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Contra Habermas e Fukuyama
Marcelo Leite
editor de Ciência
Slavoj Zizek é um pensador tão eclético quanto penetrante, que não se acovarda diante da dificuldade que
representa, hoje, tentar lançar algumas pontes entre
as humanidades e as ciências naturais. Numa versão
mais alongada do texto aqui reproduzido, destinada a figurar numa futura coleção de ensaios, o filósofo esloveno mistura ainda mais conceitos e nomes em seu liquidificador: o
problema do Novo em Gilles Deleuze, a autopoiesis de Francisco Varela e Humberto Maturana, o gene egoísta e os memes de Richard Dawkins, mais G.W.F. Hegel, Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Martin Heidegger -e por aí vai.
Em seu caso, porém, o ecletismo é bem-vindo. A mistura
vem vitaminada com parentescos tão inesperados quanto
convincentes e com distinções iluminadoras. Considere-se
o caso da aproximação entre frankfurtiano pragmático Jürgen Habermas e o hegeliano liberal Francis Fukuyama, que
vai além da temática manifesta de seus livros recentes sobre
biotecnologia: apesar de tomarem sentidos opostos na
questão da natureza humana, transcendental para um e empírica para outro, eles se reencontram na defesa conservadora de uma ignorância benevolente como única reação cabível às descobertas incômodas da biologia humana.
Leia, a seguir, as respostas por e-mail de Zizek sobre o relacionamento entre esses estranhos companheiros de viagem.
Seu artigo parece lançar Francis Fukuyama e Jürgen Habermas no mesmo saco daqueles que temerosamente rejeitam o
conhecimento da biogenética de modo a proteger a "dignidade humana". O sr. não acha que há uma grande diferença entre seus livros, respectivamente "Our Post-Human Future"
[Nosso Futuro Pós-Humano, que será lançado em julho no
Brasil pela Editora Rocco] e "Die Zukunft der menschlichen
Natur" [O Futuro da Natureza Humana]?
Fukuyama, assim como Habermas, também insiste explicitamente na indeterminação da disposição genética
individual e rejeita intervenções, não a pesquisa enquanto tal (e, por falar nisso, acho essa oposição entre mera
pesquisa e intervenções práticas ingênuas demais e insustentáveis). A diferença entre Fukuyama e Habermas,
no final das contas, é uma diferença entre o transcendental e o empírico: Fukuyama localiza a dignidade humana
no fato biológico positivo de nossa "natureza humana"
(nosso patrimônio genético único), enquanto para Habermas ela é um a priori transcendental simbólico que
não pode ser baseado diretamente em nossas características empíricas. Mas o que Fukuyama e Habermas partilham, em sua oposição muito radical, é a tese de que nossa dignidade só pode ser mantida se mantivermos a indeterminação da disposição genética individual, isto é, se
nos abstivermos de tentar controlar o núcleo de nossa
personalidade por meio da manipulação biotecnológica.
O que eu considero problemático é essa noção partilhada
de que -para simplificar-, se for para reter nossa dignidade humana, é melhor não saber muito.
Não seria a hipersensibilidade de Fukuyama e Habermas à
biogenética derivada de tomarem as promessas genômicas
pelo valor de face, como ser possível manipular o comportamento humano por meio dos genes, quando há mais fantasia
que realidade nesse determinismo genético prospectivo?
Acredito que nem Habermas nem Fukuyama tomam as
premissas jornalísticas sobre a biogenética por seu valor
de face. Sua hipersensibilidade abarca três níveis: 1. Embora muitas afirmações exageradas sejam feitas hoje em
dia, é realista a perspectiva de intervenções biogenéticas
que afetarão profundamente nossa identidade humana;
2. Já é duvidoso, hoje, o status ético dos psicofármacos
disponíveis que "incrementam" nossas capacidades psíquicas; 3. Se os seres humanos tratam a si próprios, sua
subjetividade, como objetos de manipulação tecnológica
potencial, já estão se privando de uma dimensão-chave
de sua dignidade humana.
O sr. critica Fukuyama por não levar em consideração que a
mente é um produto social. Não é exatamente a isso que Habermas se refere quando põe tanto peso no aspecto fundacional da ação comunicativa?
Habermas, é claro, está certo em sua insistência no aspecto fundacional da ação comunicativa. O que considero
problemático é o seu conceito específico de ação comunicativa, que faz dele um "filósofo de Estado" exemplar.
Quer dizer, a mais recente "crise" ética a propósito da
biogenética recria a necessidade daquilo que justificadamente se chama de "filosofia de Estado": uma filosofia
que, de um lado, chancela a pesquisa científica e o processo técnico e, de outro, limita seu amplo impacto sociossimbólico, isto é, impede-os de constituir uma ameaça à constelação teológico-ética existente. Não é surpresa
que aqueles que chegam mais perto de satisfazer essa demanda sejam neokantianos (Habermas na Alemanha,
Luc Ferry na França): o próprio Kant se debruçou sobre o
problema de garantir, ao mesmo tempo em que se leva
plenamente em conta a ciência newtoniana, que haja um
espaço de responsabilidade ética fora do alcance da ciência, isto é, como disse o próprio Kant, ele limitou o escopo do conhecimento para criar o espaço da fé e da moralidade. E não estão hoje os filósofos de Estado enfrentando a mesma tarefa? Não está o seu esforço focalizado em
como, por meio de versões diferentes de reflexão transcendental, restringir a ciência a seu horizonte de sentido
predeterminado e, com isso, denunciar como "ilegítimas" suas consequências para a esfera ético-religiosa?
Há duas maneiras principais de cumprir a tarefa: a kantiana (manter as esferas separadas) e a obscurantista, do
tipo Nova Era (tentar demonstrar como os próprios resultados científicos -a física quântica, por exemplo-
nos compelem a abandonar o materialismo e apontam
para uma nova espiritualidade, gnóstica ou oriental).
O reconhecimento da opacidade do "Self", como o sr. advoga
na conclusão, vai necessariamente impedir que se insista numa solução racional para o desafio lançado pela genética, ao
menos na esfera sociopolítica? É possível recusar intervenções genéticas induzidas pelo capitalismo por razões estratégicas, por coragem política e não por temor filosófico.
É claro que se devem recusar as intervenções genéticas
em seres humanos induzidas pelo capitalismo -eu mesmo apóio totalmente essa recusa. Mas isso não resolve o
problema de confrontar as implicações propriamente filosóficas da biogenética, isto é, o modo como ela nos
compele a redefinir nossas noções correntes da liberdade
e da dignidade humanas.
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