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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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Contra Habermas e Fukuyama

Marcelo Leite
editor de Ciência

Slavoj Zizek é um pensador tão eclético quanto penetrante, que não se acovarda diante da dificuldade que representa, hoje, tentar lançar algumas pontes entre as humanidades e as ciências naturais. Numa versão mais alongada do texto aqui reproduzido, destinada a figurar numa futura coleção de ensaios, o filósofo esloveno mistura ainda mais conceitos e nomes em seu liquidificador: o problema do Novo em Gilles Deleuze, a autopoiesis de Francisco Varela e Humberto Maturana, o gene egoísta e os memes de Richard Dawkins, mais G.W.F. Hegel, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Martin Heidegger -e por aí vai.
Em seu caso, porém, o ecletismo é bem-vindo. A mistura vem vitaminada com parentescos tão inesperados quanto convincentes e com distinções iluminadoras. Considere-se o caso da aproximação entre frankfurtiano pragmático Jürgen Habermas e o hegeliano liberal Francis Fukuyama, que vai além da temática manifesta de seus livros recentes sobre biotecnologia: apesar de tomarem sentidos opostos na questão da natureza humana, transcendental para um e empírica para outro, eles se reencontram na defesa conservadora de uma ignorância benevolente como única reação cabível às descobertas incômodas da biologia humana.
Leia, a seguir, as respostas por e-mail de Zizek sobre o relacionamento entre esses estranhos companheiros de viagem.

Seu artigo parece lançar Francis Fukuyama e Jürgen Habermas no mesmo saco daqueles que temerosamente rejeitam o conhecimento da biogenética de modo a proteger a "dignidade humana". O sr. não acha que há uma grande diferença entre seus livros, respectivamente "Our Post-Human Future" [Nosso Futuro Pós-Humano, que será lançado em julho no Brasil pela Editora Rocco] e "Die Zukunft der menschlichen Natur" [O Futuro da Natureza Humana]?
Fukuyama, assim como Habermas, também insiste explicitamente na indeterminação da disposição genética individual e rejeita intervenções, não a pesquisa enquanto tal (e, por falar nisso, acho essa oposição entre mera pesquisa e intervenções práticas ingênuas demais e insustentáveis). A diferença entre Fukuyama e Habermas, no final das contas, é uma diferença entre o transcendental e o empírico: Fukuyama localiza a dignidade humana no fato biológico positivo de nossa "natureza humana" (nosso patrimônio genético único), enquanto para Habermas ela é um a priori transcendental simbólico que não pode ser baseado diretamente em nossas características empíricas. Mas o que Fukuyama e Habermas partilham, em sua oposição muito radical, é a tese de que nossa dignidade só pode ser mantida se mantivermos a indeterminação da disposição genética individual, isto é, se nos abstivermos de tentar controlar o núcleo de nossa personalidade por meio da manipulação biotecnológica. O que eu considero problemático é essa noção partilhada de que -para simplificar-, se for para reter nossa dignidade humana, é melhor não saber muito.
Não seria a hipersensibilidade de Fukuyama e Habermas à biogenética derivada de tomarem as promessas genômicas pelo valor de face, como ser possível manipular o comportamento humano por meio dos genes, quando há mais fantasia que realidade nesse determinismo genético prospectivo?
Acredito que nem Habermas nem Fukuyama tomam as premissas jornalísticas sobre a biogenética por seu valor de face. Sua hipersensibilidade abarca três níveis: 1. Embora muitas afirmações exageradas sejam feitas hoje em dia, é realista a perspectiva de intervenções biogenéticas que afetarão profundamente nossa identidade humana; 2. Já é duvidoso, hoje, o status ético dos psicofármacos disponíveis que "incrementam" nossas capacidades psíquicas; 3. Se os seres humanos tratam a si próprios, sua subjetividade, como objetos de manipulação tecnológica potencial, já estão se privando de uma dimensão-chave de sua dignidade humana.
O sr. critica Fukuyama por não levar em consideração que a mente é um produto social. Não é exatamente a isso que Habermas se refere quando põe tanto peso no aspecto fundacional da ação comunicativa?
Habermas, é claro, está certo em sua insistência no aspecto fundacional da ação comunicativa. O que considero problemático é o seu conceito específico de ação comunicativa, que faz dele um "filósofo de Estado" exemplar. Quer dizer, a mais recente "crise" ética a propósito da biogenética recria a necessidade daquilo que justificadamente se chama de "filosofia de Estado": uma filosofia que, de um lado, chancela a pesquisa científica e o processo técnico e, de outro, limita seu amplo impacto sociossimbólico, isto é, impede-os de constituir uma ameaça à constelação teológico-ética existente. Não é surpresa que aqueles que chegam mais perto de satisfazer essa demanda sejam neokantianos (Habermas na Alemanha, Luc Ferry na França): o próprio Kant se debruçou sobre o problema de garantir, ao mesmo tempo em que se leva plenamente em conta a ciência newtoniana, que haja um espaço de responsabilidade ética fora do alcance da ciência, isto é, como disse o próprio Kant, ele limitou o escopo do conhecimento para criar o espaço da fé e da moralidade. E não estão hoje os filósofos de Estado enfrentando a mesma tarefa? Não está o seu esforço focalizado em como, por meio de versões diferentes de reflexão transcendental, restringir a ciência a seu horizonte de sentido predeterminado e, com isso, denunciar como "ilegítimas" suas consequências para a esfera ético-religiosa? Há duas maneiras principais de cumprir a tarefa: a kantiana (manter as esferas separadas) e a obscurantista, do tipo Nova Era (tentar demonstrar como os próprios resultados científicos -a física quântica, por exemplo- nos compelem a abandonar o materialismo e apontam para uma nova espiritualidade, gnóstica ou oriental).
O reconhecimento da opacidade do "Self", como o sr. advoga na conclusão, vai necessariamente impedir que se insista numa solução racional para o desafio lançado pela genética, ao menos na esfera sociopolítica? É possível recusar intervenções genéticas induzidas pelo capitalismo por razões estratégicas, por coragem política e não por temor filosófico.
É claro que se devem recusar as intervenções genéticas em seres humanos induzidas pelo capitalismo -eu mesmo apóio totalmente essa recusa. Mas isso não resolve o problema de confrontar as implicações propriamente filosóficas da biogenética, isto é, o modo como ela nos compele a redefinir nossas noções correntes da liberdade e da dignidade humanas.



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