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ITINERÁRIO DE UMA POESIA
Viagem expiatória de "O Guesa" começa nos Andes e termina na Bolsa de Nova York
Carlos Adriano
especial para a Folha
ReVisão de Sousândrade" foi
lançado originalmente em
1964, sob a rubrica das edições
Invenção (o selo dos poetas
concretos Augusto e Haroldo de Campos). O mesmo epíteto que os autores
usaram para definir a situação do poeta
maranhense na literatura brasileira vale
para qualificar a iniciativa desta original
redescoberta da cultura brasileira: "Terremoto clandestino".
Além da pesquisa e dos ensaios dos organizadores, a antologia fez circular,
mais de 50 anos depois, vários livros de
Sousândrade. O primeiro, "Harpas Selvagens", foi publicado em 1857, como
"As Flores do Mal" de Baudelaire, e antes das "Primaveras" de Casimiro de
Abreu (1859).
Embora seja um autor enquadrado na
segunda geração romântica, os oito extratos de "Harpas Selvagens" e as duas
"Eólias" (1874), que estão reunidos na
antologia, comprovam sua refração irredutível aos cânones do romantismo -e,
no caso das três peças de "Novo Éden"
(1893), até do simbolismo, como o lançado por Cruz e Souza em 1893 ("Missal" e
"Broquéis").
Elaborado ao longo de mais de 20 anos,
"O Guesa", sua principal obra, foi publicado pela primeira vez em 1876, em Nova York. A edição definitiva veio à luz em
Londres, em 1888 (o livro não tem data;
sugere-se 1888 baseado na data de depósito do livro no Museu Britânico, para
efeito de copyright). Segundo a lenda,
Sousândrade teria sido expulso de Londres por criticar a rainha Vitória.
Na mitologia dos índios colombianos
Muíscas, "guesa" é um menino votado à
peregrinação e ao sacrifício. Quando
chega ao fim o percurso, numa praça circular, o adolescente tem o corpo preso a
uma coluna e é morto pelos "xeques", os
sacerdotes. Seu coração é arrancado e
oferecido ao deus do Sol.
Sousândrade encantou-se com tal figura ao ler "Vues des Cordillères et Monuments des Peuples Indigènes de l'Amérique (1810-13)", de Humboldt, naturalista
alemão que visitou a Amazônia, os Andes, México, Cuba e Estados Unidos, entre 1799 e 1804.
Na epopéia de Sousândrade, a viagem expiatória do peregrino (quase uma persona alegórica do poeta) tem seu ápice na Bolsa de Nova York, no final do século 19, como cenário de especulação econômica e degradação dos ideais de liberdade. Baseados na sinopse temática da
"ReVisão", podemos traçar uma descrição sucinta dos 13 cantos. As datas entre
parênteses seguem a referência da edição
londrina. Os Cantos 7º, 12º e 13º ficaram
interrompidos (assim como, aparentemente, também o 6º).
Canto 1º (1858): culto ao Sol; conquista
dos incas pelos espanhóis; descida dos
Andes à Amazônia; exuberância da natureza; infância e solidão do Guesa;
canto 2º (1858): Amazonas; o selvagem
subjugado pelo colonizador; danças rituais dos índios; lembrança da época heróica dos guerreiros; o "Tatuturema";
canto 3º (1858): sono, sonho e viagem
do Guesa; luar e princesa; noite e crepúsculo no Amazonas; catequese e servidão
indígena; El-Dorado;
canto 4º (1858): o selvagem puro; a chegada ao Maranhão; retorno à terra natal;
evocação de Gonçalves Dias; orgia e
prostituição; Virjanura (o primeiro
amor do Guesa); separação e exílio;
canto 5º (1862): rumo à Vitória (quinta,
ruínas e quilombos); a mata; a mulata;
Maranhão; identificação do poeta com o
Guesa; o signo da predestinação; messias; mãe d'água; monólogo e solidão do
Guesa; a família; o firmamento;
canto 6º (1852-57): estrada do Suna
(etapas do caminho ritual); baía da Guanabara; carnaval carioca; corte do Rio de
Janeiro; crítica à alienação corruptora; D.
Pedro 1º; Homero; Camões; educação do
Guesa; decadência da corte; meditação
sobre a sina do Guesa;
canto 7º (1857-1900, sic): Ibéria; África; Mediterrâneo; Senegambia; Saara; Serra Leoa; Dacar; viagem de formação ao
mundo europeu; serva-amante; Lua-Ísis;
canto 8º (1857-1870): Guesa náufrago
na terra natal; a "musa da zona tórrida";
a mulher-amante; Éden na Ilha do Sol;
"festas do esplendor do Guesa"; os amigos falsos; a filha do poeta-Guesa;
canto 9º (1871): viagem com a filha;
Amazonas; Antilhas; Haiti; Cuba; México; os "xeques" inimigos; o poeta prevê o
sacrifício do Guesa; massacre dos índios
pelos espanhóis; caminho próximo dos
Estados Unidos;
canto 10º (1873-188..., sic): Guesa chega
a Nova York; a terra da liberdade; utopia
do amor e da igualdade na república;
meditação mística; evocação da revolução norte-americana; adversidades do
Guesa; lembrança de amigos vivos e
mortos; a capital da República da América do Norte; o capitólio; os Estados da
união; morte de Lincoln; o "Inferno de
Wall Street"; corrupção no seio da república; o "jovem povo de vanguarda"; paisagens de neve; catástrofe do Niágara;
mortes de Longfellow e de Emerson;
canto 11 (1878): oceano Pacífico; hino
às Américas; Guesa recorda sua mãe; os
libertadores (Bolívar, Lamas, Sucre,
Abreu Lima); Panamá; Colômbia; Venezuela; Peru; Titicaca; terras desoladas;
fundação e revolução do império inca;
festa do arado de ouro; invasão espanhola e guerra civil; o deus desconhecido;
pensamentos de Guesa sobre a queda
dos impérios; a república-paraíso (socialista e cristã); sombras e culto solar dos incas; vida eterna; ataque à cristandade que destruiu os incas; crítica ao poder militar e clerical; festas de Voltaire; o novo Pigmalião; a natureza andina; canto 12 (1878): descida ao longo da cordilheira andina; Argentina; canção à filha; a serva-liberta; desertos de Atacama;
tempestades no mar; elogio do Chile; subida do Guesa pelas serras; ilha de Robinson Crusoe; fim do planeta no pólo
Sul; ilha da desolação; estreito de Magalhães; Terra do Fogo; Patagônia;
canto 13 (1880-84): retorno ao Maranhão; doença e convalescença do Guesa;
órfãos-amantes; o amor puro do peregrino; recordação de mulheres amadas; a
meretriz e o poeta; fim das paixões mundanas e retorno do Guesa ao equador para plantar a revolta ideal; ritual do Guesa
arruinado pelos ladrões; a feiticeira; Íris.
Transcendendo a vertente do percurso
romântico (à la Byron), o épico "Guesa"
projeta ampla visão das Américas, dos
tempos pré-colombianos ao capitalismo
contemporâneo do poeta.
Junto com o "Tatuturema" (o Inferno
Amazônico), o ponto culminante está no
canto 10º: "O Inferno de Wall Street",
vórtice de elipses e epigramas, montagem de palavras e eventos, reportagens
de jornal e referências literárias, estrofes
intricadas com variantes tipográficas e
frases truncadas em diversos idiomas,
inversões e invenções gramaticais.
Um dos marcos históricos desse episódio (que centra no lucro e na usura da
Bolsa a metáfora demencial da decadência humana) é a Exposição do Centenário, realizada na Filadélfia e inaugurada
pelo General Grant (presidente americano) e por d. Pedro 2º, com epigramas sobre a viagem do governante brasileiro
aos Estados Unidos, os escândalos financeiros do período Grant, a disputa entre
o democrata Tilden e o republicano Hayes nas eleições para a Presidência e a
própria exposição centenária.
Sobre essa obra radical, Sousândrade
confessou: "Ouvi dizer já por duas vezes
"que o Guesa errante será lido 50 anos depois'; entristeci -decepção de quem escreve 50 anos antes".
A terceira edição (20 anos após a segunda) da "ReVisão de Sousândrade"
celebra o centenário da morte do poeta
maldito e revolucionário, à frente de seu
tempo.
Revista e atualizada, traz, além de ensaios já publicados -como o exaustivo
"Sousândrade: o Terremoto Clandestino" e o diacrônico "De Holz a Sousândrade" (ambos de Augusto e Haroldo de
Campos), "O Campo Visual de uma Experiência Antecipadora" (de Luiz Costa
Lima) e "Sousândrade: Formas em Morfose" (Haroldo de Campos)-, dois novos estudos críticos: "Ecos do Inferno de
Wall Street", de Augusto
(reexame das fontes sousandradinas e
exegese de episódios do "Inferno de Wall
Street"), e "Peregrinação Transamericana do Guesa de Sousândrade", de Haroldo (sobre Alexander von Humboldt e o
romantismo brasileiro, "O Guesa" comparado ao "Canto General" de Pablo Neruda). Constam ainda desta terceira edição: novos verbetes aos glossários de
personagens e citações dos episódios
mais obscuros dos poemas, a "Bibliografia de Sousândrade" estabelecida por Erthos A. de Souza (atualizada por Diléia
Zanotto Manfio) e a tradução para o inglês de "O Inferno de Wall Street", efetuada por Robert E. Brown, ex-aluno de
literatura brasileira de Augusto de Campos na Universidade do Texas, em
Austin.
Carlos Adriano é mestre em cinema pela USP e
diretor de, entre outros, "Remanescências" e "A
Luz das Palavras".
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