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+ literatura
Dois trechos de Friedrich Schlegel
especial para a Folha
O trecho a seguir ("Camões e Homero") foi extraído do curso de Friedrich
Schlegel sobre história da literatura européia, de 1803-1804 ("KA", vol. 11, págs.
157-159). Essa versão é preferível por ser
mais bem articulada que a da revista
"Europa", da qual, porém, não se poderia deixar de traduzir o parágrafo sobre a
mitologia (cf. abaixo "A Fábula Antiga"),
que não se encontra no curso. Os títulos
são do tradutor.
Friedrich Schlegel
A origem da poesia portuguesa não pode
ser indicada com segurança. No entanto,
é com certeza bem diferente do início da
poesia espanhola. Nela, o romance não
teve uma influência preponderante como na literatura espanhola, e também as
canções são de todo diferentes. Os poetas
idílicos da época de Camões parecem ter
seguido os antigos poetas italianos e espanhóis. O gênero do romance dramatizado é muito secundário para ter peso
suficiente na história da formação da
poesia; já as crônicas da história local,
que os portugueses dos tempos antigos
possuem em grande quantidade, são caracterizadas de tal modo, que é forçoso
acreditar que pertencem tanto à poesia
quanto à história. E assim, já nos primórdios, a sede de glória e a vida efetiva dessa
nação teriam estado estreitamente vinculadas a sua disposição poética, vínculo
estreito esse que notabiliza, entre todos,
seu grande poeta heróico, Camões.
A introdução da métrica italiana e a familiaridade com suas maiores composições artísticas ocorreram na literatura
portuguesa tal como na espanhola. São
elas que desencadeiam o período da arte
e da formação superior no qual surge o
grande poeta épico, Camões, em cujos
belos poemas a poesia portuguesa atinge
seu florescimento e acabamento supremos. Em suas pequenas obras líricas se
encontram todas as qualidades que em
geral distinguem a língua e a poesia portuguesa: graça e sentimento profundo,
ingenuidade, ternura, doce fruição, a
melancolia mais cativante, todos os
graus de sentimentos lânguidos, indo do
prazer mais suave até o desejo mais ardente, saudade e tristeza, ironia, tudo na
pureza e claridade da expressão simples,
cuja beleza não podia ser mais acabada, e
cuja flor não podia ser mais florescente.
Seu grande poema, "Os Lusíadas", é
um poema heróico no pleno sentido da
palavra. Nessa obra alcançou aquilo que
muitas nações e grandes poetas buscaram em vão: é o único poema heróico
nacional que os modernos têm para
apresentar, mesmo que aí se incluam os
poetas da antiguidade tardia. Camões tira de Virgílio a idéia de um poema épico
nacional, que compreenda e apresente,
sob a luz mais fulgurante, a fama, o orgulho e a glória de uma nação desde suas
mais antigas tradições. É isso, aliás, o que
o poema épico deve fazer para se diferenciar do poema mítico.
Se chamamos de épico a todo aquele
poema que nos canta as antigas fábulas
dos heróis numa narrativa em versos,
então os limites e a forma não estão determinados com bastante precisão. Se o
que se deve expor são somente fábulas
antigas, isso também pode ocorrer na
forma dramática, na tragédia, e mesmo
na forma breve da épica, no romance.
Não é necessário que seja uma obra
abrangente, um grande sistema. Mas um
poema histórico que deve tratar, de forma totalizante, de todas as tradições heróicas de uma nação, tem necessariamente de ser uma obra, um grande todo,
a fim de que tudo possa ser concentrado
no centro e, por isso, não pode ser apresentado em outra forma, senão na forma
épica. Não pode ser dramático, em virtude da grande amplitude do tema a ser exposto. Mesmo a forma do romance, que
talvez pareça a mais adequada, é bem
oposta à matéria devido à mistura de
prosa e poema, e é em geral lúdica e jocosa demais para a seriedade e o entusiasmo exigidos pela grandeza do objeto.
Os antigos não tiveram um tal poema
heróico nacional. Já por seu desmembramento em povos e repúblicas menores,
os gregos não podem ser considerados
como uma nação. Também Homero nos
dá apenas fábulas isoladas da guerra de
Tróia, e não a história toda dessa guerra.
Numa nação tão poderosa e que exerceu
tanto o seu domínio sobre o mundo como a romana, um tal poema poderia ter
tido melhor êxito. Também Virgílio se
empenhou em transformar a fábula
troiana numa poesia nacional própria
dos romanos. Mas sucumbiu a grandes
dificuldades, e o intento fracassou.
Camões alcançou plenamente seu
grande fim: expor num poema épico
abrangente tudo aquilo que a história de
sua nação apresenta como digno de ser
celebrizado e enaltecido. Seu poema é o
mais perfeito poema épico. Se, no entanto, não quisermos tratar o poema heróico e o poema mítico como dois gêneros
totalmente independentes um do outro,
o que talvez seria melhor, mas sim como
ramos de um mesmo tronco, como formações aparentadas, então se pode dizer
que a obra de Camões é em geral a única
que ainda merece ser chamada de poema
épico, ao lado de Homero.
Camões foi soldado e cavaleiro. Ele
mesmo viveu uma parte da vida na Índia. Tudo em seu poema transpira genuína coragem heróica e senso de heroísmo, tudo é haurido da profusão da
própria intuição, da própria experiência.
Uma tal tapeçaria de infinita vida, apresentada de maneira tão rica, tão reluzente, tão própria e tão madura, e com uma
tal leveza e claridade, só se encontra nos
cantos homéricos.
No que diz respeito à língua, esta tem
em Camões as mais altas qualidades. Ele
tomou emprestado dos italianos a métrica, a saber, a estança. Um metro tão digno quanto agradável, que se ajusta bem
tanto a objetos elevados, quanto a objetos mais baixos. Mas nisso também superou seus mestres. É mais breve, mais
rico, mais diversificado, mais compacto
que Ariosto; mais aprazível, mais florescente que Tasso. Nele, a estança atinge a
suprema perfeição no que se refere à língua e ao estilo.
A fábula antiga
A composição do
todo é da mesma beleza simples que a
beleza da língua e da exposição nos detalhes. Houve quem quis censurar o fato de
que a fábula antiga se mistura ao modo
de pensar cristão. Mas por que um como
que total esquecimento da fábula antiga,
um silêncio absoluto sobre ela, seria necessário num poema cristão? Em que
época do cristianismo ocorreu ou pôde
ocorrer, tal como se exige, esse esquecimento absoluto da fábula antiga? Como
bela linguagem metafórica, Camões a
utiliza no sentido da alegoria plena de
significado, tal como também foi tratada
e utilizada, frequentemente com alguma
inovação arbitrária, por outros poetas e
pintores da época romântica. Aliás, é
bem parcimonioso com ela. E, quando
faz Vênus proteger seus queridos portugueses, porque, como diz, são os que
mais se parecem com os romanos; quando, ao contrário, faz com que Baco os
hostilize, porque este tem receio de que
os feitos heróicos deles possam ofuscar
seu cortejo pela Índia; quando os gigantes, no mar mais bravio, se opõem à desejada volta à terra abençoada, e quando,
na ilha venturosa, Têtis imortal sobe ao
leito nupcial com o ilustre Gama para celebrar a mais gloriosa vitória e domínio
sobre o mar, é preciso admitir que talvez
poeta romântico algum tenha utilizado a
fábula antiga de maneira tão nova e peculiar, mas também nenhum a utilizou
de maneira tão clara e apropriada.
Tradução de Márcio Suzuki
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