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BRASIL 500 D.C.
Postura afirmativa dos índios modificará aos poucos a noção de brasilidade
O epicentro pop da Amazônia
HERMANO VIANNA
especial para a Folha
Na adolescência, como todo
mundo da sua turma, Ito adorava
filmes de caubói. Seu imaginário
era povoado por ataques de índios
nas paisagens desertas do Arizona.
Índios, para ele, só podiam ser índios americanos. Tanto que, ao se
vestir de índio para brincar no
boi-bumbá, não podia faltar a calça comprida com franjas coloridas
dos dois lados. Todos os integrantes das "tribos" dos bois de sua
cidade eram conhecidos como
"tontos", uma homenagem carinhosa ao companheiro do Zorro.
Nada disso causa espanto. Nem
o fato de Ito morar em Parintins,
um município de nome indígena,
que tem aldeias indígenas bem
próximas ao seu centro urbano,
habitadas por índios cuja indumentária nada tem a ver com o padrão criado por figurinistas de
Hollywood. O que realmente surpreende é descobrir que Ito, quase
sem querer, transformou-se num
dos principais articuladores de
uma pororoca no inconsciente
amazônico, que veio justamente
derrubar esse império do Velho
Oeste.
Tudo começou com uma brincadeira, em 1982. Cansado de ser
sioux ou navajo, ele -junto com
seu primo Amarildo- criou uma
fantasia de índio brasileiro para a
sua tribo. Mais do que isso: ensaiou com os amigos um ritual indígena que seria encenado no
meio da apresentação do seu Boi e
pediu para outros amigos uma
música que seria a trilha sonora da
novidade. O sucesso foi tão grande
e teve repercussão tão decisiva em
toda a floresta que o boi-bumbá de
Parintins virou o epicentro pop da
Amazônia legal.
Hoje, no bumbódromo em junho e durante todo o resto do ano
em festas-clones (como o Festival
do Peixe Ornamental, em Barcelos), é possível ouvir dezenas de
milhares de pessoas de todas as
cores berrando seu orgulho de ser
índio e mandando recados ecologicamente furiosos para o invasor
"branco". Há pouco mais de uma
década, cenas como essa seriam
impensáveis. Mestiços faziam o
possível para esconder sua ascendência indígena, vítimas de um
velado racismo, não menos atroz
por ser velado. Agora, cantando as
letras das toadas de boi, todos reivindicam sua ancestralidade de
povo da floresta, como os baianos
propagandeiam suas "raízes africanas" no Carnaval. Essa atitude é
inédita e seus efeitos ainda mal podem ser percebidos pelo resto da
cultura do país.
É claro que Ito não produziu sozinho essa "revolução de mentalidade". Ele atuou mais como uma
"antena", captando um clima geral de mudança que a festa de Parintins apenas (o que não é pouca
coisa) acelerou e "alegorizou".
Diagnóstico fácil: o bumbódromo
é um dos palcos onde a Amazônia,
sem pedir licença a ninguém, redefine seu lugar na cultura brasileira. Como a floresta já retomou a
Transamazônica, os "novos índios" reescrevem a trama do boi e
fazem dela o seu "ritual".
O sucesso do boi, mesmo com
sua ramificação parisiense (vide
Carrapicho), ainda é restrito à região Norte. Porém esse é um caldeirão pronto para explodir. O
que vai sair dali de dentro, ninguém sabe. A cultura brasileira,
em seus 500 anos, fez de tudo para
ignorar o fato de ser produzida
num país que, obviamente, tem o
"pulmão" (e 60% de seu território) amazônico. Querer ver a brasilidade resumida a uma estreita
faixa de litoral afro-brasileiro é um
sonho pouquíssimo sustentável de
muitos definidores da "identidade nacional". Como diz Ailton
Krenak, no esquema "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre,
o lugar do índio é aquele de quem
espreita. Prenuncia o momento do
ataque de quem ficou de fora (do
canavial e do Carnaval) esse tempo todo.
Quando o Brasil se descobre
amazônico, descobre também que
a Amazônia não se confunde com
nenhum dos estereótipos que dela
foram criados. No Cave du Conde,
excelente restaurante de São Gabriel da Cachoeira, converso com
um jovem índio que, apesar de falar perfeitamente tanto o tucano
como o português ("não tem uma
língua que eu fale "melhor'"), só
pensa em tucano. Ele também diz
ter riscado a palavra "descobrimento" de seu vocabulário (adotou "invasão"); afirma que não
trocaria a cidade pela aldeia indígena (e não se sente menos índio
ou mais culpado por isso); e argumenta que, ser índio ou brasileiro,
"depende da ocasião".
Em outra fronteira, no Acre, assistindo a uma partida de futebol
realizada justamente na hora em
que o Brasil jogava na Copa de
1998, um seringueiro me conta
que, depois de uma greve de fome
de quase um mês, desesperado,
seu pessoal marchou (crianças à
frente) em direção à tropa da polícia cantando o Hino Nacional,
"para mostrar que somos brasileiros".
Em algum lugar entre aquele
campo de futebol de Xapuri, o radar do Sivam de São Gabriel da
Cachoeira, o bumbódromo de Parintins, qualquer culto do santo
Daime e qualquer ponto de venda
de açaí, está sendo produzido o futuro xamânico/"perspectivista"
da nossa cultura. Um futuro que,
imitando a biodiversidade de seu
ambiente gerador, terá uma profusão amazônica de diferentes definições do que é ser brasileiro e de
qual a ocasião propícia para sê-lo.
Ito (Aílton Carvalho Teixeira), ao
trocar sua roupa de tonto por outra, de índio brasileiro, mal sabia
que, na verdade, estava trocando
fantasias de todo o país.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O
Mistério do Samba" e "O Mundo Funk Carioca"
(Ed. Jorge Zahar), entre outros.
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