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+ brasil 501 d.C.
Interligando milhões de pessoas de todos os países do mundo, as novas tecnologias podem relativizar os reflexos nacionalistas,
combater a xenofobia e facilitar a compreensão mútua entre
as diversas culturas
Da pólis digital à democracia cosmopolita
Sergio Paulo Rouanet
O pensamento tornou-se mais imortal que nunca; ficou volátil, intangível, indestrutível. Mistura-se ao ar... Ele se transforma, agora, em revoada de pássaros, dispersa-se aos quatro
ventos e ocupa de uma só vez todos os pontos do ar e do
espaço."
Quem fala assim não é um apologista da Internet, e
sim um entusiasta do livro. É Victor Hugo, que num capítulo de "Notre Dame de Paris" intitulado "Ceci Tuera
Cela", "isto matará aquilo", afirma que a imprensa, levando a razão a todos os recantos da terra, expulsará os
últimos resíduos da tirania e da superstição.
Em seu conteúdo descritivo, as palavras de Hugo aplicam-se perfeitamente à nova era da comunicação digital. Mais do que nunca, o pensamento se desmaterializa, faz-se ar, voa, dispersa-se, anula o tempo e o espaço.
Mas Hugo não estava elogiando uma nova tecnologia.
Estava tomando posição num debate político. O tipógrafo leigo é mais eficiente que um copista de mosteiro
-tinha uma produtividade maior, para usar um jargão
econômico moderno.
Força subversiva
Mas não era disso que se tratava.
O que dava seu valor à imprensa era, antes de mais nada, sua força subversiva: não somente a imprensa já representava em si mesma uma revolução social, pois
destruía o monopólio que a Igreja exercera durante séculos na preservação e transmissão do saber, como podia solapar, por meio do livro, o dogmatismo religioso e
a autoridade política. Foi justamente o que aconteceu
quase na mesma época em que Gutenberg inventou a
imprensa. Foi por meio de um livro -a Bíblia traduzida para o alemão- e de um texto impresso -as teses
afixadas na igreja de Wittenberg- que Lutero realizou
a Reforma protestante. Foram os livros que fizeram o
Iluminismo, e foi uma Enciclopédia que fez a Revolução.
A questão, agora, é saber se as novas tecnologias de informação e comunicação poderão desempenhar um
papel semelhante.
Sabemos que a Internet serve para vender mercadorias. Tudo leva a crer que uma proporção cada vez
maior do comércio mundial será feita por esse meio.
Um Walter Benjamin de hoje talvez dissesse que, se no
protocapitalismo a mercadoria morava nas "Passagens" -e no capitalismo moderno, nos shopping centers-, seu domicílio, na era do capitalismo pós-moderno, é o ciberespaço. Só agora a mercadoria chegou
ao seu estágio fetichista, no sentido de Marx: dissolvida
na realidade virtual, ela se transformou, verdadeiramente, numa fantasmagoria.
Sabemos também que a Internet serve para difundir
pornografia, para fazer propaganda neonazista, para
anunciar o fim do mundo e até, mais inocentemente,
para o "chat", para a conversa fiada. Nisso a Internet talvez substitua o salão do antigo regime, onde cônegos
conversavam com duquesas sobre o último escândalo
de Versalhes. Não são bem esses os "chats" que interessam às nossas filhas adolescentes, mas isso é um detalhe. Se ressuscitasse, Madame de Sévigné talvez até dissesse que hoje o web é o último lugar onde podemos
conversar, "le dernier salon où l'on cause".
Iluminismo hoje
Mas isso não esgota o potencial
da Internet. Assim como, apesar de todas as distorções,
a imprensa foi o principal veículo para a realização do
programa iluminista clássico, as novas técnicas de comunicação podem ser decisivas para a concretização
dos grandes projetos do Iluminismo de hoje.
O primeiro desses projetos é a implementação de uma
ética universal. Na versão de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, essa ética enuncia as condições formais para
que uma norma seja considerada válida: ela precisa ser
consensualmente aceitável, num processo argumentativo de que participem todos os interessados, de modo
igualitário e não-coercitivo. Mas, num mundo dividido
em comunidade nacionais, a aplicação prática dessa ética encontra dificuldades insuperáveis. Sua principal
exigência -a participação livre e igualitária de todos os
afetados- não pode ser atendida.
Assim, quando uma grande potência adota uma política protecionista ou restringe a imigração ou realiza
uma intervenção militar, está afetando milhões de cidadãos de outros países. Mas essas pessoas não são nem
podem ser incluídas nas deliberações que levaram à
adoção daquelas políticas. A aplicação das novas tecnologias pode preencher, em parte, esse déficit de comunicação. Elas permitem, em tese, que todas as pessoas potencialmente afetadas por tais políticas, quaisquer que
sejam suas nacionalidades, façam chegar às instâncias
decisórias apropriadas suas inquietações e suas propostas.
Democracia mundial
Mas é óbvio que uma ética
universal só poderá ser plenamente eficaz quando os
interessados possam participar, de fato, dos respectivos
processos deliberativos. Isso só será possível quando todos os afetados sejam, ao mesmo tempo, cidadãos, o
que somente acontecerá quando as democracias nacionais forem complementadas por uma democracia
mundial.
É o segundo grande projeto do Iluminismo moderno.
As novas tecnologias podem contribuir para o advento
dessa democracia. Interligando milhões de pessoas, de
todos os países do mundo, elas podem relativizar os reflexos nacionalistas, combater a xenofobia, facilitar a
compreensão mútua entre as diversas culturas. E, uma
vez criada uma democracia cosmopolita, as novas tecnologias serão um instrumento poderosíssimo para assegurar a comunicação entre indivíduos e organizações, no bojo da sociedade civil mundial.
Devemos evitar qualquer forma de triunfalismo tecnológico. Nada garante que a argumentação moral conduzida pela Internet entre um filósofo de Campinas e
um sofista bávaro seja tão fecunda quanto a conduzida,
na ágora, entre Sócrates e Górgias. A pólis digital não é a
mesma coisa que a pólis ateniense. A "world-wide web"
tem uma vaga semelhança com um parlamento mundial, mas talvez leve algum tempo até que esse parlamento produza um Gladstone. Mesmo que a humanidade inteira esteja ligada à rede, isso fará dos usuários
"netizens", mas não necessariamente "citizens". Não
importa. Um Windows 2.000 não pode gerar nem Voltaire nem Zola, mas eles não teriam desdenhado a Internet para a reabilitação de Calas e para a defesa de Dreyfus.
Uma das idéias mais inovadoras nessa direção está
sendo posta em prática justamente no Brasil. É uma publicação eletrônica, denominada "Hypertexto"
(www.hypertexto.com.br). Editado pelo jornalista
Claudio Cordovil, "Hypertexto" publica artigos em várias línguas e convida todos os interessados a enviarem
seus comentários.
Essa publicação se filia expressamente a uma perspectiva iluminista. Segundo seus autores, "é uma nova
"Encyclopédie" virtual, que, abolindo fronteiras geográficas, aspira a consolidar uma sociedade civil global por
meio da revitalização da herança iluminista". É um primeiro e importantíssimo passo para continuar, com os
meios globais oferecidos pelas novas tecnologias, o antigo combate do Iluminismo contra o fanatismo e o poder ilegítimo. Ceci tuera cela.
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