São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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Do começo dos 60 até a suspensão da ajuda já nos 90, foram 30 anos em que os soviéticos proporcionaram a Cuba o equivalente, segundo as diferentes estimativas, à média entre US$ 4 milhões e US$ 7 milhões por dia; mas não há dúvida de que a ajuda soviética não foi aproveitada com competência à altura das possibilidades que ofereceu


De Raul Castro, que os americanos diziam ser comunista autêntico, porque foi como estudante a um Congresso da Juventude em Praga, dentro da Cortina de Ferro, saíam algumas das mais ferinas considerações sobre os comunistas. Esta, por exemplo, constou do seu testemunho no julgamento do comandante Huber Matos, o primeiro guerrilheiro da Sierra acusado de traição ao governo revolucionário: "Se os comunistas se puserem contra a revolução, seja quando for, nós os guerrearemos". O outro "comunista autêntico" do círculo de Fidel dirigia sua ênfase a um nível muito mais perigoso. Pasmou um grupo de jornalistas estrangeiros quando lhe disse que Cuba era agradecida à União Soviética, mas uma eventual tentativa russa de transformá-la em satélite comunista encontraria resistência total dos cubanos. Para não haver dúvida quanto à natureza da resistência: "Até a última gota de sangue". Essa afirmação era feita no mesmo julho de 60 em que os Estados Unidos cortaram a cota de açúcar cubano e a União Soviética socorreu Cuba. O entrevistado: comandante Ernesto Guevara.

A conversão comunista
O aniversário de 61 do ataque ao quartel Moncada, 26 de julho, foi um novo e mais importante marco desde a posse de Fidel no governo. O próprio Fidel comunicou o nascimento do Partido Unido da Revolução Socialista, Unido por ser a fusão dos revolucionários castristas e dos comunistas. Era uma virada nos princípios originais da revolução e a culminância de um processo, transcorrido nos 12 meses entre o grande socorro soviético e a fusão interna, sobre o qual nada se sabe. A URSS exigiu? Ou Fidel e seu estado-maior converteram-se por convicção e adotaram os comunistas cubanos por vontade própria? A melhor possibilidade de esclarecimento, mas incerta, são os arquivos da ex-URSS, que não cessam de desfazer mistérios, dúvidas e descrenças, com as respostas mais assombrosas. O certo é que o novo rumo da revolução foi materialmente proveitoso para Cuba, ainda sob risco de colapso. As óbvias razões estratégicas aliaram-se à reconhecida admiração de Kruschev por Fidel, e a URSS foi de uma generosidade que nem os países do bloco soviético haviam conhecido, jamais. As transações de Cuba com os países do bloco, com o Canadá afirmativo de sua "independência" e com alguns europeus (a Espanha fascistóide do ditador Franco manteve curiosa abertura para a Cuba comunista) proporcionavam base consistente para o desenvolvimento cubano. Antes que houvesse desenvolvimento, Cuba teve outro tipo de evolução. Passou de obsessão dos Estados Unidos a centro do mundo. A URSS estava cercada de bases militares, com mísseis e armas nucleares, que os americanos foram plantando em numerosos países. Em meado de 62, passado um ano das novas relações econômicas entre Cuba e URSS, os militares soviéticos iniciam a montagem de uma base sua em solo cubano. Em novembro os americanos têm a comprovação fotográfica da finalidade das obras: são rampas de lançamento de mísseis voltadas para o território americano. Novas fotos, em alto-mar, mostram os primeiros mísseis cruzando o Atlântico, bem ostensivos nos conveses cargueiros, rumo a Cuba. Foi um momento sem igual na História. Durante 72 horas, a sobrevivência da humanidade esteve sob o risco monstruoso de ficar na dependência de apenas duas cabeças, tão pouco confiáveis como qualquer cabeça humana. Na sua dimensão planetária, o medo atômico foi mesmo o primeiro sentimento universal do homem, e aquele foi o instante mais dramático desse sentimento. Outra vez, porém, a sombra impenetrável encobre o conhecimento do que aconteceu em Cuba, de fato, para situá-la no absurdo papel, tão contrário às fontes da sua revolução, de causa imediata (não causa histórica ou causa "tout court", é claro) da ameaça à humanidade. O acordo de Kruschev com Kennedy, nos minutos finais do perigo -a meia-volta do cargueiro e a destruição das rampas, em troca da retirada dos mísseis em torno da URSS e a imunidade de Cuba a um ataque militar americano- situou Cuba como peça-chave em um jogo de alto risco armado pela URSS. Cuba teve consciência prévia do jogo e do seu papel de estopim do perigo final? Precisou aceitar uma exigência soviética que se revelou um tudo ou nada? Ou se seduziu pela idéia de inverter a intimidação no confronto Cuba x Estados Unidos, hipótese que a inteligência de Fidel descredencia. Vejo agora essa estranha Havana e penso, perplexo, na ajuda soviética. É impossível conciliá-las, por pouco que seja. Do começo dos 60 até a suspensão da ajuda já nos 90, forçada pela crise econômica da URSS, foram 30 anos em que os soviéticos proporcionaram a Cuba o equivalente, segundo as diferentes estimativas, à média entre US$ 4 milhões e US$ 7 milhões por dia. Na maior parte, era a diferença entre a compra de açúcar por preço acima do mercado e venda de petróleo abaixo da cotação internacional, para uso e transações exteriores de Cuba. O restante provinha de variadas compras favorecidas. Era muito dinheiro. Ouço que o governo revolucionário investiu no interior. E estar na desfigurada Havana não autoriza a falar do interior. Mas não há dúvida de que a ajuda soviética não foi aproveitada com competência à altura das possibilidades que ofereceu. Os cubanos responsabilizam o "bloqueo", o embargo que os Estados Unidos mantêm, desde a crise dos mísseis, ao seu e a certa parte do comércio internacional com Cuba. A explicação é insuficiente. Seu maior valor está no estado de espírito que o "bloqueo" permite ao discurso oficial criar na população, fazendo-a menos reivindicativa e mais tolerante com as imensas carências materiais do seu dia-a-dia.

Grupo fechado
Desde a primeira fase do governo revolucionário, o estado-maior de Fidel não se entendeu com seus próprios projetos econômicos. O grupo fechou-se depressa à colaboração de especialistas que não portavam a roupa de campanha. Os quadros de apoio foram muito reduzidos, até quase a inoperância, pela fuga incessante e crescente para a Flórida. Mas a velha e catastrófica onipotência do revolucionário vitorioso chegara a Havana para ficar.
Instado pelo voluntarismo de Guevara, logo no início o governo dedicou-se a um plano de industrialização nacional. Um atrás do outro, diferentes setores e pessoas eram responsabilizados pelo insucesso, com maiores perdas de especialistas sem, no entanto, dar viabilidade à industrialização pelas vias imaginadas. O próprio médico Che Guevara assumiu a presidência do Banco Nacional de Cuba, para dar eficácia e dinamismo a um sistema de financiamento dos novos projetos. Não foi o que aconteceu.
O analfabetismo, até 59 muito presente entre adultos do interior, foi extinto com rapidez, mostrando que isso só não acontece em países como o Brasil por incúria e improbidade dos responsáveis. A escolarização funda mental cedo alcançou o total das crianças, com a construção de escolas pelo país todo e a assistência aos pais. Mais tarde desenvolveram-se os cursos técnicos e superiores. O ensino foi o êxito exemplar da revolução, e perdura até hoje. Os efeitos desse êxito são, porém, muito relativos, tolhidos pela inexistência de oportunidades na economia deprimida, quando não estagnada. Exceção foram os cursos de medicina e correlatos, porque toda a população passou a contar com serviços médicos. Este foi o segundo êxito notável da revolução, hoje passível de algumas críticas, como testemunhei. Do primeiro plano aos dias de hoje, passando, pois, pela grande ajuda da URSS, é evidente que a industrialização teve sempre o mesmo destino. Ao menos em grande parte, tudo sugere que a maior, pela mesma atitude relapsa de que os técnicos do bloco soviético foram acusados pelos próprios governantes comunistas. Um caso: durante a longa e desagradável conexão em Cancún, travo conhecimento com engenheiros que vão ao interior de Cuba examinar, para uma empresa estrangeira, as condições de uma fábrica moderna, equipamento excelente, de produção de papel com bagaço de cana. Há anos está pronta. Mas nunca foi posta em produção. Só a alta do preço do papel, nos últimos dois anos, já renderia altos lucros a Cuba. A atitude relapsa se mostra logo à chegada. "Esse carro é seu?", um Nissan, com um taxista de muito bom nível. "Não. O governo tem cinco empresas de táxis, esse carro é de uma delas e eu ganho uma comissão na corrida, mas tão pequena que a gente vive é da propina." "E quem dirige esse carro é só você?" "Somos dois, um a cada dia, quantas horas quiser." O carro tem dois ou três anos de uso: deve ser o tempo em que ninguém o limpa, a poeira forma crosta no painel, no volante mesmo, no carro todo. É um "táxi de turista", pago em dólar. Seu estado não é regra geral, mas não está muito longe disso. Só os poucos táxis especiais, bem caros, têm todos o tratamento conveniente.

Coisa de um dólar
Regra geral, ou quase absolutamente isso, é o padrão de vida. Os salários obedecem, sejam quais forem as atividades, à variação entre os US$ 20 e os US$ 30 por mês. Não adianta raciocinar com o dólar convencional e escandalizar-se. O custo de vida para os cubanos é muito baixo. O aluguel é simbólico, coisa de um dólar (a habitação própria é permitida e até financiada pelo Estado), e todos têm direito a um conjunto de gêneros alimentícios e de higiene. As carências materiais, sejam de uso doméstico ou pessoal, são grandes, no entanto. Muitas delas, perceptíveis o tempo todo e em toda a parte. Outras, capazes de fazer sabonete ou pasta de dentes tornar-se bem precioso. Não há mendicância, não há infância perambulando, não há gente esquálida. Os trabalhadores do açúcar e do tabaco, os lavradores, os trabalhadores urbanos não-qualificados tiveram, todos, a ascensão representada por maior facilidade de moradia, por ensino, saúde pública e parte da alimentação. Nada foi feito de parecido com isso, nem de longe, na América Latina. Com essas realizações, o sistema de salários e a repressão à "posse burguesa" de bens e de dinheiro, a Revolução Cubana extinguiu a desigualdade econômica. Os que antes estavam nas camadas mais baixas subiram, mas sem chegar ao que chamamos de classe média, ou mesmo classe média baixa. Os que estiveram nestes níveis, ou neles estariam sem a uniformização salarial, foram descidos. É nítido, então, que a justiça da igualdade produziu, nas circunstâncias cubanas, o nivelamento social na pobreza. Não há miséria e não há a pobreza degradante, mas a população é pobre, sim, seja avaliada por padrões burgueses ou socialistas.

Saída original
A igualdade em tais níveis e, além disso, combinando a justiça para uma parte da população e a provável injustiça com outra, é uma contrariedade aos propósitos originais dos revolucionários cubanos. Em todo caso, está inscrita entre os grandes êxitos, não só ou não mais dos revolucionários de Fidel Castro, mas já do comunismo cubano. Um regime que tenta

A nova política econômica de Cuba é uma pequena volta a certos aspectos econômicos e sociais do primeiro período revolucionário; a evolução que essa volta terá é um mistério


uma saída outra vez original, com sacrifício de vários dos seus alicerces ideológicos e êxitos menos ou mais comprovados. Entre eles, a equidade econômica da população. A necessidade de contornar nova e inesperada ameaça de colapso foi mais forte. A crise da União Soviética pegou Cuba despreparada para enfrentar sozinha o seu futuro, como se houvesse acreditado que a ajuda soviética não teria fim. A solução adotada foi, até mesmo por lá, a sempre citada abertura. Cuba quebrou o seu próprio "bloqueo", que mantinha à distância os capitais privados e a quase totalidade dos turistas atraídos pelo Caribe.

Teoria, prática
A abertura cubana se faz por três vias simultâneas. Uma delas é o abandono do monopólio do Estado sobre as empresas. Capitais privados são atraídos para o investimento em Cuba, mas sempre tendo o Estado como sócio no empreendimento. Em determinadas sociedades, o Estado detém a propriedade e o capital privado movimenta a empresa. Na teoria, as relações trabalhistas nas empresas mistas são as mesmas das empresas oficiais. A prática, recente embora, já mostra que trabalhar para as mistas pode ser mais exaustivo, mas rende maiores compensações. E isso resulta na formação de um segmento social que vai alcançando melhor nível econômico individual e familiar. O que é ótimo, mas, do ponto de vista do regime cubano, é um abalo forte na equidade salarial e pretensamente social. O turismo é a segunda via da abertura. Nas atividades ligadas a ele, ainda que secundariamente, a remuneração extra do trabalho é a melhor em Cuba, o grande atrativo nacional. Como no mundo afora, os turistas a tudo retribuem com propina. Em dólar. No dólar das compras em lojas para estrangeiros, da compra de produtos estrangeiros legais ou contrabandeados, dólar que até evita filas incômodas para tomar sorvete. Como sempre, os economistas e seus planos miram um objetivo e dão no inesperado. A abertura turística planejada pelos economistas do governo está levando a deslocamentos sociais com efeitos complexos. O médico e o professor, por exemplo, têm salários em pesos equivalentes a US$ 30 e aprenderam pelo menos uma língua estrangeira. É claro que correm para os serviços a turistas, não importa se trabalho oficial ou autônomo, porque lhes renderá várias vezes o salário anterior. Podem igualá-lo em um só dia com turistas. Já faltam professores e diminui o número de médicos na Cuba que tinha uns e outros em abundância. E, efeito mais triste da atração pelo dólar da abertura turística, volta com ímpeto o turismo sexual e, portanto, a prostituição, atrações simbólicas da noturna Havana pré-revolução. A terceira forma da abertura é a permissão para entrada de dólares mandados pelos exilados para seus familiares. São dólares que pouco retiram de quem manda, 100 ou 200 nos Estados Unidos não apertam o mês de nenhum "gusano", e mudam a vida de quem recebe. Com um efeito mais amplo: o dólar, hoje, é moeda corrente em Havana. Fiz a experiência de nada cambiar, e tudo se passou com a melhor normalidade. Nem vi cédula cubana, só moedinhas de troco. Cuba está dolarizada e endolarizando-se. Pelo dinheiro dos Estados Unidos que planejaram seu aniquilamento, depois de lhe financiarem a revolução que odeiam há 40 anos. Nesses 40 anos, já 41, a vida foi dura para os cubanos. Não só nos aspectos econômicos. O regime comunista levou longe demais a sua recusa às liberdades civis. A abertura produz reflexos. Já se pode ver em Havana um balé contemporâneo com longo trecho dançado por nus femininos e masculinos ("El Árbol") -o que exprime bem um gênero de liberalização do regime que se ocupava até em caçar homossexuais. Não se percebe clima opressivo nos lugares públicos. Mas a liberalização não chega, nem se aproxima, do direito à liberdade de expressão e de discordância crítica ao regime ou ao governo. Nem é, este, assunto que precise de maior observação: em Cuba não há jornal, e não há porque não pode haver. O "Granma" é um diário de proselitismo, com artigos que amplificam a voz oficial ou oficiosa, e sem noticiário factual. As explicações e argumentos dos militantes, que se fizeram presentes no Fórum da Associação Européia de Jornalistas até "cubanizá-lo", como diziam nos corredores, lembram os tempos do stalinismo: falam todos as mesmas coisas, do mesmo jeito, com as mesmas palavras. Tão cansativos e inúteis como seus provocadores. Na rua, porém, críticas e queixas não fazem cerimônia. Em sua primeira entrevista de vitorioso, 4 de janeiro de 59, Fidel Castro entrou em duas guerras difíceis. Nos 40 anos desde então, ganhou a que preferiria não existisse: ganhou a guerra com os Estados Unidos. Tudo o que não arriscasse sua segurança, os americanos fizeram para derrubar a revolução cubana e, depois, o regime comunista. Em vão.

Nova fisionomia
Na outra guerra, interna, Fidel Castro não conseguiu passar para a realidade os ideais que o fizeram revolucionário, e talvez, recônditos e emudecidos, ainda sejam os seus, porque é tolo imaginá-lo como um facínora. A complexidade de desenvolver pela primeira vez, em luta contra os interesses fortes e as adversidades tradicionais, uma revolução social mantendo os direitos civis e as liberdades democráticas, como Fidel e seus guerrilheiros propunham, não foi transposta. À maneira de outras revoluções, o futuro idealizado acabou substituído pelas soluções tornadas convencionais a partir do Estado leninista. Os cubanos argumentam que a contra-revolução desfechada pelos Estados Unidos não permitia outro rumo. O que só é verdadeiro em parte, quem sabe a menor. Os direitos civis, incluída a liberdade de expressão e de divergência, foram relegados muito cedo.
A nova política econômica, no entanto, é uma pequena volta a certos aspectos econômicos e sociais do primeiro período revolucionário. A aceitação de empresas capitalistas e outros traços da abertura cubana dão nova fisionomia ao regime, que vai abandonando o comunismo no molde soviético, da URSS e do seu bloco europeu. A evolução que essa volta terá é um mistério. Para o comando cubano, inclusive. Pela incerteza mesma de seus efeitos e, sobretudo, porque o fim do embargo americano, cujos dias estão contados, tanto pode ser bom como péssimo para o regime e o governo cubanos.
Quem vai a Cuba pela simples vontade de fazê-lo leva, além da disponibilidade do turista para enlevar-se, a predisposição para a tolerância com o que lhe pareceria, em outro lugar, criticável. Pode ser a ação da nostalgia ideológica. Mas também é a aura que envolve Cuba e a envolveu desde sempre. Havana é uma cidade para ser amada, o povo cubano é delicioso como temperamento e fascinante como talento. Isso contribui para tornar ainda mais polêmicas todas as apreciações que se façam de Cuba, de qualquer dos seus aspectos.
Diante disso, adotei um princípio em minha volta a Havana: há que manter a ternura, mas sem perder o rigor jamais.


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