São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009

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Flâneur das coxias

Em textos sobre a vida teatral da "belle époque" carioca, João do Rio dissecava não só as apresentações mas também a plateia, os ensaios, a vida nos camarins

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil saber o que mais admirar em João do Rio, se o literato ou o jornalista -e, no caso deste último, se o repórter, o cronista ou o crítico (de teatro, de literatura, de costumes). Na verdade, o homem a ser admirado é um só porque, por trás de todas essas máscaras, está o mesmo João Paulo Alberto Coelho Barreto [1881-1921] -ou Paulo Barreto, José Antônio José, Joe, Claude, Máscara Negra e demais pseudônimos que ficaram à sombra do definitivo João do Rio.
E outro não é o homem que sabia conciliar seu lado "flâneur" (pelas ruas do Rio de Janeiro, cuja "alma encantadora" imortalizou em frase e livro) com as severas condições da erudição, a qual, para ser adquirida, exige muitas horas de poltrona à luz do abajur.
Tal receita de vida, rica e múltipla, salta de cada entrelinha de "João do Rio e o Palco", coletânea de seus textos sobre a vida teatral da então capital da República, organizada por Níobe Abreu Peixoto. Os dois volumes, intitulados "Página Teatral" e "Momentos Críticos", compreendem material publicado em jornais e revistas, de 1899, ano de sua estreia, aos 18 anos, a 1921, quando morreu, aos 40. Mais um pouco, pelo estado quase desesperador dos originais, e o trabalho não teria sido possível.
Escrever sobre teatro, para João do Rio, não significava assistir à estreia de uma peça e levar os dias seguintes bordando um texto para o jornal. Ele frequentava os ensaios, infiltrava-se pelas coxias, invadia os camarins, passava o dedo nos móveis de cena e falava com todo mundo -das estrelas internacionais aos "pontos" e contrarregras- nos teatros João Caetano, Carlos Gomes, Lírico, Recreio e outros do Rio, inclusive aquele cuja inauguração se deu há cem anos: o Municipal.
Não contente, João do Rio recebia em sua casa (durante anos, na Lapa; depois, em Ipanema) as atrizes que admirava (Cinira Polônio, Abigail Maia, Lucinda Simões e a filha desta, Lucilia) ou ia à casa delas, e as descrevia em perfis apaixonados. A pedidos, lia em primeira mão os originais de autores consagrados, como Arthur Azevedo e Raul Pederneiras, ou de jovens desconhecidos que o abordavam na rua. E escrevia atrevidas cartas abertas para os empresários teatrais e para o prefeito, dando palpite sobre a política dos teatros particulares e públicos.

Tarimba de espectador
Isso feito, João do Rio comparecia às estreias, mas não se limitava a dissecar o espetáculo à cata de defeitos e qualidades -embora, se quisesse, pudesse fazer isso, com sua tarimba de espectador em Lisboa, Paris e Londres.
Para ele, o teatro não era uma ciência exata, razão pela qual não se dizia um crítico, mas um comentarista, capaz de observar a atitude da plateia no "foyer" entre dois atos e fazer dela a base para o seu julgamento. O impressionante em João do Rio é que essa entrega ao mundo do teatro não o impedia de, como repórter, mergulhar com igual frenesi no "bas-fond" das casas de ópio do Rio ou de devassar templos e tendas das diversas religiões para produzir textos que até hoje municiam os historiadores da cidade.
A vida profissional de João do Rio cobriu as duas primeiras décadas do século 20 -justamente a "belle époque" carioca, iniciada com a reforma urbanística do prefeito Pereira Passos a partir de 1903. O Rio recebia as grandes companhias estrangeiras e não era incomum que, ao fim de um espetáculo, os acadêmicos de direito subissem ao palco e um deles fizesse uma saudação em francês à diva. A qual podia ser Sarah Bernhardt, Eleonora Duse, Gabrielle Réjane (inspiradora de todas as Rejanes brasileiras), Lyda Borelli ou Isadora Duncan.
Num Rio de 1 milhão de habitantes, respirava-se bastante teatro, o que não impedia João do Rio de viver resmungando que "não havia mais teatro nem arte" -já então a nostalgia de uma "era de ouro" que ficara no passado. Mas João do Rio escrevia tão bem que as suas palavras o traíam e revelavam a beleza daquela época, que, no fundo, o empolgava: "O verão é a época dos "music halls", das cançonetas e dos teatros ligeiros. No verão, ou o cinematógrafo ou o café cantante, com pernas à mostra, decotes até a cintura, sorvetes, tangos, e muito champanhe gelado, e muito "bock frappé".
[...] Na cegante apoteose das lâmpadas elétricas, a loucura e a doidice alegre crepitam entre cançonetas picantes e números vertiginosos" [8/12/1907]. Ou: "Os domingos do Rio já são torrencialmente carnavalescos. [...] Do alto das janelas ribombam os zé-pereiras anunciadores da pândega. É o Carnaval, o começo da loucura e eu, como toda a gente, estou mais ou menos maluco" [2/2/ 1908].


JOÃO DO RIO E O PALCO

Organizadora: Níobe Abreu Peixoto
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 85 (2 vols., 592 págs.)




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