São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


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+ brasil 501 d.C.

Festas regeneradoras de abril

José Murilo de Carvalho

Já que abril é mês de celebrações nacionais, também celebro. Há poucos momentos em nossa história política que merecem celebração. Um deles se passou no mês de abril, há 169 anos. No dia 7 de abril de 1831, por obra conjunta do povo e da elite, nacionalizou-se a monarquia, consolidou-se a Independência, firmou-se o sistema representativo. Nessa data os brasileiros tomaram posse do Brasil. Momento fundador que merece celebração. Vale a pena recordá-lo. A lua-de-mel entre os brasileiros e d. Pedro, iniciada em 1822, acabou um ano depois, quando o imperador dissolveu a baionetas a Assembléia Constituinte. Daí em diante foi um derrapar constante em direção ao divórcio. Listo alguns marcos do desencontro. Em 1824 foi outorgada uma Constituição em lugar da que estava sendo elaborada pela Constituinte. O método da outorga despertou a ira de muitos, sobretudo no Norte. Frei Caneca argumentou que o imperador violara o pacto social que presidira à fundação do império, deixando as partes contratantes livres para seguirem o caminho que desejassem. A Confederação do Equador fez exatamente isso: proclamou a independência de Pernambuco e províncias vizinhas. Para punir os envolvidos foram criadas as comissões militares, que um deputado chamou de invento infernal, pois não garantia a defesa dos acusados. O frade carmelita pagou com a vida a adesão à revolta.

Guerra desastrada
Entre 1825 e 1828 o governo envolveu-se em guerra desastrada com a Argentina em torno da posse da província Cisplatina. Milhares de contos foram gastos e cerca de 8.000 brasileiros morreram na guerra, muitos de doença nos navios que os levavam para o sul. Alemães e escoceses recrutados para a guerra revoltaram-se no Rio, em 1828, morrendo na repressão 60 escoceses. D. Miguel, irmão de d. Pedro, usurpou o governo de Portugal que deveria pertencer à sobrinha d. Maria da Glória. O imperador envolveu-se a fundo na luta dinástica, inclusive gastando dinheiro brasileiro para armar tropas partidárias da filha que trouxe para o Rio juntamente com muitos emigrados. O envolvimento do imperador veio agravar as queixas contra a atuação do gabinete secreto chefiado por Chalaça e contra o favorecimento de portugueses em nomeações e outras benesses. Em 1826, a Câmara já descobrira, escandalizada, que d. Pedro se comprometera, por convenção secreta adicional ao tratado de paz de 1825, a pagar 2 milhões de libras a Portugal, das quais 1,4 milhão se destinava a cobrir dívidas contraídas na Inglaterra para combater a Independência brasileira! A reação brasileira começou a partir da inauguração da primeira legislatura, em 6 de maio de 1826. Em princípio timidamente, devido às lembranças da dissolução de 1823, a Câmara foi aos poucos se afirmando como contrapeso ao absolutismo. Chega a ser comovente a crença quase ingênua dos deputados liberais nas instituições representativas e o entusiasmo que punham no aprendizado do ofício de representantes. Um deles, Bernardo Pereira de Vasconcelos, publicou em 1828 longa carta a seus eleitores mineiros prestando conta de seus atos e submetendo-se a seu julgamento. A população aderia com entusiasmo enchendo as galerias da Câmara (as do Senado ficavam vazias). A primeira legislatura, de 1826 a 1829, dedicou a maior parte de seu tempo a forçar o Executivo a se adaptar às regras do sistema representativo. As palavras Constituição, Assembléia Geral, liberdade, independência, cidadão, patriota, mais tarde federação e república, começaram a invadir lentamente o vocabulário político graças à ação dos deputados liberais e ao ressurgimento da imprensa, sobretudo a liberal e a exaltada, até então sufocada pela repressão. A cada conflito com o imperador crescia a confiança da oposição e o radicalismo da linguagem. A revolução francesa de julho de 1830, que depôs o regime absolutista de Carlos 10º, ajudou a precipitar os acontecimentos. A notícia chegou ao Brasil a 14 de setembro e, segundo o testemunho fidedigno de John Armitage, provocou um choque elétrico no país, sobretudo no Rio, Bahia, Pernambuco e São Paulo, onde a população celebrou nas ruas e nas casas. A partir daí cresceu a oposição e o radicalismo. Celebrações da revolução francesa em São Paulo resultaram no assassinato do jornalista italiano Líbero Badaró, supostamente a mando do ouvidor local.

"Às armas"
Ao final do ano de 1830, o imperador foi a Minas para tentar refazer sua popularidade e desfazer tentativas de revolta. Foi acolhido com vivas ao imperador enquanto constitucional e cerimônias fúnebres em homenagem a Badaró. Ao regressar ao Rio, em março de 1831, foi recebido com festa pelos portugueses. Luminárias, fogueiras, enfeites cobriram as ruas da Quitanda, dos Ourives e Direita, onde se concentrava o comércio português. Reagiram os brasileiros e o tumulto tomou conta da cidade. Agressões verbais, pés-de-chumbo de um lado, cabras de outro, e físicas, generalizaram-se. A cidade tornou-se um campo de batalha.
Os brasileiros voltaram a usar como identificação o laço amarelo da Independência, ou uma sempreviva, na lapela (liberais) ou no chapéu de palha (exaltados). Para se livraram de suspeitas, os franceses residentes na cidade recorreram aos laços tricolores. Deputados que aguardavam a abertura das Câmaras exigiram medidas do governo, ameaçando pôr em jogo a própria sorte do trono. Jornais radicais, como "O Repúblico", de Borges da Fonseca, gritavam "Às armas!", enquanto em Minas e São Paulo os liberais se armavam de fato.
A partir do dia 3 de abril, multidão calculada em 4.000 pessoas começou a reunir-se no Campo de Santana. Misturavam-se todas as classes, libertos, artesãos, soldados, oficiais, jornalistas, juízes de paz, deputados e um único senador, Vergueiro. Armitage salientou a presença de muitos pardos e negros no meio da multidão. Entre os radicais, salientavam-se Cipriano Barata, um ancião de 69 anos, redator da "Sentinela da Liberdade", excepcionalmente fora da cadeia, e Borges da Fonseca, redator de "O Repúblico", jovem de 23 anos. Entre os liberais, viam-se os deputados Evaristo da Veiga, Odorico Mendes, José Custódio, Vieira Souto e o senador Vergueiro.
Uma troca desastrada de gabinete no dia 5 de abril serviu de pretexto para o ultimato da multidão ao imperador, exigindo a reintegração do gabinete deposto. Idas e vindas entre o Campo de Santana e São Cristóvão não produziram efeito. Nesse meio tempo, toda a guarnição militar da Corte, inclusive o batalhão do imperador, tinha aderido aos manifestantes. O documento da renúncia foi redigido na madrugada do dia 7.
Foi imensa a alegria no Campo de Santana, na cidade e em todo o país. Liberais e exaltados, ainda irmanados, celebraram a vitória como sendo o início da existência política nacional. O liberal Vasconcelos concordou com os exaltados em chamar o 7 de abril de revolução gloriosa. O Brasil foi apresentado como exemplo para o mundo, sobretudo para a França, por ter realizado uma revolução sem derramamento de sangue, graças ao congraçamento de povo, tropa, deputados e juízes de paz. A data entrou para o calendário de festas cívicas e o Campo de Santana foi renomeado Campo da Regeneração.
Mais tarde, Teófilo Otoni, que fizera sua própria revolução no Serro, referiu-se ao 7 de abril como jornada de otários, querendo dizer com isso que, embora feito pelos exaltados, dele se apropriaram os liberais. Os radicais foram de fato derrotados na luta que se seguiu. Mas a data não foi só deles. Foi o único momento na história do país em que povo, tropa e elite se uniram para promover uma revolução política. Talvez o efeito mais profundo do 7 de abril esteja refletido na observação de Carl Seidler: "Todo mulato esfarrapado imaginava que era príncipe porque a seu ver o nobilitava o "eu sou brasileiro verdadeiro'". Por isso, nas festas de abril, celebro o dia 7.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", da Folha.


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