana noticiando a disponibilidade de uma
obra de Sousândrade. Infelizmente perdi essa referência quando me roubaram todo o material de pesquisa no aeroporto de Washington...
De tudo isso só posso deduzir que o público de
Sousândrade era bem reduzido e, imagino, concentrado no Maranhão. Tudo indica que o sistema de
distribuição de suas obras era precário. Algumas das
grandes bibliotecas do mundo, como a do Congresso, em Washington, e a Nacional, em Paris, não têm
cópias das obras originais. Outras, como a antiga Astor Library (incorporada hoje à Biblioteca Pública de
NY), a British Library e a Biblioteca Sainte Géneviève
de Paris, têm cópias oferecidas pelo autor.
Para quem ele escrevia?
Com certeza não era para um público a que procurava agradar. Uma das críticas mais comuns a sua obra
nos jornais da época era o excesso de "enjambements", que dificultava a leitura e quebrava a cadência dos versos. Sousândrade nunca fez o menor esforço para reduzi-los, apesar de publicar várias versões dos mesmos poemas ao longo dos anos. Portanto é certo que não escrevia para (nem se preocupava
muito com) os críticos. É preciso porém notar que
Sousândrade fala das críticas favoráveis como "bálsamos [que" derramaram em minha alma".
Noutras palavras, ele gostava (e quem não gosta?)
de elogios, mas não fazia esforço para corrigir os
"defeitos apontados", provavelmente por não considerá-los defeitos. A sua "decepção de quem escreve
50 anos antes" indica que a recepção do público não
era um parâmetro que orientasse a sua obra. Denota
antes que ouvia um tambor de toque diferente.
Como foi a recepção dos contemporâneos?
Obras de Sousândrade foram selecionadas para várias antologias: "Parnaso Maranhense" (1861), "Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e Brasileiros"
(1879) e "Parnazo [sic" Brasileiro" (1885), indicando
um certo grau de reconhecimento à sua obra. Vale
lembrar que não foram selecionados trechos do "Inferno de Wall Street" nem do "Tatuturema".
As apreciações críticas contemporâneas mais citadas são as de Sílvio Romero, na "História da Literatura Brasileira", e Camilo Castelo Branco, no "Cancioneiro Alegre". Romero critica a "forma muitas
vezes áspera e rude e quase ininteligível" de Sousândrade. Reconhece, porém, que "o poeta sai quase inteiramente fora da toada comum da poetização do
seu meio; suas idéias e linguagem têm outra estrutura". Já Camilo chamou Sousândrade de "o mais estremado, mais fantasista e erudito poeta brasileiro
na atualidade". O tom leve e faceto das poesias selecionadas no "Cancioneiro Alegre", porém, exige
cautela sobre essa apreciação crítica.
Num artigo jornalístico publicado sobre a Semana
de Arte Moderna, Humberto de Campos teria chamado Sousândrade o "são João Batista" do movimento. Lamentavelmente, a menção desse artigo
não indica a fonte exata, dizendo apenas se tratar de
jornal paulistano.
Em pesquisa feita pelo "Mais!" (2/1/2000), "O Inferno de
Wall Street" foi considerado o segundo melhor poema
brasileiro, atrás apenas da "Máquina do Mundo", de
Drummond. No entanto nos últimos cem anos quase não
houve edições do poema. Como se explica isso?
É realmente espantoso que ele seja o único entre os
"dez mais" sem uma edição no mercado. Igualmente surpreendente é que Sousândrade nunca tenha escrito um poema chamado "Inferno de Wall Street"
(apesar de usar a frase em "O Guesa"). O nome, de
grande efeito, foi dado na década de 60 a um fragmento do canto 10 da edição londrina de "O Guesa".
Nem sequer a imagem do "inferno da bolsa de valores" é totalmente original.
Numa obra de 1870, usada provavelmente como
fonte de inspiração por Sousândrade, lemos uma
descrição das transações da Bolsa de Nova York que
conclui dizendo: "Dante, olhando para esta loucura
humana, teria acrescentado mais um livro ao seu Inferno". Os títulos dos outros "poemas" conhecidos
de Sousândrade ("Tatuturema", "Elogio do Alexandrino") são também invenções recentes: o primeiro
é um fragmento do canto 2 de "O Guesa"; o segundo,
do "Novo Éden".
As obras de Sousândrade nunca foram reeditadas,
exceção feita à versão fac-similar de "O Guesa" (São
Luís, Sioge, 1979) e versões atualizadas do "Inferno
de Wall Street" e do "Tatuturema" incluídas na "ReVisão de Sousândrade". Todas essas edições estão
esgotadas há anos. É vergonhoso reconhecer que
existe uma edição corrente do "Inferno de Wall
Street". Trata-se de uma versão em francês (ed. Seghers, Paris, 1981), "traduzida do brasileiro [sic" e
apresentada" por Gérard de Cortanze. Grande parte
das anotações foram tiradas da "ReVisão", sem o
crédito devido. Trata-se de uma tradução (ou transcriação) bastante livre, que muitas vezes deturpa o
sentido original do poema, embora se possa argumentar que tenta manter o seu espírito.
É inegável o pioneirismo de Sousândrade, sua singularidade. Paradoxalmente ele só foi descoberto
como pioneiro a posteriori, tornando nula sua influência na literatura brasileira. Seu pioneirismo pode hoje ser apreciado (talvez pelo fato de que deixou
de sê-lo), mas dificilmente servirá de exemplo. Isso
não quer dizer que não tenha inspirado pelo menos
duas óperas, além de peças de teatro e um monte de
citações, frequentemente fora do contexto. Sousândrade, ao que parece, não criou escola, e sim moda.
Como você avalia a edição da obra de Sousândrade feita
por Augusto e Haroldo de Campos?
É inegável a importância da "ReVisão de Sousândrade" no processo de resgate da obra do escritor. Se tivesse que recomendar uma única obra sobre o assunto, não há dúvida de que ela seria a escolhida.
É verdade que alguns artigos de crítica tinham sido
publicados anteriormente por Fausto Cunha (1954)
e Luiz Costa Lima (1962), mas a "ReVisão" foi o primeiro livro a dar um panorama da obra do poeta, além de incluir a primeira edição moderna do que
passou a ser conhecido como o "Inferno de Wall
Street".
Não há dúvida também de que sua publicação deslanchou uma onda de interesse pelo autor.
A maior parte do texto da "ReVisão" (1964) é dedicada à estilística sousandradina, incluindo aspectos
micro e macroestéticos, procurando compará-lo a
outros escritores, como Ezra Pound e Arno Holz.
Completam o livro uma antologia, o artigo de Luiz
Costa Lima, a bibliografia do poeta por Erthos Albino de Souza e uma pequena resenha biográfica.
Na "Nota Prévia", menciona-se a inclusão de um
"Glossário de Personagens, temas e citações, para
obviar as dificuldades de leitura" do "Inferno de
Wall Street". Esse glossário não arranha a complexidade das referências; antes, as encobre. A resenha
publicada pelo "Handbook of Latin American Studies" (1966) resume bem esse aspecto: "Os editores,
membros preeminentes da vanguarda literária, fizeram bem em trazer este precursor à atenção pública, mas é duvidoso que o leitor médio ache a sua exegese de grande ajuda para chegar a uma compreensão
dos textos". As referências equivocadas ou desprovidas de informações relevantes também o tornam de escassa ajuda para a compreensão do texto.
O que seria uma "referência equivocada"?
A definição do verbete referente a "Ponza", por
exemplo, diz que se trata talvez do nome de um personagem imaginário ou de uma ilha vulcânica italiana onde, segundo a lenda, morava a maga Circe. Ora,
"Ponza" na verdade se refere ao alienista italiano
Giuseppe Lodovico Ponza (1822-1879), que foi citado ironicamente num editorial do "The New York
Times" de 1876 como o inventor da cromoterapia,
justamente na época em que Sousândrade estava
morando em Manhattan e escrevendo o poema.
Também na terceira edição de "Sousândrade"
("Nossos Clássicos", editora Agir, pág. 80), organizada pelos mesmos autores, lemos o verso "Ó Filipilho!
atraiçoar aquele/ Coração índio..." e, em nota de rodapé, o "esclarecimento" peremptório: "Filipilho:
Pizarro era súdito de Filipe 2º da Espanha. Assim, o
poeta chama-o de Filipilho, pejorativamente".
Porém a conquista do Peru por Francisco Pizarro
aconteceu em 1532. Filipe 2º tinha cinco anos na época e só se tornaria rei da Espanha em 1556. Mas no "Pequeño Larousse Ilustrado" lemos no verbete "Filipillo": "Indígena peruano do século 16, que serviu
de intérprete a Pizarro, Hernando de Soto e Almagro". Todo aluno peruano poderá informar que Filipilho era um garoto indígena considerado traidor da
sua raça por ter servido de intérprete aos espanhóis e
ajudado na conquista do império dos incas.
Enfim, a "ReVisão" detalha como (e não sobre o
que) Sousândrade escreveu. Acho que uma das
grandes riquezas do "Inferno de Wall Street" é a
complexidade da estrutura, em que palavras aparentemente usadas só por sua sonoridade cumprem um papel perfeitamente definido. Ao mesmo tempo, é de lamentar que em quase quatro décadas não tenham surgido outras obras com novos enfoques sobre Sousândrade -sem desmerecer, é claro, os
trabalhos acadêmicos de Frederick Williams, Luiza
Lobo e Sebastião Moreira Duarte, entre outros.
Há controvérsias no estabelecimento dos textos de "O
Guesa", especialmente do "Inferno de Wall Street"?
Algumas. A "minha" versão do "Inferno", por
exemplo, é a original, tirada da edição londrina. A
versão dos irmãos Campos, ao atualizar a ortografia,
corrige alguns erros inexistentes e não emenda os
reais. No entanto concordo com a grande maioria
das correções feitas ali -e conservei dela a idéia de
numerar as estrofes, que me parece útil ao entendimento do poema. Uso a versão original por questão de método, para evitar perda de informações por
atualização indevida e também por acreditar que o
conhecimento disponível ainda é insuficiente para o
estabelecimento de uma versão definitiva
O que pretende fazer com a sua pesquisa?
Já que satisfiz minha curiosidade de conhecer mais
sobre Sousândrade, acredito estar na hora de divulgar os resultados. Não pertencendo aos círculos acadêmicos, nunca senti a pressão do "publish or perish" dos gringos. Estou escrevendo um livro sobre o
"Inferno de Wall Street", uma espécie de "chave do
inferno", que tenta mostrar que há método nesse
aparente galimatias. Tento também demonstrar a
íntima ligação entre a vida e a obra do poeta.
Por motivos óbvios -falta-me a bagagem teórica- o livro seria dirigido para o leitor comum, procurando criar um interesse pela obra do autor. Espero também que sirva de incentivo à procura de novas
linhas de pesquisa. Gostaria também de disponibilizar no livro um CD-ROM com os textos originais, já que a primeira dificuldade na pesquisa sousandradina é o acesso às obras. Pensei até em fazer uma versão interativa do "Inferno". Seria uma forma de mostrar as relações internas e externas com outras
obras de Sousândrade e de outros autores.
Mesmo assim, sobra material para vários outros livros. O "Novo Éden", por exemplo. Apesar de ter apenas 88 páginas, já acumulei sobre ele quase 1.300
notas, isso sem entrar na análise do enredo. A viagem de Sousândrade para o Peru e o Chile também pode no futuro se transformar em livro. Uma "autobiografia" baseada em citações da obra e confirmada em documentação independente seria interessante, mas completá-la requereria tempo e dinheiro.
O que falta para uma edição crítica de "O Guesa"?
Um editor. Pelo que soube, não é considerada viável
comercialmente. Seria desejável complementar a
pesquisa no exterior, o que aumentaria os custos.
É possível ler Sousândrade sem aparato crítico?
Não. Como dizia um amigo de meu pai: "Eu sei ler
alemão. Leio, mas não entendo uma só palavra". "O
Guesa", excluindo o "Inferno de Wall Street" e o
"Tatuturema", pode ser lido "normalmente". A leitura, porém, é geralmente enfadonha, já que o texto muda constantemente de enfoque e faltam os pontos de referência. Só uma ínfima parte do "Inferno" e do "Tatuturema" pode ser apreciada sem aparato crítico. Já li comentários totalmente descabidos de
conhecidos artistas plásticos, músicos e até críticos
literários. Dá a impressão de que consideram esses
trechos uma "terra de ninguém", onde vale qualquer
palpite, ignorando que a escolha das palavras segue
uma lógica que escapa a um exame superficial. Sou o
primeiro a reconhecer que desconheço o significado
de várias estrofes do "Inferno". As que consegui decifrar me levam a crer que para as outras também existam chaves que permitam a sua compreensão.
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