São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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MESTRE SÉRGIO

Unicamp/Arquivo Central-Siarq/Acervo Sérgio Buarque de Holanda
O historiador com seu filho Chico Buarque na casa da família, em SP, em foto de 1981



NO CENTENÁRIO DE SEU NASCIMENTO, O HISTORIADOR QUE FOI CHAMADO DE CONSERVADOR NOS ANOS 70 POR CONSAGRAR O HOMEM CORDIAL, EM "RAÍZES DO BRASIL", TEM SUA PRINCIPAL OBRA REAVALIADA E PASSA A SER CONSIDERADO UM PRECURSOR DA HISTORIOGRAFIA MODERNA


por Raymundo Faoro

Pede-me o jornalista que eu escreva acerca do Sérgio Buarque de Holanda que conheci. Nesse tempo, fins da década de 1960 e começo da de 70, [o crítico] Augusto Meyer, sempre cauteloso nos elogios, me falava de seu amigo como o expoente de sua geração. Devi a ele, mais tarde, a apresentação pessoal, cercada de muitas referências à vida do homem noturno. Nessa época, Augusto Meyer iniciava sua vida austera de monge, depois da morte da sua mulher, Sara, isolando-se do mundo, mas apaixonado pelos livros.
A solidão levou-o a uma crise depressiva, naquele tempo mal diagnosticada, que o levaria à morte, depois de muitos anos de angústia e desespero. Ficava no passado o boêmio, havido como homem de má bebida, mas guardava em armário uma garrafa de uísque, para algumas talagadas noturnas. Saía de casa apenas para ir ao Instituto do Livro, no edifício da Biblioteca Nacional, onde seus amigos e seus inúmeros admiradores o encontravam, nos fins de tarde, em torno da ampla mesa da ante-sala de seu gabinete de trabalho. Às vezes ia à livraria São José, que na época era uma espécie de salão literário, regido pelo "velho mercador" Carlos Ribeiro, que editou dois livros seus, um deles sobre Machado de Assis, com a tiragem de 800 exemplares para, no seu cálculo de mercador, os 800 leitores que se interessariam pelo assunto. Num desses livros e em artigos de jornal, tomou o nome de "bruxo do Cosme Velho", expressão que correu mundo.
O espaço é curto e mal comporta divagações porventura úteis para compreender o que era a vida de Sérgio no Rio de Janeiro. Encontrei-o uma vez na casa de Francisco de Assis Barbosa [jornalista e biógrafo (1914-1991)], que era seu compadre, amigo de muitos anos. Sérgio estava sempre acompanhado de sua mulher, Maria Amélia , sua companheira de toda a vida.
Desde então, quando vinha ao Rio, em geral no fim de semana, sempre o encontrava, quer na casa de Francisco ou no hotel. Seguia-se o jantar nos restaurantes mais badalados. Nessas noitadas agregavam-se a Francisco e a Sérgio [o escritor] Pedro Nava e Afonso Arinos, ambos também, como Francisco, cercados de amigos. Afonso Arinos gostava de receber os amigos na sua biblioteca, na sua imensa e bem-cuidada biblioteca, que ocupava um grande espaço de sua espaçosa casa. Tanto na casa de Arinos quanto na de Nava e de Francisco apareciam outras pessoas, como Prudente de Moraes Neto, o Prudentinho, que eu conhecia há muitos anos, devendo a ele a publicação de alguns artigos meus no "Diário Carioca".
Uma vez, recebi dele a intimação para escrever alguma coisa sobre [o senador" Pinheiro Machado (1851-1915), por ocasião de seu centenário. Não deixa de ser estranha a fascinação de Prudentinho, Arinos e Nava -e de Gilberto Freyre- por Pinheiro Machado, que, se vivesse, os teria como seus adversários. Gilberto Freyre (1900-1987) era o mais interessado admirador póstumo de Pinheiro Machado.
Eu sabia muitas coisas sobre o chamado Condestável da República, que me foram transmitidas pelo maior conhecedor da sua vida, o historiador e caudilho Artur Ferreira Filho, fonte também de Érico Veríssimo na trilogia que dedicou ao Rio Grande do Sul. Até algum tempo atrás eu tinha a coleção de cartas suas escritas ao seu capataz sobre o transporte, via terrestre, de muares para a feira de Sorocaba, fonte dos recursos necessária à sua vida dispendiosa, no morro da Graça, espécie de salão político, sempre aberto aos seus amigos, que lá iam jantar. A todos abrigava, mas só servia um bom vinho às pessoas que queria distinguir, servindo-os de uma garrafa que ocultava sob a mesa, enquanto os outros se contentavam com o vinho zurrapa.
Sem querer, misturei Sérgio com Gilberto Freyre, nome proibido para Sérgio, como Sérgio com o de Gilberto Freyre. Nunca a discrição de um e outro me permitiu saber a causa do distanciamento de ambos, realmente muito estranha, tendo em conta que Gilberto Freyre escreveu o prefácio da primeira edição de "Raízes do Brasil". Depois disso, o prefácio, o admirável prefácio, passou a ser de Antonio Candido, o mais próximo de seus amigos. Sempre que Sérgio me telefonava, quando vinha ao Rio, eu e minha mulher íamos ao seu encontro, para uns drinques, seguidos de jantar. Ele dizia não ter fígado; a bebida, por mais que misturasse uísque com vinho, não lhe causava nenhuma alteração... Ele parecia incólume ao álcool.
Quando possível, formava-se um grupo para o jantar, Francisco de Assis Barbosa, Pedro Nava, Afonso Arinos. Eu algumas vezes ligava para Augusto Meyer, para que ele se juntasse a nós. Ele se mostrava decidido a comparecer ao jantar. Perguntava a hora do encontro: "Meyer, às nove está bem?". "Quem sabe", dizia, "às nove e quinze?". Ele não aparecia nunca, apesar da segurança da resposta. Nesse grupo, a ausência era um perigo real. Percebi isso, numa noite, quando faltou um dos que obrigatoriamente compareciam.
Mas havia o problema do restaurante num sábado ou domingo à noite, em geral muito concorridos. Sérgio, por mais badalado que fosse o restaurante, conseguia uma mesa, apresentando-se como o pai de Chico Buarque. Essa era a palavra mágica que abria todas as portas das noites do Rio de Janeiro, embora alguns maîtres desconfiassem da imperiosa credencial.


Sérgio, por mais badalado que fosse o restaurante, conseguia uma mesa, apresentando-se como o pai de Chico Buarque; essa era a palavra mágica que abria todas as portas das noites do Rio


Nessa época, Sérgio estava escrevendo, para a "História Geral da Civilização Brasileira", seu notável ensaio sobre o fim do império ["Do Império à República], quinto volume do segundo tomo, "O Brasil Monárquico"". Nunca compreendi que trabalho de tal grandeza ficasse confinado a uma obra coletiva, sem ser editado autonomamente. Apesar de seu fácil gregarismo, era capaz de consultar fontes e realizar pesquisas que lhe pediam tempo e paciência. Carrego comigo uma dúvida sobre os trabalhos de Sérgio: ele só citava os contemporâneos estrangeiros, nunca os nacionais. Jorge Luis Borges dizia que ninguém gosta de dever nada aos contemporâneos. Sua narração histórica, fiel a Ranke, procurava evocar a época passada, como se fosse atual.
Hoje, quando se fala em Sérgio, se associa a ele Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior (1907-1990), os três intérpretes do Brasil. O tríptico, a meu ver, não é verdadeiro. Sérgio aceita em geral as teses de "Casa Grande & Senzala", na tese central, o paternalismo, que caracteriza a sociedade brasileira. Há profundas discordâncias, em outros pontos, no que diz respeito ao papel do povo e às raízes ibéricas, que um quer cultivar e o outro regar.
Caio Prado Júnior nada tem a fazer entre os dois, autor de um livro medíocre sobre a formação do Brasil colonial. A base marxista, em que falta a dialética, não é suficiente para levá-lo ao relevo que se lhe quis dar. O tríptico me parece redutível a dois: Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Nessa matéria não há lugar para regionalismos, aos muitos regionalismos cultivados pela USP, encobertos em dogmatismos que não são mais do que cacoetes intelectuais, transformados em slogans que não cabem nessa área.
Sérgio, para ocupar o lugar proeminente que conquistou na inteligência brasileira, dispensa estímulos propagandísticos. Ele próprio detestava que se associasse "Raízes do Brasil" ao homem cordial, uma intencional e comum caricatura maldosa. Sua obra maior não é "Raízes do Brasil", mas o livro que deve ser lançado, retirando-o da coletânea pouco acessível ao conhecimento comum, acerca do fim do império, onde há lampejos que o levam aos pontos mais altos da história literária.

Raymundo Faoro é advogado e escritor. É autor de "Os Donos do Poder", um dos clássicos da sociologia brasileira, e "Machado de Assis - A Pirâmide e o Trapézio" (ambos pela Globo).


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