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AUTORES
A Europa precisa atuar para preencher os vazios da suposta hegemonia dos EUA
A nova cruzada americana
RICHARD RORTY
especial para a Folha
Em primeiro de novembro de
1998 a "The New York Times Magazine" publicou um artigo em
tom premonitório intitulado
"Nossa Hegemonia Vazia", de
autoria do editor da "Foreign Affairs", Fareed Zakaria. Uma das
manchetes que encabeçavam o artigo dizia: "Problemas que podem
ser resolvidos com bombardeios,
enfrentamos sem hesitar. Problemas que não se prestam a esse método, ignoramos". A título de
exemplo, Zakaria lembrou aos
americanos que seu governo
"afirmou ser crucial a restauração
da Bósnia como nação única e
multiétnica, mas deixou claro que
não pretendia pagar o alto preço
que seria necessário para se alcançar esse objetivo". O preço teria sido a morte de milhares de soldados americanos.
No momento, os EUA estão se
esforçando ao máximo para ignorar o fato de que mais uma vez empreendemos a tarefa de resolver
por meio de bombardeios um problema -a limpeza étnica de Kosovo- que só pode ser resolvido
com o envio ao local de várias divisões de infantaria, muitos de cujos integrantes teriam mortes sangrentas. No momento em que escrevo, meu governo reflete sobre a
possibilidade de negociar um
acordo com um ditador sanguinário -um acordo que este nunca
vai honrar se imaginar que o fato
de honrá-lo atrapalharia a utilização totalmente cínica que faz dos
assassinatos e estupros em massa,
com vistas a manter-se no poder.
Meu presidente -que é, muito
possivelmente, o mais inteligente
e bem informado que nós, americanos, elegemos neste século- ou
pode tratar Milosevic como estadista com quem espera em breve
conseguir chegar a um entendimento melhor, ou pode declarar
Milosevic "hostis generis humanis", um intocável com quem
nunca mais será possível negociar.
Suponhamos que escolha a primeira opção, utilizando Tchernomirdin como intermediário. Ele
poderá impedir a vitória dos nacionalistas de direita nas próximas
eleições russas, mas a população
de Kosovo nunca mais retornaria
para casa e o mundo nunca mais
confiaria nos EUA ou na Otan. Suponhamos que escolha a segunda.
Nesse caso, terá mantido aberta a
promessa de uma força internacional de manutenção da paz, mas
correrá o risco de reiniciar a Guerra Fria.
Espero com todas minhas forças
que ele opte pelo segundo caminho, apesar do risco implícito.
Meu desejo é que tivéssemos declarado Milosevic fora-da-lei depois de Srbrenica e que o bombardeio da Sérvia tivesse sido precedido por intermináveis transmissões
em idioma sérvio, nas quais os líderes dos países democráticos, um
após o outro, explicassem por que
nunca iríamos negociar com um
mentiroso sanguinário que explorara descaradamente seu próprio
povo, desonrando-o profundamente. Os bombardeios deveriam
ter sido vinculados diretamente ao
apoio de tropas terrestres da Otan,
tropas que teriam sido lançadas na
região por pára-quedas, para prevenir os estupros e as expulsões.
Deveríamos haver feito dos bombardeios o primeiro episódio numa cruzada de longo prazo, proclamando que os países democráticos do mundo estão e vão permanecer dispostos a sacrificar
seus jovens para prevenir um genocídio. Não deveríamos nos ter
deixado a pequena margem de
manobras da qual Clinton ainda
pode, agora, decidir tirar vantagem.
Conversando com um amigo
meu, o filósofo Donald Davidson,
descobri que, apesar de concordarmos com Zakaria com relação
à política externa norte-americana
recente, compartilhamos o mesmo sentimento de alívio quando
soubemos da decisão tomada pela
Otan de dar início aos bombardeios. Como somos aproximadamente da mesma geração e ambos
nos recordamos muito bem do final da 2ª Guerra Mundial e da fundação da ONU, ficamos felizes em
perceber que, finalmente, os países democráticos talvez estejam
dispostos a fazer novamente o que
fizeram 60 anos atrás: unir-se numa causa comum para combater
um tirano. Ambos nos surpreendemos um pouco com nossa própria belicosidade, mas não conseguimos reprimir nossa alegria
diante da idéia de pilotos britânicos, turcos, americanos, italianos
e alemães decolarem juntos para
salvar inocentes do massacre. Foi
a primeira vez que qualquer um de
nós pôde achar possível que nossos bisnetos possam viver em um
mundo no qual um esforço conjunto desse tipo seja visto como a
consequência automática e rotineira de qualquer tentativa de genocídio.
É comum ver velhos como Davidson e eu serem acusados de recomendar a matança de jovens,
sem nos abalarmos com a idéia.
Deus sabe que ambos sentimos a
acusação. Mas isso não basta para
nos fazer recuar de nossa convicção de que é preciso cumprir a
ameaça feita a Milosevic -que, se
não o fizermos, os países democráticos se verão de volta a onde
estiveram entre as duas guerras
mundiais, conscientes do que precisa ser feito, mas destituídos da
coragem de fazê-lo. É verdade,
evidentemente, que a intervenção
nos Bálcãs, mas não na África ou
na Ásia, constitui um indicativo
do racismo persistente dos EUA e
da Europa. Também é verdade que
nosso fracasso deprimente na Bósnia aponta para possibilidade de
que mesmo um sucesso em Kosovo possa não ser seguido pela instauração de uma força de manutenção da paz permanente, confiável, fortemente armada e genuinamente internacional. Mas a necessidade de tal força é tão grande que
é impossível não nutrir a esperança de que Kosovo seja lembrado
como a primeira instância de sua
utilização.
Meu palpite é que, se tal força
vier a ser criada, será porque a Europa terá encontrado a disposição
necessária para tomar suas próprias decisões e parar de pautar-se
por Washington. Simplesmente
não é possível confiar em meu país
para que se faça a coisa certa, mesmo porque sua política internacional se encontra à mercê de um
Congresso dominado pelo Partido
Republicano. Desde que Lyndon
Johnson foi obrigado a nos tirar
do Vietnã, nenhum presidente
norte-americano se sentiu em
condições de pedir à instituição
militar norte-americana que se
engaje em anos seguidos de duros
combates em terra, e nenhuma
maioria no Congresso se sentiu
em condições de votar a favor de
tal engajamento.
Qualquer tentativa por parte de
Clinton de enviar tropas terrestres
a Kosovo se chocará com a oposição oportunista e destituída de
princípios dos republicanos -homens ignorantes e míopes que, como Milosevic, não têm interesse
em nada, exceto em manter-se no
poder. O sonho de ver os EUA
conduzindo os países democráticos para uma era de cooperação e
justiça internacionais deixou de
ser plausível. Ainda não está totalmente excluído. Uma vitória arrasadora de Gore ou Bradley e também dos candidatos democratas
ao Congresso, no ano 2000, ainda
pode causar uma virada na situação. Ainda pode ocorrer um ressurgimento repentino do idealismo que os americanos perderam
em consequência da aventura sangrenta que viveram no Vietnã.
Mas tanto essa vitória arrasadora
quanto tal ressurgimento são extremamente improváveis.
Se D'Alema, Chirac, Blair,
Schroeder, Aznar e outros dirigentes europeus fossem capazes e
estivessem dispostos a dizer aos cidadãos de seus países que, de agora em diante, a Comunidade Européia iria agir na ex-Iugoslávia, independentemente da Otan -e,
portanto, de Washington-, eles
poderiam ficar na história como
salvadores dos ideais antes defendidos pelos Estados Unidos, aqueles pelos quais muitos americanos
morreram neste século -os ideais
incorporados na Carta da ONU.
Na 2ª Guerra Mundial e na Guerra Fria meu país prestou grandes
serviços ao mundo. Hoje, porém,
já não somos um aliado confiável.
Estamos confusos demais para fazer de nossa suposta hegemonia
mais do que uma farsa vazia. Seria
bom, tanto para os americanos
quanto para os europeus, se a Europa fizesse algumas das coisas
que os EUA não têm mais coragem de fazer.
Richard Rorty é filósofo norte-americano, autor, entre outros, de "A Filosofia e o Espelho da Natureza" e "Escritos Filosóficos" (Relume-Dumará).
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