São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Sentido da Realidade" reúne textos do pensador político Isaiah Berlin
Paixão pelo equilíbrio

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Pensador político, historiador das idéias, teórico desencantado e liberal, sir Isaiah Berlin morreu no ano passado, aos 88 anos, cercado de grande respeito no mundo acadêmico anglo-saxônico. Nos Estados Unidos acaba de sair uma biografia de Berlin, escrita por Michael Ignatieff, e editam-se suas célebres conferências sobre "As Raízes do Romantismo".
No Brasil, algumas de suas obras mais importantes já foram traduzidas: "Pensadores Russos", "Limites da Utopia" (Companhia das Letras), "Quatro Ensaios sobre a Liberdade" e "Vico e Herder" (Editora da UnB).
Este "O Sentido da Realidade" reúne textos de conferências, algumas transcrições de palestras radiofônicas e um longo verbete de enciclopédia sobre as teorias do socialismo. Para falar com franqueza, o livro acrescenta pouco à obra de um autor que, embora muito citado e influente, não é dos mais indispensáveis.
Como sempre, Berlin expõe suas idéias com clareza; sua celebrada "sabedoria" afasta-o de teorizações complexas, contendo um permanente apelo à consideração pouco exaltada da empiria, do "realismo político" e da falibilidade da natureza humana.
Adversário das grandes utopias políticas, das tentativas de criar um "mundo novo" e das explicações unilaterais do desenvolvimento histórico, Berlin não se cansa de apontar o quanto as "certezas" de revolucionários e reformadores sociais terminaram inspirando os massacres e horrores do totalitarismo.
O primeiro ensaio do livro traz ruminações sobre a diferença entre ciências históricas e ciências naturais -tema tornado clássico desde Windelband e Rickert no século passado. O historiador, como o romancista ou o homem sensato em sua vida cotidiana, não faz uso de generalizações, de leis científicas para dar conta das particularidades, das surpresas, das circunstâncias do passado. Quem se limita a fatos e a generalizações deixa de lado "uma vasta quantidade de pequenas cores, aromas e sons evanescentes em constante alteração, e os equivalentes psíquicos destes, as minúcias de comportamento, pensamento e sentimento meio observadas, meio inferidas, meio contempladas... demasiado delicadas e indiscrimináveis umas das outras para serem identificadas, nomeadas, ordenadas em linguagem científica neutra".
Esse elogio do insight, essa algo amarga degustação da empiria, tem uma consequência política no pensamento de Berlin. Os líderes "sistematizadores" e dogmáticos -Robespierre, Lênin, Hitler- tentam fazer o mundo conformar-se à teoria, o que redunda em opressão. Outro tipo de estadistas -Bismarck, Napoleão, César- dispõe de habilidade, flexibilidade, senso de timing: coisas que não são sistematizáveis cientificamente.
As simpatias de Berlin se inclinam, então, para as raposas do pragmatismo político. Trata-se, é claro, de uma correta resposta aos totalitarismos do século 20. Mas, nesse ponto, Berlin paga o preço de sua própria circunstância histórica. Pois dificilmente poderíamos considerar o caso de Napoleão ou de Bismarck como exemplos de sadia tolerância liberal. Há, creio, quase tanta violência em não alterar o mundo quanto em querer revolucioná-lo. E Stálin, por mais que se valesse da mais dogmática versão do marxismo-leninismo, não teria por que não ser considerado uma "raposa", na tipologia de Berlin.
Mas o importante era minar o marxismo, com elegância, erudição e nenhum tom panfletário. O segundo ensaio, "Discernimento Político", insiste nas teses do primeiro -que, aliás, pouco altera as considerações do primeiro capítulo de "Limites da Utopia".
"Socialismo e Teorias Socialistas" expõe, em 50 e poucas páginas de álgida neutralidade, as idéias de Babeuf, Fourier, Saint-Simon, Marx e outros. Pode ser útil em currículos universitários, assim como seu derivado, "O Marxismo, Marx e a Internacional no Século 19".
"A Revolução Romântica" atribui a Kant, Fichte, Schelling e Schiller a criação de "algo completamente novo na consciência européia": a idéia de que valores morais, ideais e fins não são objeto de descoberta e investigação filosófica, mas criações autônomas, invenções necessariamente em conflito umas com as outras. É o tema weberiano, que num misto de alarme e simpatia Berlin aplica à filosofia alemã de princípios do século 19. O exercício se repete, de modo mais forçado, no ensaio dedicado a "Kant como Fonte Pouco Conhecida de Nacionalismo".
O texto do livro em que se nota mais vivamente a paixão de Berlin pelo equilíbrio e o seu talento para o perfil biográfico é "Engajamento Artístico", que se estende sobre a obra do crítico literário russo V.G. Bielínski (1810-1848), já analisado, aliás, em "Pensadores Russos". Completa o volume um ensaio sobre o pensamento político do poeta indiano Rabindranath Tagore (1861-1941).


A OBRA
O Sentido de Realidade - Isaiah Berlin. Organização de Henry Hardy. Tradução de Renato Aguiar. Ed. Civilização Brasileira (av. Rio Branco, 99, CEP 20040-040, RJ, tel. 021/263-2082). 384 págs. R$ 42,00.




Texto Anterior: Livros - Teixeira Coelho: O fotógrafo contra a máquina
Próximo Texto: Fábio de Souza Andrade: Existências abafadas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.