São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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A PeQUENA VeNDEDoRA DE FóSFOROS

por Valêncio Xavier

É verdade, aconteceu mesmo, no tempo passado, no começo dos 1900, em Curitiba. A menina tinha perdido pai, mãe e vivia com avó. E era tão fria a casinha de madeira em que elas moravam... sem forro, telhado cheio de buracos por onde a chuva entrava, frestas nas paredes de tábua por onde o vento assobiava.
A avó era viúva, trabalhava na fábrica de fósforos, ela estava bem velhinha e sofria de muitas doenças, tossia muito, mais ainda nos dias frios, e tinha as veias da perna saltadas e os pés inchados, doía muito.
Naqueles tempos os fósforos não vinham nas caixas. Pois não é que então os fósforos eram vendidos soltos.
A avó trabalhava 12 horas por dia na fábrica. Ela roubava fósforos e escondia na manga do vestido. Não era roubo, pagavam tão pouco na fábrica. Chegada em casa, de noite, a avó pegava os fósforos e dava para a menina vender na rua de dia e de noite.
Era noite de Natal. Na escuridão gelada, a menina ia, cabeça descoberta, os pezinhos arroxeados de frio, com o chinelo furado. No bolso de velho avental trazia um maço de fósforos, durante o dia inteiro só vendera um palito... Era noite gelada. Janelas iluminadas. Talvez nessa noite o cheiro gostoso do peru chegasse às ruas cobertas de brancas pedras de gelo, da geada que caíra durante o dia: clima curitibano.
Na calçada, a menina encolheu-se no canto de uma casa, janelas iluminadas, suas mãozinhas enregeladas, rotas de frio, parou para olhar a árvore de Natal na janela iluminada de uma casa rica, dava para ver também o peru assado fumegante, recheado de ameixas e maçã e os doces na mesa, e embrulhadas em papel colorido grandes caixas com presentes. Música alegre de Natal, sinos; a barriga da menina roncava de fome. Ia acendendo um fósforo atrás do outro para se esquentar do frio da noite escura. De repente, deu uma coisa ruim na menina, não sabia explicar por quê. E não é que o peru pulou da travessa, faca e garfo espetados nas costas, e veio à janela se oferecer e falou na língua dele, que ela não entendeu. Mas alguma coisa disse para ela olhar o alto do céu escuro. Olhou e viu uma estrela caindo e lembrou que a avó sempre diz: "Quando uma estrela cai do céu é porque morreu alguém".
Foi uma coisa triste e ao mesmo tempo boa. Acendeu o último fósforo que tinha, olhou para o céu, na claridade da chama surgiu a avó indo para uma estrela. "Vovó, me leva com a senhora, me leva! Depressa, antes que o fósforo apague! Quando ele apagar, a senhora, a casa, a árvore, o peru, tudo vai sumir. Me leva, vovó, me leva"...
... nunca a avó fora tão bela como na claridade do fósforo.
Ergueu a menina nos braços e as duas voaram felizes para as alturas, onde não havia frio nem fome nem medo.
Voaram para junto de Deus...


Valêncio Xavier é autor de, entre outros, "Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido" (Companhia das Letras) e "Meu 7º Dia" (ed. Ciência do Acidente).


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