São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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+ literatura

Dois trechos de Friedrich Schlegel

especial para a Folha

O trecho a seguir ("Camões e Homero") foi extraído do curso de Friedrich Schlegel sobre história da literatura européia, de 1803-1804 ("KA", vol. 11, págs. 157-159). Essa versão é preferível por ser mais bem articulada que a da revista "Europa", da qual, porém, não se poderia deixar de traduzir o parágrafo sobre a mitologia (cf. abaixo "A Fábula Antiga"), que não se encontra no curso. Os títulos são do tradutor.

Friedrich Schlegel

A origem da poesia portuguesa não pode ser indicada com segurança. No entanto, é com certeza bem diferente do início da poesia espanhola. Nela, o romance não teve uma influência preponderante como na literatura espanhola, e também as canções são de todo diferentes. Os poetas idílicos da época de Camões parecem ter seguido os antigos poetas italianos e espanhóis. O gênero do romance dramatizado é muito secundário para ter peso suficiente na história da formação da poesia; já as crônicas da história local, que os portugueses dos tempos antigos possuem em grande quantidade, são caracterizadas de tal modo, que é forçoso acreditar que pertencem tanto à poesia quanto à história. E assim, já nos primórdios, a sede de glória e a vida efetiva dessa nação teriam estado estreitamente vinculadas a sua disposição poética, vínculo estreito esse que notabiliza, entre todos, seu grande poeta heróico, Camões.

A introdução da métrica italiana e a familiaridade com suas maiores composições artísticas ocorreram na literatura portuguesa tal como na espanhola. São elas que desencadeiam o período da arte e da formação superior no qual surge o grande poeta épico, Camões, em cujos belos poemas a poesia portuguesa atinge seu florescimento e acabamento supremos. Em suas pequenas obras líricas se encontram todas as qualidades que em geral distinguem a língua e a poesia portuguesa: graça e sentimento profundo, ingenuidade, ternura, doce fruição, a melancolia mais cativante, todos os graus de sentimentos lânguidos, indo do prazer mais suave até o desejo mais ardente, saudade e tristeza, ironia, tudo na pureza e claridade da expressão simples, cuja beleza não podia ser mais acabada, e cuja flor não podia ser mais florescente.

Seu grande poema, "Os Lusíadas", é um poema heróico no pleno sentido da palavra. Nessa obra alcançou aquilo que muitas nações e grandes poetas buscaram em vão: é o único poema heróico nacional que os modernos têm para apresentar, mesmo que aí se incluam os poetas da antiguidade tardia. Camões tira de Virgílio a idéia de um poema épico nacional, que compreenda e apresente, sob a luz mais fulgurante, a fama, o orgulho e a glória de uma nação desde suas mais antigas tradições. É isso, aliás, o que o poema épico deve fazer para se diferenciar do poema mítico.

Se chamamos de épico a todo aquele poema que nos canta as antigas fábulas dos heróis numa narrativa em versos, então os limites e a forma não estão determinados com bastante precisão. Se o que se deve expor são somente fábulas antigas, isso também pode ocorrer na forma dramática, na tragédia, e mesmo na forma breve da épica, no romance. Não é necessário que seja uma obra abrangente, um grande sistema. Mas um poema histórico que deve tratar, de forma totalizante, de todas as tradições heróicas de uma nação, tem necessariamente de ser uma obra, um grande todo, a fim de que tudo possa ser concentrado no centro e, por isso, não pode ser apresentado em outra forma, senão na forma épica. Não pode ser dramático, em virtude da grande amplitude do tema a ser exposto. Mesmo a forma do romance, que talvez pareça a mais adequada, é bem oposta à matéria devido à mistura de prosa e poema, e é em geral lúdica e jocosa demais para a seriedade e o entusiasmo exigidos pela grandeza do objeto.

Os antigos não tiveram um tal poema heróico nacional. Já por seu desmembramento em povos e repúblicas menores, os gregos não podem ser considerados como uma nação. Também Homero nos dá apenas fábulas isoladas da guerra de Tróia, e não a história toda dessa guerra. Numa nação tão poderosa e que exerceu tanto o seu domínio sobre o mundo como a romana, um tal poema poderia ter tido melhor êxito. Também Virgílio se empenhou em transformar a fábula troiana numa poesia nacional própria dos romanos. Mas sucumbiu a grandes dificuldades, e o intento fracassou. Camões alcançou plenamente seu grande fim: expor num poema épico abrangente tudo aquilo que a história de sua nação apresenta como digno de ser celebrizado e enaltecido. Seu poema é o mais perfeito poema épico. Se, no entanto, não quisermos tratar o poema heróico e o poema mítico como dois gêneros totalmente independentes um do outro, o que talvez seria melhor, mas sim como ramos de um mesmo tronco, como formações aparentadas, então se pode dizer que a obra de Camões é em geral a única que ainda merece ser chamada de poema épico, ao lado de Homero. Camões foi soldado e cavaleiro. Ele mesmo viveu uma parte da vida na Índia. Tudo em seu poema transpira genuína coragem heróica e senso de heroísmo, tudo é haurido da profusão da própria intuição, da própria experiência. Uma tal tapeçaria de infinita vida, apresentada de maneira tão rica, tão reluzente, tão própria e tão madura, e com uma tal leveza e claridade, só se encontra nos cantos homéricos.

No que diz respeito à língua, esta tem em Camões as mais altas qualidades. Ele tomou emprestado dos italianos a métrica, a saber, a estança. Um metro tão digno quanto agradável, que se ajusta bem tanto a objetos elevados, quanto a objetos mais baixos. Mas nisso também superou seus mestres. É mais breve, mais rico, mais diversificado, mais compacto que Ariosto; mais aprazível, mais florescente que Tasso. Nele, a estança atinge a suprema perfeição no que se refere à língua e ao estilo.

A fábula antiga
A composição do todo é da mesma beleza simples que a beleza da língua e da exposição nos detalhes. Houve quem quis censurar o fato de que a fábula antiga se mistura ao modo de pensar cristão. Mas por que um como que total esquecimento da fábula antiga, um silêncio absoluto sobre ela, seria necessário num poema cristão? Em que época do cristianismo ocorreu ou pôde ocorrer, tal como se exige, esse esquecimento absoluto da fábula antiga? Como bela linguagem metafórica, Camões a utiliza no sentido da alegoria plena de significado, tal como também foi tratada e utilizada, frequentemente com alguma inovação arbitrária, por outros poetas e pintores da época romântica. Aliás, é bem parcimonioso com ela. E, quando faz Vênus proteger seus queridos portugueses, porque, como diz, são os que mais se parecem com os romanos; quando, ao contrário, faz com que Baco os hostilize, porque este tem receio de que os feitos heróicos deles possam ofuscar seu cortejo pela Índia; quando os gigantes, no mar mais bravio, se opõem à desejada volta à terra abençoada, e quando, na ilha venturosa, Têtis imortal sobe ao leito nupcial com o ilustre Gama para celebrar a mais gloriosa vitória e domínio sobre o mar, é preciso admitir que talvez poeta romântico algum tenha utilizado a fábula antiga de maneira tão nova e peculiar, mas também nenhum a utilizou de maneira tão clara e apropriada.


Tradução de Márcio Suzuki


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