São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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+ literatura
Márcio Suzuki comenta a descoberta de "Os Lusíadas" pelos filósofos românticos August e Friedrich Schlegel
Camões em alemão

Márcio Suzuki
especial para a Folha

Romantismo é hoje um termo carregado de conotações e referências histórico-literárias, em virtude das quais já quase não se reconhece o seu sentido original. É claro que nem sempre foi assim. Pode-se dizer que os primeiros que se autodenominaram "românticos" -isso foi há mais de dois séculos na Alemanha- tiveram plena consciência do que significava o nome por eles escolhido: sabiam perfeitamente que "romântico" provinha da palavra "romance", a qual, em sua acepção primeira, quer dizer um livro que foi escrito não na língua culta, o latim, mas nas chamadas línguas "vulgares" dele derivadas. "Romance" designa também as próprias línguas vulgares elas mesmas (as chamadas línguas "romanice"), que começam a aparecer na Europa a partir do século nove. Para os integrantes do primeiro romantismo alemão, escrever de maneira romântica significa, portanto, compor obras segundo aquele espírito literário que surge com o que pensam ser, não retrocesso ou decadência, mas uma ampliação e "popularização" de Roma ou a "romantização" dos povos de língua neolatina. Retomar esse espírito literário significa também experimentar as inovações métricas e exercitar-se nos gêneros de prosa que foram aparecendo à medida que um novo público se formava e expandia. Quando se fala de romance e romantismo, é preciso ter em mente que, para o chamado "romantismo de Jena", essas palavras não designam, respectivamente, um gênero e uma "escola", mas a própria busca de novas formas de expressão literária e filosófica. Os irmãos August Wilhelm e Friedrich Schlegel (1767-1845 e 1772-1829) acreditavam firmemente que o estudo e a imitação criadora e conscienciosa da poesia das línguas românicas podiam ajudar a enriquecer a literatura alemã. O entusiasmo deles pela poesia italiana e espanhola acabou instigando outras pessoas ligadas ao grupo romântico -inclusive o filósofo Schelling e, talvez menos diretamente, Fichte- a tentar realizar trabalhos nesse âmbito. Um breve repertório do que foi feito por esses autores poderá dar uma idéia da importância da literatura italiana e espanhola para eles.

Gerações de leitores
Em 1799-1800, Ludwig Tieck publicou uma tradução do "Dom Quixote" que foi lida por várias gerações na Alemanha (enaltecendo-lhe a qualidade literária, o escritor Heinrich Heine conta que foi por meio dela que se deu o seu primeiro contato com as letras). Com correções e modificações, continua a ser editada até hoje.
Afora os diversos comentários que fez sobre o assunto, August Wilhelm Schlegel também traduziu muita coisa para o alemão: peças de Calderón, sonetos de Petrarca, trechos da "Jerusalém Libertada" de Torquato Tasso, do "Orlando Furioso" de Ludovico Ariosto e uma boa parte do "Inferno" e trechos do "Purgatório" da "Divina Comédia" de Dante.
Foram os irmãos Schlegel que apresentaram Dante e a poesia italiana a Schelling. Com o incentivo de August, o filósofo traduziu uma parte do segundo canto do "Paraíso" e escreveu um ensaio sobre a "Divina Comédia", no qual tenta dar uma visão de conjunto do poema, comparando as três partes dele às três "potências" da filosofia da identidade. Aliás, segundo Erich Auerbach no estudo "A Descoberta de Dante no Romantismo", a inovação dos românticos consistiu justamente em ter tentado dar uma visão de conjunto da "Divina Comédia", em vez de insistir sobre suas possíveis incongruências ou se deter quase exclusivamente no primeiro canto do poema, como se fazia até então.
Por isso, Auerbach não hesita em dizer que é com "alguns representantes geniais do romantismo alemão" (August, Friedrich, Schelling e, posteriormente, Hegel) que se dá a "verdadeira descoberta ou redescoberta de Dante" na Europa. O leitor interessado pode consultar o ensaio de Schelling sobre Dante na seleção que Rubens Rodrigues Torres Filho fez da obra do filósofo para a coleção "Os Pensadores" (2ª ed., 1979). Além de introdução e notas, esse texto de 1803 recebeu do tradutor o título "A Divina Comédia e a Filosofia".
Schelling e sua mulher Caroline também traduziram sonetos de Petrarca. Os estudos de poesia italiana e os ensaios de tradução, bem como os poemas que Schelling escreveu na época, podem ser entendidos como exercícios nos quais tentava encontrar o ritmo e a entonação adequada para o grande poema especulativo sobre a natureza que, a exemplo de Lucrécio e Goethe, tencionava escrever, mas que acabou abandonando em virtude de projetos não menos audaciosos. Se o poema não foi adiante, isso se deve também à consciência que tinha dos problemas ligados à forma literária.
Num pequeno ensaio das "Conversas de Estética", Luigi Pareyson chama a atenção para uma curiosa coincidência: Schelling e Fichte teriam traduzido um mesmo soneto de Petrarca ("Tornami a mente, anzi vè dentro, quella..."). Depois de comparar as duas versões, a conclusão do estudioso italiano do idealismo alemão é a de que, tanto num caso quanto no outro, "o lirismo de Petrarca fica bastante comprometido".
A tradução que Fichte fez do trecho de "Os Lusíadas" que trata do episódio de Inês de Castro foi publicada em 1810 (sobre ela e sobre seus outros trabalhos leia-se o texto "Inês de Castro e a Doutrina-da-Ciência", de Rubens Rodrigues Torres Filho, Folhetim, 12/6/1987). Recuando um pouco no tempo, será possível verificar como se deu o contato com a língua portuguesa e com o poeta português nos círculos românticos.
Nas "Lições sobre a Arte e Literatura" que August Wilhelm Schlegel ministrou em Berlim de 1801-1804, há um trecho dedicado ao exame e comparação das diversas línguas. Depois de falar sobre o italiano e o espanhol, o professor se detém conscienciosamente e diz que não irá "dizer nada sobre o português", porque não conhece a língua. No curso sobre "Filosofia da Arte" (Würzburg, 1804-1805), Schelling faz uma observação semelhante: com toda sinceridade, ele afirma a seus alunos que "os portugueses têm um poema, "Os Lusíadas" de Camões, que eu não conheço".
Apesar de lacônica, essa referência à "Lusiade von Camoens" não deixa de ser curiosa: Schelling menciona uma obra que nem sequer chega a comentar (ele, que no curso é tão parcimonioso nas referências literárias), e o faz, com todo o rigor, justamente no trecho em que está tratando da diferença - fundamental para a filosofia dos românticos - entre a epopéia antiga e a epopéia moderna. A menção a "Os Lusíadas" não parece fortuita: é que nessa época já começam a chegar informações mais precisas sobre a obra do poeta português.
Em 1802, Friedrich Schlegel vai à França com o intuito de aprender sânscrito e persa e estudar literatura e mitologia hindu e persa. O objetivo era verificar a hipótese de ter existido uma língua originária ("Ursprache") da qual as outras teriam derivado e, ao mesmo tempo, comparar a mitologia do Oriente com a dos gregos e dos cristãos. Obviamente, durante suas visitas à Biblioteca Nacional de Paris, ele não podia resistir ao ímpeto de conhecer mais a fundo muitas coisas a que não tinha acesso na Alemanha.
Num ensaio em que tenta mostrar o significado da estada dele em Paris ("Friedrich Schlegel e a França"), Ernst Robert Curtius afirma que Schlegel foi o primeiro autor a reconhecer a importância do dialeto e da literatura provençal. Descrevendo a avidez filológica de Schlegel, Curtius diz ainda: "Não há quase nenhum campo da România em que Friedrich Schlegel não tenha trabalhado". A afirmação de Curtius também vale certamente para a língua e literatura portuguesas. Em Paris, Schlegel aprende português e lê "Os Lusíadas" de Camões. Já em 1803, no segundo caderno da revista "Europa", editada por ele da França, escreve um texto endereçado ao irmão, as "Contribuições à História da Poesia Moderna e Relato dos Manuscritos Provençais", em que, além da descrição dos manuscritos provençais da Biblioteca Nacional, trata de poesia em geral, mas principalmente da portuguesa e de Camões (1).

Língua flexível
Schlegel faz considerações sobre as características do português, que, pela flexibilidade, deve ser comparado ao dialeto jônico, enquanto a língua "altiva" dos espanhóis tende mais para o dórico e a "cultivada" dos italianos mais para o ático. O próprio Friedrich adverte o irmão sobre a arbitrariedade da comparação, mas ela não deixa de ser indicativa do modo como lê Camões. Logo depois, em 1804, August lança o "Florilégio de Poesia Italiana, Espanhola e Portuguesa", contendo poemas traduzidos de Camões.
O que a descoberta de "Os Lusíadas" introduz de novidade no universo romântico? Nessa obra, diz Schlegel, o autor realizou aquilo que desde o fim da antiguidade se tentou, mas não se conseguiu fazer: uma epopéia nacional. Ela satisfaz um anseio que se pode detectar em diversos autores de diversas nações, correspondendo exatamente "a um conceito para o qual muitas vezes se procurou um exemplo". Assim, a saga dos portugueses é também emblema da própria busca que move a literatura moderna em geral. Mas a solução épica de Camões representa também um problema. De acordo com a divisão histórica que Schlegel e Schelling fazem dos gêneros (guardadas todas as diferenças entre os dois), a modernidade não pode ter uma epopéia, porque a verdadeira epopéia só pode ser produzida pelo trabalho coletivo de vários poetas, como em Homero, mas os poetas modernos só são capazes de criar individualmente.
Ao realizar a proeza de escrever sozinho a epopéia de sua nação, Camões pedirá por isso também uma reformulação da concepção do que é o gênero épico (divisão entre heróico e mítico). Essas modificações têm naturalmente um significado mais profundo se se pensa que o próprio andamento histórico é entendido pelo romantismo como o andamento de uma narrativa épica: para Schelling, como o grande épico que a humanidade está escrevendo, para Schlegel, como a trama de um grande romance.


Márcio Suzuki é professor do departamento de filosofia da USP e autor de "O Gênio Romântico".

Nota:
1.Para alguns estudiosos, este texto põe Schlegel na condição de descobridor ou redescobridor de Camões na Alemanha. O primeiro defensor dessa opinião parece ter sido Oskar Walzel, num ensaio intitulado "Der deutsche Entdecker des Camões" (O Descobridor Alemão de Camões, "Revue de la Littérature Comparée", 18, 1938, págs. 478-494). Infelizmente, ao redigir este breve comentário, o autor não teve acesso ao texto do importante germanista, bem como ao trabalho de Wolfgang Kayser, "Die iberische Welt im Denken J.G. Herder" (O Mundo Ibérico no Pensamento de J.G. Herder).


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