São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


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Ponto de fuga

Como era gostoso o meu alemão

Jorge Coli
especial para a Folha

Não importa que as índias e índios, no "Hans Staden", de Luiz Antonio Pereira, pareçam ter saído da calçada de Ipanema. O aspecto físico nada aborígine é absorvido pelo tom justo que o filme encontrou. O diretor disse que "Hans Staden" segue com fidelidade a narrativa do viajante alemão, buscando gestos e adornos corporais exatos, reconstituindo, com autenticidade, a língua dos índios, tal como era falada naqueles tempos remotos. Apenas, autenticidade e exatidão, em arte, não podem ser levadas a sério como os instrumentos de uma verdade histórica, daquilo que "realmente" era ou aconteceu. Autenticidade e exatidão servem para definir os limites de um jogo rigoroso instaurado pelo artista, parâmetros que conduzem e estimulam a invenção criadora. No caso de "Hans Staden", o jogo deu certo. Pela reconstituição, chegou-se à outra verdade. Luiz Antonio Pereira atingiu o cerne daquelas aventuras. Tudo é filtrado pelas relações angustiadas do prisioneiro, ao negociar com os índios, dia a dia, sua própria sobrevivência. A câmara capta a natureza imensa, úmida, sombria, os verdes saturados pelas brumas. Os selvagens, de pele escura, integram-se nela como habitantes naturais que são. Staden, nu como um verme, branquíssimo germânico, é ali um corpo estrangeiro e frágil. O olhar do cineasta sabe fazê-lo vulnerável. O Brasil de Staden e do filme não é um paraíso acolhedor. É um confronto difícil entre culturas, na singularidade dos sentimentos.

Antropofagia - A comparação do filme "Hans Staden" com "Como Era Gostoso o Meu Francês", de Nélson Pereira dos Santos, torna-se inevitável por várias razões. Este observava os acontecimentos com certa neutralidade fria e um pouco distante. "Staden", ao contrário, deixa sempre presente a humanidade contraditória dos personagens. Nunca a esvazia pela análise, nunca a reduz pelo gesto mais exaltado ou heróico. Ao tratar seus personagens de perto, que se adivinham e se enfrentam, "Staden" lembra "A Descoberta do Brasil", de Humberto Mauro. Ambos exploram bastante uma atmosfera confinada, aproximando os seres, reforçando laços invisíveis. "Hans Staden", felizmente, não possui nada de didático. Mas deveria ser mostrado nas escolas: ele permite intuições muito diversas e nada simplificadas, que ajudam a aguçar a percepção sobre aqueles tempos primeiros da colonização no Brasil.

Gogó - Depois do volume consagrado à "Ópera na França", Lauro Machado Coelho lança "A Ópera Barroca Italiana". É uma empreitada de fôlego, não muito comum nestas nossas paragens: 14 tomos previstos no total, concentrando, de maneira séria e sintética, informações essenciais sobre a história do gênero. O autor não pretende discutir as classificações mais tradicionais, por geografia ou estilo; ao contrário, reforça-as, oferecendo um percurso muito claro, traçado por uma evidente paixão. Ao lado dos nomes maiores, são incorporadas muitas menções a compositores menos conhecidos. Como tudo isso é vazado numa escrita clara e tranquila, o resultado são livros de referência fundamentados, que se lêem com prazer.

Home - Um crítico francês, nos "Cahiers du Cinéma", escreveu que, com os DVD, há o risco de se acabar gostando de um filme ruim por causa das imagens: de fato, elas possuem uma beleza cristalina. As fitas de vídeo são um Ersatz pobre e efêmero do cinema. Com o DVD, recuperam-se nuanças no branco e preto, a vivacidade no colorido. Outro crítico diz: "O DVD faz avançar nossa relação com o filme como a reprodução em cores o fez para a pintura", permitindo exame de detalhe em recortes precisos. Pode-se navegar no interior de um filme, escolhendo cenas favoritas, de um modo bastante "interativo", como na leitura da "Rayuela", de Cortázar.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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