São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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A obra-prima de Cervantes liquidou a epopéia e abriu espaço aos personagens problemáticos de Dostoiévski a Faulkner e Chandler

A moral do fracasso de Dom Quixote

Juan José Saer

Desde sua publicação, em 1605, a influência do "Dom Quixote" na narrativa ocidental (para nos limitarmos ao Ocidente e ao gênero narrativo) tem sido cada vez maior e poderíamos dizer que, sobretudo a partir do século 18, foi ganhando um pouco mais de atualidade a cada dia. Os maiores nomes da criação novelística posteriores a Cervantes confessaram sua dívida para com esse texto inesgotável. Muitos personagens célebres da ficção moderna têm traços comuns a D. Quixote: Madame Bovary, certos heróis dostoievskianos como o príncipe Mishkin ou Aliocha Karamazov; os protagonistas de "O Processo" e "O Castelo", de Kafka, e o de "Lorde Jim", de Conrad. Também há um Quixote em cada um dos romances de Faulkner, que certa vez declarou: "Leio o "Quixote" todos os anos como outros lêem a Bíblia". A psicologia e o comportamento de Philip Marlowe, o famoso detetive particular criado por Raymond Chandler, seriam incompreensíveis sem levar em conta uma das contribuições fundamentais de Cervantes à narrativa moderna: a moral do fracasso.
Essa moral do fracasso constitui o golpe de misericórdia que o "Quixote" desfecha nos valores da epopéia, relegando definitivamente o gênero ao passado. Aquilo que Adorno chama "ingenuidade épica", ou seja, a irrefletida inconsciência com que o herói da epopéia se lança ao mar dos acontecimentos para realizar um determinado objetivo, perde toda vigência a partir do "Quixote", em que não apenas os objetivos do Cavaleiro Andante são vagos ou irrealizáveis mas também os acontecimentos são de condição incerta, pois têm para o herói um sentido diferente em relação aos demais personagens, ao autor e aos leitores (por exemplo, os moinhos de vento são gigantes somente para D. Quixote e continuam sendo vulgares moinhos para todos os outros).
Diferentemente do herói épico, que sempre espera um progresso como resultado de suas aventuras e que, no desenrolar delas, vai ganhando terreno em diversos planos, D. Quixote, ao final de cada uma das suas, se encontra no mesmo lugar, decepcionado e às vezes muito ferido, física e moralmente. Mas, mesmo quando antecipa vagamente seu fracasso, ele decide prosseguir suas aventuras. Essa é a moral do fracasso que "D. Quixote de la Mancha" inaugura e que está presente na quase totalidade da narrativa ocidental moderna.


A escolha de La Mancha como cenário indica certa ironia em relação à epopéia, porque La Mancha é o lugar mais pobre e menos prestigioso que tem à mão, em oposição aos lugares legendários de que provêm os heróis dos romances de cavalaria


Sterne e Flaubert, Dostoiévski e Kafka, Faulkner e John dos Passos, Chandler, Borges e até Thomas Mann, que numa noite, num navio que o levava para Nova York, sonhou D. Quixote com os traços de Nietzsche-Zaratustra, assimilaram essa inestimável lição de Cervantes. Mas outras contribuições originais do "Quixote" também deixaram sua marca na narrativa ulterior. Nele se afirma pela primeira vez a autonomia da ficção, numa discreta alusão logo no começo do livro. A famosa primeira frase, "En un lugar de La Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme", pode ser interpretada em, pelo menos, três sentidos diferentes: a fórmula "não quero me lembrar" pode ser lida também como "não posso me lembrar", o que tira importância ao lugar exato em que a ação se deu, introduzindo assim a tipicidade própria dos fatos de toda narrativa realista, de modo que qualquer lugar vale por todos os outros lugares semelhantes que esse lugar representa; mas, se interpretarmos o "não quero me lembrar" de maneira literal, esse será um lugar preciso que deve ser mantido em segredo para que o leitor não o identifique, como tampouco as pessoas e os acontecimentos narrados; e, por último, em paradoxal contradição com o sentido anterior, o não querer se lembrar insinua que pouco importa que lugar é esse, pois a ficção deve sempre preservar sua autonomia em relação a seu referente, criando um mundo próprio que não se limita a ser cópia do que supostamente existe fora do texto. Por outro lado, a escolha de La Mancha como cenário para o romance também indica certa ironia em relação à epopéia, porque La Mancha, nas intenções de Cervantes, é o lugar mais pobre e menos prestigioso que tem à mão, em oposição aos lugares legendários de que provêm os heróis dos romances de cavalaria, que são o último avatar, já um tanto simplificado, do gênero épico.
Esses grandes achados do "Quixote", moral do fracasso e autonomia da ficção, são apenas duas das muitas contribuições do livro à narrativa. Valeria destacar também a superposição de um mundo ideal a um tratamento realista da matéria fictícia, já que o herói vive em dois mundos ao mesmo tempo, o que voltamos a encontrar no século 20, no "Ulisses" de Joyce, em que cada capítulo, minuciosamente realista, segue o esquema ideal de um canto da "Odisséia", numa construção que, grosso modo, também constitui um desmantelamento da epopéia. Mas a crítica também apontou o possível paralelo entre o "Quixote" e certos textos de Kafka, atentando para a mesma impossibilidade de os personagens avançarem rumo a um objetivo ao mesmo tempo incerto e inatingível. E, se em Joyce encontramos raríssimas alusões ao "Quixote", nos diários e relatos de Kafka as referências são muito numerosas.
Embora as figuras de D. Quixote e Sancho tenham se tornado não apenas universais mas também populares, à semelhança de outros arquétipos literários, como o binômio Sherlock Holmes/Watson ou o monstro criado pelo Dr. Frankestein, que acaba se apropriando do nome de seu criador, ou o personagem duplo que encarna o bem e o mal (Dr. Jekyll e Mr. Hyde), o que distingue "Dom Quixote de la Mancha" desses mitos modernos, com a possível exceção do romance de Mary Shelley, é a superioridade do texto literário sobre a versão estilizada do mito. A criação de um mito não é o objetivo principal de uma obra literária, e sim a plenitude do prazer intelectual, sensual e emocional de sua leitura. Também nesse sentido o texto do "Quixote" é exemplar.
O romance é imensamente mais rico que os arquétipos que ele segrega: a dupla Quixote-Sancho é grosseiramente contrastada no mito, mas sutilmente matizada no texto; o mito, com a suposta clareza de suas figuras, é imprudentemente afirmativo, enquanto o texto, em sua emaranhada minúcia, suscita, a par da imprescindível exaltação, muitas dúvidas e interrogações. Ao contrário do livro, o mito, que cremos conhecer de uma vez e para sempre, dispensa-nos da reflexão e da releitura. O mito é simplista e edificante; o romance, complexo e ao mesmo tempo compassivo e cruel.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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