São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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A violência das mínimas diferenças

Peter Burke

Em 1667 a Igreja Ortodoxa Russa sofreu um cisma quando um concílio da igreja, reunido em Moscou, apoiou inovações adotadas pouco antes e excomungou os defensores da tradição, que mais tarde passaram a ser conhecidos como os "Velhos Crentes", enquanto a divisão foi descrita como o "Cisma" (Raskol). As questões explícitas que motivaram as divergências parecem ter sido triviais. O gesto da bênção devia ser feito com dois dedos ou três? O nome de Jesus devia ser grafado com um "i" (Isus) ou dois (Iisus)? Não é difícil imaginar a descrição que historiadores racionalistas fizeram dessas discussões, posteriormente, enxergando-as como típicas da "mente religiosa", distantes da vida real e incapazes de distinguir o significativo do insignificativo. Hoje, porém, os historiadores -ou, pelo menos, alguns grupos de historiadores- se mostram menos dispostos a menosprezar as divergências russas. Os historiadores do cotidiano se preocupam com o significado daquilo que, aparentemente, é insignificativo. Os historiadores da cultura têm consciência de que aquilo que as pessoas consideram ser significativo varia de período para período, e também de um lugar para outro. Compreender essas variações é um desafio ao qual historiadores desse tipo procuram responder. Para empreender essa tarefa, é preciso estudar as idéias conscientes e as premissas inconscientes "em seus contextos", relacionando-as aos acontecimentos e tendências da época. Pode ser útil, também, voltar-se à teoria social ou cultural em busca de comparações e hipóteses a testar. No caso do cisma russo, uma teoria aparentemente relevante pode ser encontrada nas obras de Sigmund Freud. Num ensaio relativamente menor, "O Tabu da Virgindade", publicado pela primeira vez em 1917, Freud cunhou a expressão "o narcisismo das diferenças menores" para descrever um fenômeno que se repete com frequência: a hostilidade entre grupos sociais que são iguais ou semelhantes em todos, menos alguns, os aspectos menores. Sua observação pode ser expressa na forma de uma hipótese ou teoria geral, a de que grupos sociais distintos, porém semelhantes, têm probabilidade maior de serem hostis entre si do que grupos que possuem diferenças óbvias. Em estudos posteriores, Freud deu os exemplos da hostilidade entre espanhóis e portugueses e entre os ingleses e os escoceses. Nesses dois casos, é óbvio que problemas de fronteiras gerariam conflitos, quer as diferenças entre as duas nações fossem grandes ou pequenas, mas isso não significa que as explicações de Freud sejam irrelevantes. De qualquer maneira, a "hipótese das diferenças pequenas" parece comportar uma aplicação muito mais ampla. Na história da Igreja Católica, por exemplo, parece que mais esforços foram feitos para atacar "hereges" que divergem da ortodoxia sobre questões de detalhe (por exemplo, a consubstanciação em lugar da transubstanciação) do que para converter "pagãos". Nos países comunistas, frequentemente era e ainda pode ser mais perigoso ser um marxista não-ortodoxo (digamos, um trotskista na Rússia de Stálin) do que ser não-marxista ou até mesmo antimarxista.

Preocupação com a identidade
Essa hipótese relativa à importância das diferenças aparentemente pouco importantes parece se aplicar também no caso das classes sociais. Cerca de 60 anos depois de Freud, Pierre Bourdieu voltou ao assunto em seu célebre estudo da burguesia e da classe trabalhadora na França contemporânea, "La Distinction" (1979). Bourdieu resumiu nos seguintes termos sua análise das diferenças entre as duas classes, conforme a linguagem, os hábitos alimentares, o vestuário, a mobília e outros aspectos de seus estilos de vida: "A identidade social consiste na diferença, e a diferença é afirmada contra aquilo que é mais próximo e que representa a maior ameaça".
Com essas palavras, explicitou o que já estava implícito na fórmula de Freud: a preocupação com a identidade. Um importante antropólogo holandês, Anton Blok, voltou ao tema recentemente numa discussão dos conflitos recentes entre bósnios e sérvios, tutsis e hutus, entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte. Blok argumenta que qualquer teoria geral do poder e da violência precisa levar em conta as pequenas diferenças.
Nesse ponto, podemos voltar aos russos. A pergunta óbvia a ser formulada por um historiador cultural é: "O que as diferenças aparentemente insignificantes de gestos e ortografia significaram para os participantes nessa discussão?". Na verdade, esses detalhes eram extremamente significativos no sentido literal do termo: eram sinais de identidade, sim. Fazer o sinal da cruz com dois dedos e grafar "Jesus" como "Isus" era parte das tradições religiosas russas, mas o novo patriarca, Nikon, apoiado pelo czar Alexis, insistia em promover mudanças. A visão de Nikon era que a parte russa da Igreja Ortodoxa se tornara corrupta, desviando-se dos padrões bizantinos, e precisava ser reformada, para ser purificada outra vez. Além da liturgia, Nikon promoveu uma série de reformas na arquitetura. Para os tradicionalistas, por outro lado (ou "fundamentalistas", como os chamaríamos hoje), o que era russo era puro, e o que fazia parte das "reformas" era visto como corrompido.
O cisma russo foi consequência de uma revolta, não da parte dos revolucionários ou reformistas, mas da parte dos defensores da tradição, contra as novas reformas. Esses tradicionalistas, que, mais tarde, passaram a ser conhecidos como os "Velhos Crentes", eram, em sua maioria, pessoas pobres, tendo à sua frente um líder religioso carismático, o arcipreste Avvakum. Sob alguns aspectos, seu protesto não foi muito diferente da revolta de Canudos contra a República.
Ironicamente, ambos os lados reagiam, cada um à sua maneira, às mesmas ameaças. Em meados do século 17, grandes transformações estavam ocorrendo na cultura russa em decorrência dos contatos cada vez mais estreitos com o Ocidente (desde a Polônia até a Holanda).
Entre as novidades importadas pela Rússia nesse período figuravam o tabaco e um estilo mais realista de pintura dos ícones, baseado em modelos holandeses. Os tradicionalistas denunciaram ambas as coisas, o tabaco como sendo "incenso do demônio", e o novo estilo de pintura como sendo irreligioso. É provável que Nikon também desaprovasse as novidades vindas do exterior, embora sua oposição não fosse tão forte quanto a dos tradicionalistas. Entretanto o processo de ocidentalização, visto como a invasão ou contaminação da cultura russa por produtos e hábitos estrangeiros, deixava muitas pessoas predispostas a enxergar as mudanças como sendo negativas. Nesse contexto, pequenas diferenças ganharam um significado que, em outro momento, talvez não tivessem tido.
Esse último ponto merece certa ênfase, já que implica um aviso contra a aplicação acrítica de teorias gerais. As teorias -teoricamente, pelo menos- são gerais, mas, na prática, são formuladas por pessoas que têm exemplos específicos em mente e dentro de contextos históricos específicos. A teoria do narcisismo das diferenças menores, por exemplo, foi postulada durante a Primeira Guerra Mundial, e os exemplos que Freud citou em mais de uma ocasião foram os de nações.
Observamos a gradativa extensão da teoria de modo a abranger igrejas, partidos políticos e classes sociais. Será que algum desses exemplos, incluindo o russo, sugere que a teoria precise ser modificada? Sob pelo menos um aspecto, a resposta à pergunta é, com toda certeza, "sim". Freud representou a hostilidade entre nações como se fosse atemporal. Em sua "La Distinction", Bourdieu focaliza a França da década de 70 e não discute mudanças de longo prazo no estilo de vida das classes sociais francesas.
No caso russo, por outro lado, vemos um conflito que começou em meados do século 17 e atingiu seu ápice em um ano específico, 1667. Por quê? Outro teórico cultural francês, René Girard, pode haver encontrado a resposta quando escreve, em "Violência e o Sagrado" (1972), que "não são as diferenças que dão lugar à violência e ao caos, e sim a perda delas". Mais precisamente, é a ameaça da perda das diferenças menores que constituem ou simbolizam a identidade que desencadeia a violência em defesa delas. Afinal, a violência não é a única estratégia possível para o que poderíamos chamar de a "administração" das diferenças, que às vezes persistem por séculos, como no caso dos ingleses e escoceses, sem cair na violência (exceto no contexto restrito das partidas de futebol).
Essa versão revista da teoria funciona bem para a Rússia do século 17 e pode, também, ter algo a nos dizer sobre o mundo de hoje. Se a Irlanda do Norte, a Bósnia e Ruanda, entre outros lugares, tornaram-se palco de violência nos últimos anos, pode ser em resposta à erosão das pequenas diferenças no decorrer do processo de globalização. Os grupos sociais cuja identidade se encontra ameaçada procuram bodes expiatórios. Não podem facilmente atribuir a culpa a um processo impessoal como a globalização, mas podem tentar responsabilizar seus rivais ou inimigos tradicionais, grupos que, aos olhos de quem está de fora, são quase impossíveis de serem diferenciados deles mesmos.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria) e "A Arte da Conversação" (Unesp), entre outros.
Tradução de Clara Allain.


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