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RAÍZES DA AMÉRICA
O sonho pragmático
Em "A Vontade de Crer", William James estabeleceu princípios para os procedimentos políticos e ideológicos dos EUA de hoje
por Francisco Alambert
A crença talvez seja o mais "norte-americano"
dos atos. A volúpia construtiva, o ímpeto ao
progresso, o otimismo da ação dissociado do
pessimismo da razão, todos parecem derivar de
uma fé laica na (e da) "América": um lugar onde a vontade de poder se traduz na "vontade de crer". O pragmatismo parece ser a religião desse Estado, e William
James, seu pastor.
Esse médico e filósofo, nascido em Nova York em
1842 (e que teve uma breve passagem pelo Brasil), filho
de pastor (e pastor ele mesmo), irmão do célebre escritor Henry James, é um dos fundadores do pragmatismo, certamente a maior, se não a única, contribuição
americana para a história do pensamento filosófico.
Um verso de Walt Whitman serve para ele como de resto para todos os "pais fundadores" dessa América sempre paradoxal: "Como são caros e terríveis para o mundo,/ como eles se habitam a si mesmos/ assim como aos
demais".
"A Vontade de Crer" é uma conferência dada aos alunos de Harvard, publicada em 1896. Trata-se de um breve texto, de uma luminosidade e clareza contagiantes,
objetivo, seguro de si e ainda dotado de humor e exemplos surpreendentes. Nesse discurso, James não parece
apenas o precursor da lógica pragmática, mas de algum
modo se assemelha à tradição do "speech", daqueles
discursos graciosos, falsamente improvisados, que os
norte-americanos adoram e usam em qualquer cerimônia com a mesma desfaçatez despojada.
Os pressupostos de James são os fundamentos da modernidade em sua asserção ianque: cientificismo, positivismo em versão protestante, apego ao humanismo
via psicologia (da qual o autor é também considerado
um dos fundadores).
Esse modernismo progressista aparece logo no começo da conferência e se espalha pelas metáforas e exemplos amplamente utilizados nessa defesa apaixonada da
fé e dos valores dessa civilização. Quando relaciona coisas que são impossíveis de serem acreditadas, exemplifica lembrando que seria inútil crer que a soma de duas
notas de US$ 1 "que temos no bolso" poderá ser US$
100. Seus exemplos são sempre ligados à vida prática e,
frequentemente, ao dinheiro. A par do enriquecimento
e das virtudes domésticas (são recorrentes os exemplos
tomados de flertes, casamentos, conquistas), a imagem
da eletricidade contagia todo o texto.
Para distinguir entre hipóteses "vivas e mortas", no
caminho de sua definição da funcionalidade da fé diante dos resultados produzidos pela cultura de seu país,
esse prócere do início da modernização industrial norte-americana figura idéias como um futurista: "E, assim, como os eletricistas falam de fios vivos e mortos,
falaremos das hipóteses como vivas ou mortas". Para
ilustrar quando uma hipótese está viva ou morta, instiga a platéia para que imagine crer no Mahdi.
Conexão espantosa À luz dos acontecimentos recentes, trata-se de uma proposição espantosa que talvez
tenha alguma conexão histórica com o presente e o estranhamento entre o ocidente americanizado e o oriente do islã. Pois Mahdi, que em árabe significa "aquele
que é guiado por Deus", é nada menos que o libertador,
o messias que virá no final dos tempos para restaurar a
justiça, a pureza dos costumes, a verdade. Note-se que
essa doutrina escatológica não é aceita pelos ortodoxos
sunitas (não consta do Alcorão), mas sim pelos xiitas.
Em momentos de crise e opressão, surgiram líderes
revolucionários que reivindicaram o título, como, por
exemplo, Mohamed Ahmad, que no Sudão lutou contra a dominação egípcia em 1881.
No entanto, completa James, a hipótese de tal crença
"não criará nenhuma conexão elétrica com a natureza"
de seu público, o que faz dessa alternativa de fé uma hipótese morta. Desde James, portanto, imaginar-se no
contexto da cultura árabe era um interdito impensável.
Só a crença cristã protestante era certa para a "natureza
volitiva", para a fé elétrica e extática dos pragmáticos
norte-americanos. Ao seu contraponto, o messianismo
islâmico, restaria, talvez, morrer eletrocutado.
Seja como for, a crença islâmica não ofereceria perigo,
pois não contagiaria eletricamente o êxtase religioso
dos fiéis de Harvard. O primeiro inimigo a sucumbir
diante dos mísseis lógicos de James é a famosa aposta de
Pascal. Como se sabe, Pascal propôs um jogo para confirmar a necessidade da fé. Se tivermos o juízo final como possibilidade, então é melhor apostarmos na existência de Deus, pois, caso ela seja falsa, não perderemos
ou ganharemos nada.
Mas, caso seja verdadeira, pagaremos pela eternidade
o pecado da descrença. James não tem dificuldade nenhuma em desmontar a fragilidade dessa proposta. Especialmente porque nota que, "quando a fé religiosa se
expressa dessa maneira, na linguagem da mesa de jogos, é sinal de que está reduzida a seus últimos trunfos".
É notável como o filósofo percebe em Pascal tudo
aquilo que não é capaz de ver em si mesmo: a proposta
do jansenista já denuncia o fim da ortodoxia católica ao
se expressar na linguagem capitalista do ganho, do lucro futuro. Pascal pensa como um mercador que, sem
saber, anuncia os novos tempos do pragmatismo protestante do qual James posa de porta-voz.
Outra prova de que a aposta de Pascal era efetivamente inútil, e sua lógica, "errada", é que a mesma proposição, digamos, terrorista, poderia ser feita por um Mahdi, caso este escrevesse ao público de Harvard dizendo
que quem não seguisse sua fé estaria condenado a ser
excluído da "luz do sol".
James crê que essa proposição (ou ameaça) seria tão
impossível de ser levada a sério que não passaria de outra hipótese morta. Assim, a crença árabe definitivamente não tem como tocar o elétrico coração dos norte-americanos. Não por argumentos de fé.
Mas o que "funcionaria" então para acender a centelha da fé nesses corações que desconhecem o apagão e
buscam eletrificar suas certezas contra as dúvidas e as
falsas apostas? Sabemos que o pragmatismo defende o
empirismo no campo da teoria do conhecimento (e este
livro expõe claramente esse ponto de vista) e o utilitarismo no campo da moral. Com relação a este, James considera que devemos dar valor apenas aos efeitos de uma
ação e não a seus pressupostos. Será considerado "verdade", portanto, aquilo que tiver como consequência o
sucesso, ou seja, aquilo que concretizar os resultados a
que se propôs.
"Todos nós", escreve o pastor apostando na cumplicidade de seu rebanho, "acreditamos em moléculas e na
conservação da energia, em democracia e no progresso
necessário, no cristianismo protestante e no dever de
lutar pela "doutrina do imortal Monroe'". Essa fé no
progresso, subsidiária da fé sagrada, só tem uma razão
de ser, uma razão prática: a "afirmação apaixonada de
desejo, em que nosso sistema social nos dá suporte". A
energia, o sistema representativo, a ética protestante no
espírito da doutrina intervencionista, tudo isso "funciona". Por que então não crer? Para o filósofo, portanto,
não é preciso apostar, mas apenas verificar a eficácia da
crença para o seu mundo.
Tratar-se-ia de uma espécie de fundamentalismo laico da ideologia do progresso norte-americano? Creio
que sim, mesmo correndo o risco de ser injusto com esse espírito solar. Mas parece impossível não notar nesse
grande pensador os princípios de um comportamento
tão caro aos procedimentos político-ideológicos do império do norte. Pois jamais ocorreria à pragmática liberal, aqui professada com certeza de fé, perguntar a que
preço as coisas "funcionam", quem paga o seu progresso, sob que relações sociais ele se estrutura, que destino
ele imprime aos outros, aos excluídos do mundo "que
funciona".
O otimismo liberal dos pragmatistas de ontem antecipa o neoliberalismo pragmático de hoje. Como explicou certa vez Max Horkheimer, na mentalidade pragmática norte-americana "a forma social atual é sagrada". Há um parentesco entre a crença fundada naquilo
que funciona para mim e a atitude do atual presidente
dos Estados Unidos ao se retirar de uma conferência internacional que deliberaria a respeito da poluição no
planeta (o futuro de todos, portanto), sob o argumento
de que diminuir o dano ambiental que a "América"
(sempre me pareceu claramente autoritária essa espécie
de autodenominação que define a parte como se fosse o
todo) causa ao mundo seria ruim para a economia norte-americana.
Ontem, como hoje, a vontade de crer é a vontade de
fazer com que tudo continue como está, o sonho americano perdurando em direção ao progresso para si, que é
a sua crença inabalável. Pelo menos até que um Mahdi
venha cobrar a conta e forçar, quem sabe, um terrível
despertar. Uma conta cujo "preço inexorável", para falar com Whitman mais uma vez, "há de ser pago ainda/
pela mesma grandeza/ encomendada".
Francisco Alambert é doutor em história pela USP e professor de estética e história da arte da Universidade Estadual Paulista.
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