São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 1998

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LIVROS
Um desbravador original


É relançada "A Menina Morta", obra-prima de Cornélio Penna, de 1954


LUIS BUENO
especial para a Folha

Escravos e mulheres preparam um enterro: roupas são costuradas, um caixão é confeccionado, os cavalos são atrelados ao carro para conduzir o féretro e, finalmente, o corpo de uma criança é lavado e vestido. É assim, com o drama já em curso, que entramos em "A Menina Morta" (1954), último romance escrito por Cornélio Penna (1896-1958), agora relançado. Nos quatro capítulos iniciais já podemos perceber a elaborada técnica de composição do livro. Mais que aos afazeres dolorosos que estão sendo executados, somos apresentados às pessoas que os executam e às relações que se estabelecem entre elas. Essa apresentação se faz aos pedaços, e o que temos diante de nós são cacos de vidas que, laboriosamente, ao longo de 125 capítulos, tentamos compor num todo que tenha solidez -tarefa ao mesmo tempo fascinante e vã.
Na ficção de Cornélio Penna importam menos os fatos do que suas ressonâncias e o ambiente que eles criam. Por isso, é inútil fazer a velha pergunta, filha da curiosidade: de que teria morrido a menina? Sendo supérflua, mero fato, uma informação desse tipo não nos é fornecida. Assim, mais que uma personagem, essa menina que dá título ao romance é uma espécie de fantasma que ronda toda a narrativa. No entanto, não é fantasma que assombre -as assombrações ali, naquele casarão de fazenda do Vale do Paraíba, no século 19, habitam por dentro cada um de seus moradores. A ausência da menina, criatura sem assombrações, põe a nu a incapacidade -ou a impossibilidade- que todos ali têm de se libertar de seus monstros e viver verdadeiramente.
E viver verdadeiramente é integrar-se ao outro, aceitá-lo e, dessa maneira, aceitar-se. A menina morta era capaz disso. Distribuía seu amor, sem parcimônia, a todos -homens e mulheres, senhores e escravos. Agora, destituída dessa fonte de vida e marcada por um erro, que não sabemos exatamente qual seja, a fazenda do Grotão, numa espécie de autofagia angustiosa, caminha para a dissolução.
Em "Fronteira" (1935), seu primeiro romance, Cornélio Penna nos apresentara aquilo que Tristão de Ataíde chamou de um caso de santidade falhada. A personagem central, Maria Santa, presa dentro de um velho casarão mineiro, refém de uma visão estreitíssima de religião de uma tia dominadora que a afasta das outras pessoas (da vida verdadeira), não realiza sua vocação para a santidade. Essa vocação a acaba destruindo.
Neste "A Menina Morta" as personagens também são reféns, mas de uma estrutura mais ampla, que ultrapassa de muito o universo familiar, agora integrado ao funcionamento de uma sociedade escravocrata e patriarcal. As relações de dependência se multiplicam. São parentes pobres que vivem sob a proteção do dono da fazenda e sob o peso dessa mesma proteção: cada palavra, cada atitude, cada desejo é medido. São mulheres que, mesmo pertencendo à elite, não têm espaço vital nenhum. São escravos sobre os quais recai todo o peso da maior das injustiças, que é a de lhes ser negado o direito à humanidade.
A irmã mais velha da menina morta, Carlota, que estudava no Rio de Janeiro, volta à fazenda, ao mesmo tempo que seus pais saem de lá. Para os demais moradores, sua vinda representa a própria esperança: "Chegara como o sopro novo e poderoso da vida naquela casa". Mas ser esse sopro está acima das suas forças. Entre sofrimentos imensos, ela vai fazendo descobertas, que, mais tarde, vão lhe permitir opor a resistência possível ao mal que envolve a fazenda.

A OBRA
A Menina Morta - Cornélio Penna. Ed. Artium (r. do Ouvidor, 63, CEP 200403, RJ. tel. 021/252-1165). 486 págs. RÏ 30,00.



Num dos capítulos mais significativos do livro, levanta-se em plena madrugada. Ao andar pela fazenda, depara-se com escravos no tronco. Nesse momento percebe que, ao contrário da menina morta, não é capaz de compreender integralmente o sofrimento humano que presencia. Reconhecendo-se ao mesmo tempo vítima e algoz, reprimida e repressora, decide isolar-se na fazenda. Desfaz o noivado acertado com o herdeiro de grandiosa propriedade fronteiriça ao Grotão e alforria os escravos. Assiste a uma debandada geral, pois quase todos os parentes, além dos escravos, buscam refúgio noutra parte. Incapaz de livrar-se do terrível círculo que a aprisiona (para usar uma expressão cara a Cornélio Penna) a solução que encontra é a de, pela via da esterilidade, romper sua continuidade. Não se submeterá ao casamento nem submeterá os negros à escravidão.
Roberto Schwarz apontou certa vez que, nos anos 60, a despeito de estarmos numa ditadura de direita, o pensamento de esquerda dominou a intelectualidade brasileira. Coincidiu com esse período o início do esquecimento da obra de Cornélio Penna: ainda em 1958 ela era considerada suficientemente relevante para merecer uma edição integral pela Aguilar. É certo que contribuiu muito para esse esquecimento o fato de o autor de "Fronteira" ter sido católico e próximo a artistas de ligação histórica com o pensamento político mais reacionário (bastaria lembrar o Octávio de Faria dos anos 30 e 40). Hoje, com distanciamento, é possível olhar para essa obra e notar o quanto ela se afasta do catolicismo que se confundiu com o fascismo nos anos 30 e o quanto projeta uma visão libertária do homem.
Acima de tudo, "A Menina Morta" interessa como realização máxima de um desbravador na literatura brasileira. Recentemente Silviano Santiago (Mais!, 07/12/97) reivindicou para Clarice Lispector o papel de inauguradora entre nós de um romance que se afasta do "acontecimento", mergulhando numa experiência "não-afortunada", "subalterna" em relação à tradição do romance brasileiro, marcadamente vinculado ao "desenvolvimento nacional". Valeria a pena pensar o quanto Cornélio Penna teria pelo menos de precursor nesse sentido. O crítico e escritor Edward Lopes, em "A Palavra e os Dias" (1993), apontou brevemente ligações entre Cornélio Penna e Clarice Lispector que não podemos desprezar se quisermos, de fato, saber o quanto a obra desse estranho escritor, ainda que raramente reeditada e pouco lida, dialoga com uma das vertentes mais ricas da literatura brasileira contemporânea.
Como se vê, a importância de Cornélio Penna para a ficção brasileira do século 20 ainda está por ser determinada com precisão. Adonias Filho, fascinado com a originalidade de sua escritura, considerava-o um caso isolado dentro da tradição do romance do nosso século. De fato, sua obra é um caso único em sua geração, só aproximável, em certo sentido, à de Lúcio Cardoso. Mas vai uma longa distância entre a criação original e o isolamento. Agora a reedição de "A Menina Morta" pode ser um estímulo para que avance o trabalho de localização da obra de Cornélio Penna na história do romance brasileiro.


Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.



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