São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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+ brasil 501 d.C.
Interligando milhões de pessoas de todos os países do mundo, as novas tecnologias podem relativizar os reflexos nacionalistas, combater a xenofobia e facilitar a compreensão mútua entre as diversas culturas
Da pólis digital à democracia cosmopolita

Sergio Paulo Rouanet

O pensamento tornou-se mais imortal que nunca; ficou volátil, intangível, indestrutível. Mistura-se ao ar... Ele se transforma, agora, em revoada de pássaros, dispersa-se aos quatro ventos e ocupa de uma só vez todos os pontos do ar e do espaço." Quem fala assim não é um apologista da Internet, e sim um entusiasta do livro. É Victor Hugo, que num capítulo de "Notre Dame de Paris" intitulado "Ceci Tuera Cela", "isto matará aquilo", afirma que a imprensa, levando a razão a todos os recantos da terra, expulsará os últimos resíduos da tirania e da superstição. Em seu conteúdo descritivo, as palavras de Hugo aplicam-se perfeitamente à nova era da comunicação digital. Mais do que nunca, o pensamento se desmaterializa, faz-se ar, voa, dispersa-se, anula o tempo e o espaço. Mas Hugo não estava elogiando uma nova tecnologia. Estava tomando posição num debate político. O tipógrafo leigo é mais eficiente que um copista de mosteiro -tinha uma produtividade maior, para usar um jargão econômico moderno.

Força subversiva
Mas não era disso que se tratava. O que dava seu valor à imprensa era, antes de mais nada, sua força subversiva: não somente a imprensa já representava em si mesma uma revolução social, pois destruía o monopólio que a Igreja exercera durante séculos na preservação e transmissão do saber, como podia solapar, por meio do livro, o dogmatismo religioso e a autoridade política. Foi justamente o que aconteceu quase na mesma época em que Gutenberg inventou a imprensa. Foi por meio de um livro -a Bíblia traduzida para o alemão- e de um texto impresso -as teses afixadas na igreja de Wittenberg- que Lutero realizou a Reforma protestante. Foram os livros que fizeram o Iluminismo, e foi uma Enciclopédia que fez a Revolução. A questão, agora, é saber se as novas tecnologias de informação e comunicação poderão desempenhar um papel semelhante. Sabemos que a Internet serve para vender mercadorias. Tudo leva a crer que uma proporção cada vez maior do comércio mundial será feita por esse meio. Um Walter Benjamin de hoje talvez dissesse que, se no protocapitalismo a mercadoria morava nas "Passagens" -e no capitalismo moderno, nos shopping centers-, seu domicílio, na era do capitalismo pós-moderno, é o ciberespaço. Só agora a mercadoria chegou ao seu estágio fetichista, no sentido de Marx: dissolvida na realidade virtual, ela se transformou, verdadeiramente, numa fantasmagoria. Sabemos também que a Internet serve para difundir pornografia, para fazer propaganda neonazista, para anunciar o fim do mundo e até, mais inocentemente, para o "chat", para a conversa fiada. Nisso a Internet talvez substitua o salão do antigo regime, onde cônegos conversavam com duquesas sobre o último escândalo de Versalhes. Não são bem esses os "chats" que interessam às nossas filhas adolescentes, mas isso é um detalhe. Se ressuscitasse, Madame de Sévigné talvez até dissesse que hoje o web é o último lugar onde podemos conversar, "le dernier salon où l'on cause".

Iluminismo hoje
Mas isso não esgota o potencial da Internet. Assim como, apesar de todas as distorções, a imprensa foi o principal veículo para a realização do programa iluminista clássico, as novas técnicas de comunicação podem ser decisivas para a concretização dos grandes projetos do Iluminismo de hoje. O primeiro desses projetos é a implementação de uma ética universal. Na versão de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, essa ética enuncia as condições formais para que uma norma seja considerada válida: ela precisa ser consensualmente aceitável, num processo argumentativo de que participem todos os interessados, de modo igualitário e não-coercitivo. Mas, num mundo dividido em comunidade nacionais, a aplicação prática dessa ética encontra dificuldades insuperáveis. Sua principal exigência -a participação livre e igualitária de todos os afetados- não pode ser atendida. Assim, quando uma grande potência adota uma política protecionista ou restringe a imigração ou realiza uma intervenção militar, está afetando milhões de cidadãos de outros países. Mas essas pessoas não são nem podem ser incluídas nas deliberações que levaram à adoção daquelas políticas. A aplicação das novas tecnologias pode preencher, em parte, esse déficit de comunicação. Elas permitem, em tese, que todas as pessoas potencialmente afetadas por tais políticas, quaisquer que sejam suas nacionalidades, façam chegar às instâncias decisórias apropriadas suas inquietações e suas propostas.

Democracia mundial
Mas é óbvio que uma ética universal só poderá ser plenamente eficaz quando os interessados possam participar, de fato, dos respectivos processos deliberativos. Isso só será possível quando todos os afetados sejam, ao mesmo tempo, cidadãos, o que somente acontecerá quando as democracias nacionais forem complementadas por uma democracia mundial.
É o segundo grande projeto do Iluminismo moderno. As novas tecnologias podem contribuir para o advento dessa democracia. Interligando milhões de pessoas, de todos os países do mundo, elas podem relativizar os reflexos nacionalistas, combater a xenofobia, facilitar a compreensão mútua entre as diversas culturas. E, uma vez criada uma democracia cosmopolita, as novas tecnologias serão um instrumento poderosíssimo para assegurar a comunicação entre indivíduos e organizações, no bojo da sociedade civil mundial.
Devemos evitar qualquer forma de triunfalismo tecnológico. Nada garante que a argumentação moral conduzida pela Internet entre um filósofo de Campinas e um sofista bávaro seja tão fecunda quanto a conduzida, na ágora, entre Sócrates e Górgias. A pólis digital não é a mesma coisa que a pólis ateniense. A "world-wide web" tem uma vaga semelhança com um parlamento mundial, mas talvez leve algum tempo até que esse parlamento produza um Gladstone. Mesmo que a humanidade inteira esteja ligada à rede, isso fará dos usuários "netizens", mas não necessariamente "citizens". Não importa. Um Windows 2.000 não pode gerar nem Voltaire nem Zola, mas eles não teriam desdenhado a Internet para a reabilitação de Calas e para a defesa de Dreyfus.
Uma das idéias mais inovadoras nessa direção está sendo posta em prática justamente no Brasil. É uma publicação eletrônica, denominada "Hypertexto" (www.hypertexto.com.br). Editado pelo jornalista Claudio Cordovil, "Hypertexto" publica artigos em várias línguas e convida todos os interessados a enviarem seus comentários.
Essa publicação se filia expressamente a uma perspectiva iluminista. Segundo seus autores, "é uma nova "Encyclopédie" virtual, que, abolindo fronteiras geográficas, aspira a consolidar uma sociedade civil global por meio da revitalização da herança iluminista". É um primeiro e importantíssimo passo para continuar, com os meios globais oferecidos pelas novas tecnologias, o antigo combate do Iluminismo contra o fanatismo e o poder ilegítimo. Ceci tuera cela.



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