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Flâneur das coxias
Em textos sobre
a vida teatral
da "belle époque" carioca, João do Rio dissecava
não só as apresentações mas também
a plateia,
os ensaios, a vida nos camarins
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
É difícil saber o que
mais admirar em João
do Rio, se o literato ou
o jornalista -e, no caso deste último, se o
repórter, o cronista ou o crítico
(de teatro, de literatura, de costumes). Na verdade, o homem
a ser admirado é um só porque,
por trás de todas essas máscaras, está o mesmo João Paulo
Alberto Coelho Barreto [1881-1921] -ou Paulo Barreto, José
Antônio José, Joe, Claude,
Máscara Negra e demais pseudônimos que ficaram à sombra
do definitivo João do Rio.
E outro não é o homem que
sabia conciliar seu lado "flâneur" (pelas ruas do Rio de Janeiro, cuja "alma encantadora"
imortalizou em frase e livro)
com as severas condições da
erudição, a qual, para ser adquirida, exige muitas horas de
poltrona à luz do abajur.
Tal receita de vida, rica e
múltipla, salta de cada entrelinha de "João do Rio e o Palco",
coletânea de seus textos sobre
a vida teatral da então capital
da República, organizada por
Níobe Abreu Peixoto. Os dois
volumes, intitulados "Página
Teatral" e "Momentos Críticos", compreendem material
publicado em jornais e revistas,
de 1899, ano de sua estreia, aos
18 anos, a 1921, quando morreu, aos 40. Mais um pouco, pelo estado quase desesperador
dos originais, e o trabalho não
teria sido possível.
Escrever sobre teatro, para
João do Rio, não significava assistir à estreia de uma peça e levar os dias seguintes bordando
um texto para o jornal. Ele frequentava os ensaios, infiltrava-se pelas coxias, invadia os camarins, passava o dedo nos
móveis de cena e falava com todo mundo -das estrelas internacionais aos "pontos" e contrarregras- nos teatros João
Caetano, Carlos Gomes, Lírico,
Recreio e outros do Rio, inclusive aquele cuja inauguração se
deu há cem anos: o Municipal.
Não contente, João do Rio
recebia em sua casa (durante
anos, na Lapa; depois, em Ipanema) as atrizes que admirava
(Cinira Polônio, Abigail Maia,
Lucinda Simões e a filha desta,
Lucilia) ou ia à casa delas, e as
descrevia em perfis apaixonados. A pedidos, lia em primeira
mão os originais de autores
consagrados, como Arthur
Azevedo e Raul Pederneiras, ou
de jovens desconhecidos que o
abordavam na rua. E escrevia
atrevidas cartas abertas para os
empresários teatrais e para o
prefeito, dando palpite sobre a
política dos teatros particulares e públicos.
Tarimba de espectador
Isso feito, João do Rio comparecia às estreias, mas não se
limitava a dissecar o espetáculo
à cata de defeitos e qualidades
-embora, se quisesse, pudesse
fazer isso, com sua tarimba de
espectador em Lisboa, Paris e
Londres.
Para ele, o teatro não era uma
ciência exata, razão pela qual
não se dizia um crítico, mas um
comentarista, capaz de observar a atitude da plateia no "foyer" entre dois atos e fazer dela
a base para o seu julgamento. O
impressionante em João do Rio
é que essa entrega ao mundo do
teatro não o impedia de, como
repórter, mergulhar com igual
frenesi no "bas-fond" das casas
de ópio do Rio ou de devassar
templos e tendas das diversas
religiões para produzir textos
que até hoje municiam os historiadores da cidade.
A vida profissional de João
do Rio cobriu as duas primeiras
décadas do século 20 -justamente a "belle époque" carioca,
iniciada com a reforma urbanística do prefeito Pereira Passos a partir de 1903.
O Rio recebia as grandes
companhias estrangeiras e não
era incomum que, ao fim de um
espetáculo, os acadêmicos de
direito subissem ao palco e um
deles fizesse uma saudação em
francês à diva. A qual podia ser
Sarah Bernhardt, Eleonora Duse, Gabrielle Réjane (inspiradora de todas as Rejanes brasileiras), Lyda Borelli ou Isadora
Duncan.
Num Rio de 1 milhão de habitantes, respirava-se bastante
teatro, o que não impedia João
do Rio de viver resmungando
que "não havia mais teatro nem
arte" -já então a nostalgia de
uma "era de ouro" que ficara no
passado.
Mas João do Rio escrevia tão
bem que as suas palavras o
traíam e revelavam a beleza daquela época, que, no fundo, o
empolgava: "O verão é a época
dos "music halls", das cançonetas e dos teatros ligeiros. No verão, ou o cinematógrafo ou o café cantante, com pernas à mostra, decotes até a cintura, sorvetes, tangos, e muito champanhe
gelado, e muito "bock frappé".
[...] Na cegante apoteose das
lâmpadas elétricas, a loucura e
a doidice alegre crepitam entre
cançonetas picantes e números
vertiginosos" [8/12/1907].
Ou: "Os domingos do Rio já
são torrencialmente carnavalescos. [...] Do alto das janelas
ribombam os zé-pereiras anunciadores da pândega. É o Carnaval, o começo da loucura e
eu, como toda a gente, estou
mais ou menos maluco" [2/2/
1908].
JOÃO DO RIO E O PALCO
Organizadora: Níobe Abreu Peixoto
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 85 (2 vols., 592 págs.)
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