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+ literatura
Márcio Suzuki comenta a descoberta de "Os Lusíadas" pelos filósofos
românticos August e Friedrich Schlegel
Camões em alemão
Márcio Suzuki
especial para a Folha
Romantismo é hoje um termo carregado de conotações e referências
histórico-literárias, em virtude das quais
já quase não se reconhece o seu sentido
original. É claro que nem sempre foi assim. Pode-se dizer que os primeiros que
se autodenominaram "românticos"
-isso foi há mais de dois séculos na Alemanha- tiveram plena consciência do
que significava o nome por eles escolhido: sabiam perfeitamente que "romântico" provinha da palavra "romance", a
qual, em sua acepção primeira, quer dizer um livro que foi escrito não na língua
culta, o latim, mas nas chamadas línguas
"vulgares" dele derivadas. "Romance"
designa também as próprias línguas vulgares elas mesmas (as chamadas línguas
"romanice"), que começam a aparecer
na Europa a partir do século nove.
Para os integrantes do primeiro romantismo alemão, escrever de maneira
romântica significa, portanto, compor
obras segundo aquele espírito literário
que surge com o que pensam ser, não retrocesso ou decadência, mas uma ampliação e "popularização" de Roma ou a
"romantização" dos povos de língua
neolatina. Retomar esse espírito literário
significa também experimentar as inovações métricas e exercitar-se nos gêneros
de prosa que foram aparecendo à medida que um novo público se formava e expandia. Quando se fala de romance e romantismo, é preciso ter em mente que,
para o chamado "romantismo de Jena",
essas palavras não designam, respectivamente, um gênero e uma "escola", mas a
própria busca de novas formas de expressão literária e filosófica.
Os irmãos August Wilhelm e Friedrich
Schlegel (1767-1845 e 1772-1829) acreditavam firmemente que o estudo e a imitação criadora e conscienciosa da poesia
das línguas românicas podiam ajudar a
enriquecer a literatura alemã. O entusiasmo deles pela poesia italiana e espanhola acabou instigando outras pessoas
ligadas ao grupo romântico -inclusive
o filósofo Schelling e, talvez menos diretamente, Fichte- a tentar realizar trabalhos nesse âmbito. Um breve repertório
do que foi feito por esses autores poderá
dar uma idéia da importância da literatura italiana e espanhola para eles.
Gerações de leitores
Em 1799-1800, Ludwig Tieck publicou uma tradução do "Dom Quixote" que foi lida por
várias gerações na Alemanha (enaltecendo-lhe a qualidade literária, o escritor
Heinrich Heine conta que foi por meio
dela que se deu o seu primeiro contato
com as letras). Com correções e modificações, continua a ser editada até hoje.
Afora os diversos comentários que fez
sobre o assunto, August Wilhelm Schlegel também traduziu muita coisa para o
alemão: peças de Calderón, sonetos de
Petrarca, trechos da "Jerusalém Libertada" de Torquato Tasso, do "Orlando Furioso" de Ludovico Ariosto e uma boa
parte do "Inferno" e trechos do "Purgatório" da "Divina Comédia" de Dante.
Foram os irmãos Schlegel que apresentaram Dante e a poesia italiana a Schelling. Com o incentivo de August, o filósofo traduziu uma parte do segundo canto do "Paraíso" e escreveu um ensaio sobre a "Divina Comédia", no qual tenta
dar uma visão de conjunto do poema,
comparando as três partes dele às três
"potências" da filosofia da identidade.
Aliás, segundo Erich Auerbach no estudo "A Descoberta de Dante no Romantismo", a inovação dos românticos consistiu justamente em ter tentado dar uma
visão de conjunto da "Divina Comédia",
em vez de insistir sobre suas possíveis incongruências ou se deter quase exclusivamente no primeiro canto do poema,
como se fazia até então.
Por isso, Auerbach não hesita em dizer
que é com "alguns representantes geniais do romantismo alemão" (August,
Friedrich, Schelling e, posteriormente,
Hegel) que se dá a "verdadeira descoberta ou redescoberta de Dante" na Europa.
O leitor interessado pode consultar o ensaio de Schelling sobre Dante na seleção
que Rubens Rodrigues Torres Filho fez
da obra do filósofo para a coleção "Os
Pensadores" (2ª ed., 1979). Além de introdução e notas, esse texto de 1803 recebeu do tradutor o título "A Divina Comédia e a Filosofia".
Schelling e sua mulher Caroline também traduziram sonetos de Petrarca. Os
estudos de poesia italiana e os ensaios de
tradução, bem como os poemas que
Schelling escreveu na época, podem ser
entendidos como exercícios nos quais
tentava encontrar o ritmo e a entonação
adequada para o grande poema especulativo sobre a natureza que, a exemplo de
Lucrécio e Goethe, tencionava escrever,
mas que acabou abandonando em virtude de projetos não menos audaciosos. Se
o poema não foi adiante, isso se deve
também à consciência que tinha dos
problemas ligados à forma literária.
Num pequeno ensaio das "Conversas
de Estética", Luigi Pareyson chama a
atenção para uma curiosa coincidência:
Schelling e Fichte teriam traduzido um
mesmo soneto de Petrarca ("Tornami a
mente, anzi vè dentro, quella..."). Depois
de comparar as duas versões, a conclusão do estudioso italiano do idealismo
alemão é a de que, tanto num caso quanto no outro, "o lirismo de Petrarca fica
bastante comprometido".
A tradução que Fichte fez do trecho de
"Os Lusíadas" que trata do episódio de
Inês de Castro foi publicada em 1810 (sobre ela e sobre seus outros trabalhos leia-se o texto "Inês de Castro e a Doutrina-da-Ciência", de Rubens Rodrigues Torres Filho, Folhetim, 12/6/1987). Recuando um pouco no tempo, será possível verificar como se deu o contato com a língua portuguesa e com o poeta português
nos círculos românticos.
Nas "Lições sobre a Arte e Literatura"
que August Wilhelm Schlegel ministrou
em Berlim de 1801-1804, há um trecho
dedicado ao exame e comparação das diversas línguas. Depois de falar sobre o
italiano e o espanhol, o professor se detém conscienciosamente e diz que não
irá "dizer nada sobre o português", porque não conhece a língua. No curso sobre "Filosofia da Arte" (Würzburg, 1804-1805), Schelling faz uma observação semelhante: com toda sinceridade, ele afirma a seus alunos que "os portugueses
têm um poema, "Os Lusíadas" de Camões, que eu não conheço".
Apesar de lacônica, essa referência à
"Lusiade von Camoens" não deixa de ser
curiosa: Schelling menciona uma obra
que nem sequer chega a comentar (ele,
que no curso é tão parcimonioso nas referências literárias), e o faz, com todo o
rigor, justamente no trecho em que está
tratando da diferença - fundamental
para a filosofia dos românticos - entre a
epopéia antiga e a epopéia moderna. A
menção a "Os Lusíadas" não parece fortuita: é que nessa época já começam a
chegar informações mais precisas sobre
a obra do poeta português.
Em 1802, Friedrich Schlegel vai à França com o intuito de aprender sânscrito e
persa e estudar literatura e mitologia hindu e persa. O objetivo era verificar a hipótese de ter existido uma língua originária ("Ursprache") da qual as outras teriam derivado e, ao mesmo tempo, comparar a mitologia do Oriente com a dos
gregos e dos cristãos. Obviamente, durante suas visitas à Biblioteca Nacional
de Paris, ele não podia resistir ao ímpeto
de conhecer mais a fundo muitas coisas a
que não tinha acesso na Alemanha.
Num ensaio em que tenta mostrar o
significado da estada dele em Paris
("Friedrich Schlegel e a França"), Ernst
Robert Curtius afirma que Schlegel foi o
primeiro autor a reconhecer a importância do dialeto e da literatura provençal.
Descrevendo a avidez filológica de Schlegel, Curtius diz ainda: "Não há quase nenhum campo da România em que Friedrich Schlegel não tenha trabalhado".
A afirmação de Curtius também vale
certamente para a língua e literatura portuguesas. Em Paris, Schlegel aprende
português e lê "Os Lusíadas" de Camões.
Já em 1803, no segundo caderno da revista "Europa", editada por ele da França,
escreve um texto endereçado ao irmão,
as "Contribuições à História da Poesia
Moderna e Relato dos Manuscritos Provençais", em que, além da descrição dos
manuscritos provençais da Biblioteca
Nacional, trata de poesia em geral, mas
principalmente da portuguesa e de Camões (1).
Língua flexível
Schlegel faz considerações sobre as características do português, que, pela flexibilidade, deve ser
comparado ao dialeto jônico, enquanto a
língua "altiva" dos espanhóis tende mais
para o dórico e a "cultivada" dos italianos mais para o ático. O próprio Friedrich adverte o irmão sobre a arbitrariedade da comparação, mas ela não deixa
de ser indicativa do modo como lê Camões. Logo depois, em 1804, August lança o "Florilégio de Poesia Italiana, Espanhola e Portuguesa", contendo poemas
traduzidos de Camões.
O que a descoberta de "Os Lusíadas"
introduz de novidade no universo romântico? Nessa obra, diz Schlegel, o autor realizou aquilo que desde o fim da
antiguidade se tentou, mas não se conseguiu fazer: uma epopéia nacional. Ela satisfaz um anseio que se pode detectar em
diversos autores de diversas nações, correspondendo exatamente "a um conceito para o qual muitas vezes se procurou
um exemplo". Assim, a saga dos portugueses é também emblema da própria
busca que move a literatura moderna em
geral. Mas a solução épica de Camões representa também um problema. De
acordo com a divisão histórica que
Schlegel e Schelling fazem dos gêneros
(guardadas todas as diferenças entre os
dois), a modernidade não pode ter uma
epopéia, porque a verdadeira epopéia só
pode ser produzida pelo trabalho coletivo de vários poetas, como em Homero,
mas os poetas modernos só são capazes
de criar individualmente.
Ao realizar a proeza de escrever sozinho a epopéia de sua nação, Camões pedirá por isso também uma reformulação
da concepção do que é o gênero épico
(divisão entre heróico e mítico). Essas
modificações têm naturalmente um significado mais profundo se se pensa que o
próprio andamento histórico é entendido pelo romantismo como o andamento
de uma narrativa épica: para Schelling,
como o grande épico que a humanidade
está escrevendo, para Schlegel, como a
trama de um grande romance.
Márcio Suzuki é professor do departamento de
filosofia da USP e autor de "O Gênio Romântico".
Nota:
1.Para alguns estudiosos, este texto põe
Schlegel na condição de descobridor ou redescobridor de Camões na Alemanha. O primeiro defensor dessa opinião parece ter sido
Oskar Walzel, num ensaio intitulado "Der
deutsche Entdecker des Camões" (O Descobridor Alemão de Camões, "Revue de la Littérature Comparée", 18, 1938, págs. 478-494). Infelizmente, ao redigir este breve comentário,
o autor não teve acesso ao texto do importante germanista, bem como ao trabalho de
Wolfgang Kayser, "Die iberische Welt im Denken J.G. Herder" (O Mundo Ibérico no Pensamento de J.G. Herder).
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