São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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+ cinema

ENSAÍSTA ANALISA "FILME DE AMOR", DE JULIO BRESSANE, QUE ESTRÉIA EM SÃO PAULO NA PRÓXIMA SEXTA-FEIRA

O HINO AO AMOR E A ZONA OBSCURA

por Ismail Xavier

Primeiro, é a claquete, a imagem em preto-e-branco do cineasta a filmar: espaço interior, indefinido. Em seguida, a abertura de "Filme de Amor" nos oferece, em cores, o cenário exterior de grandeza: o mar, a praia, a exuberância da natureza. A referência ao belo ideal que o filme trará mais adiante projeta sobre esses planos iniciais da praia o sentido de um mar mitológico, enlace harmonioso entre a superfície agitada e a profundidade serena que Johann Winckelmann, em sua visada setecentista, entendeu como uma figuração da própria Graça. No entanto o núcleo da cena dramática em pauta no filme envolve figuras modestas, que exibem, de início, o rosto cansado de sua imersão, sem carisma, na rotina da cidade, no trem de subúrbio, no ônibus lento e no caminhar pelas ruas melancólicas de domingo em zona de comércio fechado. A postura e o tratamento de imagem evocam aí a atmosfera de "Limite", de Mário Peixoto. Duas mulheres e um homem se dirigem para uma experiência de enlace de corpos e palavras que não se dá num barco à deriva, mas implica um sair de si, digamos abismal, que é risco de dissolução em zona distante da inteireza solar do humanismo clássico. Trata-se, portanto, de explorar a aproximação dos opostos, cotejar o mundo ideal de clareza e perfeição com a cena atual vivida num espaço prosaico, em tudo marcado pelo tempo: o imóvel decaído do centro do Rio de Janeiro e suas paredes carcomidas abrigam o que se prefigura como uma estação hedonista. No entanto esta logo se revela uma viagem que não é bem a da plenitude dos sentidos, pois o circuito de falas e gestos expressa a fragilidade, ao lado da ousadia, e não exclui a evocação ácida de cenários de perversão, reminiscências de um álbum de família alheio à assembléia libertina. Embora regado a drogas, erotismo e poesia, o "banquete", nesse caso, contrasta com a tradição de rituais com que a cena do filme dialoga, sejam as cerimônias do marquês de Sade, seja o campo bem mais ameno das jornadas do "Decamerão", como parece anunciar uma das moças em sua primeira fala. Nem uma coisa nem outra. A tônica do laboratório não é a do paroxismo do gozo como poder, tortura, humilhação, nem a do prazer do relato que distrai. É outro o seu horizonte ao unir químicas diversas e formas do prazer. O cinema de poesia monta um dispositivo de alçar vôo em espaço fechado, terreno de experiência em que vale a performance, o assumir papéis, a estilização do gesto que compõe a coleção de poses e movimentos que faz do corpo um lugar de citações. Vale aqui o ensaio de tornar-se outro. O "fim de semana passado no abismo" (como diz uma personagem) não sinaliza a ruptura do tédio de uma classe ociosa a se renovar na liturgia do crime. É a criação de um intervalo em vidas despossuídas; uma liberação, mesmo que efêmera, diante do mal-estar de quem se escraviza na rotina do trabalho. Como em outros filmes de Bressane, há o registro que mescla fala dramática e citação irônica, uma enunciação que desnaturaliza a voz quando o que se espera é a continuidade de uma excitação. Na descontinuidade, permanece uma pulsação em surdina, um movimento subterrâneo cristalizado na música de Guilherme Vaz. Há uma promessa de gozo adiada, uma presença forte de mediações -ora é a referência a uma outra cena trazida pela composição e pela textura de imagem, ora é a figuração construída na montagem (há uma geometria "ideogramática" da penetração quando a imagem frontal da vagina é seguida do percurso da luz dentro de um trem vazio). A nudez do cenário não oferece o arsenal de instrumentos exóticos a ativar, o que sublinha a face lúdica, jocosa, dos deslocamentos em torno do motivo do leite ou outros que se valem do mais prosaico: o ferro de passar, o ovo, o bife, a vassoura.


"Filme de Amor" não é a ilustração ou retomada do motivo clássico tal e qual -é a armação de um cotejo notável; o seu simpósio amoroso descarta a fluência de ações, a leveza


Há, na condução do jogo, o respeito a uma regra de gênero -não basta o corpo vir ao centro de operações, é preciso sinalizar cada gesto como ação voluntária. Mas tudo se faz aqui a partir de um idioma original -língua e lugar definem o perfil peculiar da experiência. Há distância, portanto, diante de certas matrizes; e a inserção desse ritual no corpo da obra do cineasta lhe oferece uma feição particular. Por exemplo, a sucessão paratática das cenas e as inserções extradiegéticas o aproximam (no plano formal) e o afastam (no teor da experiência) de outros excessos vividos entre quatro paredes que definiram jornadas mais trágicas do que esta, em "Matou a Família e Foi ao Cinema", em "O Anjo Nasceu" ou na esfera da família do jovem cineasta em "Miramar".

Pequenos funcionários
No contexto da obra de Bressane, "Filme de Amor" promove o retorno do homem comum, depois de um período em que aí prevaleceram personagens históricos de grande envergadura que, vivendo conflitos e isolamento, se afirmaram na criação estética, filosófica, como padre Vieira, são Jerônimo, Mário Reis, Nietzsche. Voltam, agora, os pequenos funcionários, esses que poderiam se acometer de ressentimento e se perder em labirintos de vingança ou apatia, mas ousam aqui a experiência-limite que tem como moldura outro cenário de grandeza: a tradição humanista do Renascimento, em particular a iconografia que compõe o jogo harmonizado dos ideais -amor, prazer e beleza- na figura das Três Graças, as assistentes de Vênus, motivo central de uma iconografia analisada por Aby Warburg em texto citado no filme.
Estando presente essa referência, não surpreende que tudo comece com o olhar dirigido ao mar: lá estão na praia as três personagens de nosso tempo. Em consonância, quando já no apartamento, o instante de passagem evoca o enlace das Três Graças por meio do gesto repetido dos atores. A atualização desse motivo sugere o modelo amoroso do enlace como horizonte dessa experiência, mas ele comparece vivamente estranhado: a par do que muda no enlace dos corpos fotografados, fora do belo ideal figurado na pintura, uma das "graças" muda de sexo. Sinalização clara da diferença que, em tese, não anularia o que há, na imagem, de promessa de conciliação das três solidões reunidas no apartamento. A promessa do uno restará, no entanto, fora da vista, pois a sucessão das cenas ativa referências de um mundo dilacerado em que a disposição dos corpos sugere a presença de pulsões que se deslocam e compõem enigmas ao se tornar gesto e imagem. Uma irremediável dissolução da transparência.
"Filme de Amor" não é a ilustração ou retomada do motivo clássico tal e qual -é a armação de um cotejo notável. O seu simpósio amoroso descarta a fluência de ações, a leveza. Prevalece a série descontínua de "quadros" já imersos num código que se insinua nas variações de textura do preto-e-branco ou na irrupção das cores esmaecidas, numa palheta em que a fotografia de Walter Carvalho lembra as sugestões eróticas de Balthus. A imobilidade das figuras, a impostação teatral transformam o que poderia se fazer naturalismo em seu contrário. O filme recolhe o exemplo pictórico para reavivá-lo no idioma do cineasta, feito da imanência aqui e agora (paredes gastas, corpos vivos), e a descontinuidade evita que os quadros citados virem "pano de fundo" de uma narrativa convencional. A referência à pintura é aqui um dado constitutivo da experiência, peça essencial desse cotejo que envolve as várias idades do olhar e a disparidade de registros.
Logo no início, uma das moças fala em começar com uma referência elegante, mas depois quer ouvir algo de perverso, "coisa infantil". Abre, desse modo, a cena para um tecido de relações ora provocativas, ora tingidas de melancolia, num jogo simbólico que prevalece sobre o senso de continuidade psicológica ou de identidade (inútil discutir a verossimilhança). Com ironia, e na eventual sem-cerimônia de imagens e trocadilhos associados à pornografia, o filme nos oferece a face sorridente de uma interrogação mais funda em torno da representação do desejo.
Reconhecida a não-identidade entre a evocação clássica e a cena contemporânea, Bressane traz ao convívio outras vozes que enriquecem o coro das dissonâncias, como a poesia atormentada de Augusto dos Anjos e seu lamento das coisas. A harmonia vale aqui como concórdia-discórdia, tensão, drama, não como perfeição e enlace sereno.
Convivência dos contrários, o filme descarta a medida e a proporção como regra, e sua mistura de estilos absorve momentos de empatia, como o que se impõe quando a câmera se retira do apartamento para as ruas (que pontuaram sempre a jornada). A chave é melodramática, e "Hino ao Amor", em gravação de Dalva de Oliveira, entra para exaltar o "milagre supremo" no instante em que a luz de um avião alça vôo na noite, sobre a baía de Guanabara; o efeito é impressionante, e a exaltação se projeta na imagem da cidade em pleno dia, na energia das ruas e no enlevo de certos encontros. Contudo, em novo torneio, o contraponto de apoteose romântica se dissolve no reencontro do espectador com as três personagens. A instância é reveladora e compõe um momento final de crispação que repõe as interrogações próprias a toda incursão no terreno da experiência-limite que procura trazer à luz a zona obscura, essa face oculta da Lua situada abaixo da cintura.

Ismail Xavier é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, crítico de cinema e autor de, entre outros livros, "Alegorias do Subdesenvolvimento" (ed. Brasiliense) e "O Cinema Brasileiro Moderno" (ed. Paz e Terra).


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