São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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Sada Abe

DONALD RICHIE


Depois da guerra, solta da prisão, ela arrumou um emprego em Inari-cho, no centro de Tóquio: no Hoshi-Kiku-Sui -a Água do Crisântemo-Estrela-, um bar.
Ali, toda noite, trabalhadores da redondeza -pois se tratava de um "taishusakaba", um bar de trabalhadores- se reuniam para beber saquê e "shochu" e beliscar lula grelhada com picles de nabo. E toda noite, por volta das dez, Sada Abe aparecia.
Era esplêndido. Ela descia a escada -o que, em si, já era um grande acontecimento, que se encerrava bem no meio da clientela. Sempre de quimono chamativo, algum que restara da época de seu crime -começo de Showa, 1936-, Sada Abe surgia no topo dos degraus, parava, observava a platéia embaixo e então descia lentamente.
De onde vinha, nunca se soube. Alguns diziam que seu esconderijo ficava no andar superior, cheio de fotos velhas e móveis extravagantes. Outros afirmavam que a escada não levava a lugar algum, que ela tinha que trepá-la por trás antes de aparecer em público. De todo modo, a descida era dramática, com muitas pausas para que ela mirasse os fregueses embaixo, lançando olhadelas para este ou aquele. E, ao fazê-lo, avançando lentemente, expressava indignação.
Sempre indignação. Era parte do show, da apresentação. A razão ostensiva era a atitude dos homens embaixo. Invariavelmente, eles cobriam suas partes íntimas. Os dedos apertavam com força, depois eles se viravam e riam à socapa. Acima, Sada Abe, descendo, fingia fúria, lançando olhares fulminantes aos que apertavam as partes e riam ainda mais. Irada, ela golpeava o corrimão, e as gargalhadas estouravam.
Essa pantomima se devia à natureza do crime de Sada Abe. Vinte anos atrás, ela decepara o pênis de seu amante. Quando já estava morto, é claro. E morrera porque os dois tinham descoberto que, quando ela apertava o pescoço dele com força, seu membro exausto se reanimava, mas certo dia ela apertou demais e o matou.
Era a esses fatos que seus fregueses agora, duas décadas depois, aludiam, ao esconder o pênis com risinhos. E era o que ela reconhecia, fingindo fúria.
Ao pé da escada ela parava e varria o recinto com seu olhar flamejante. Então, no silêncio crescente, ela se postava e fixava os olhos.
A galhofa cessava. Alguns homens se encolhiam mais, como se estivessem realmente amedrontados. Talvez estivessem, pois essa mulher já era uma figura lendária. Uma assassina. Que cumprira pena de prisão. Escrevera um livro sobre suas façanhas. E seria -talvez pensassem- capaz de fazer tudo de novo.
Ela se postou como um basilisco. O último risinho se dissipou. Silêncio, absoluto. Então, somente então, como se tivesse recebido a homenagem desejada, Sada Abe sorriu. Um sorriso cordial, acolhedor que a acompanhou quando se pôs a servir as bebidas e dar tapinhas nas costas dos fregueses.
Como tantas atendentes de bar, masculinizou-se, tornou-se um dos garçons. Diferenciava-a, no entanto, o fato de realmente ter esganado um homem até a morte e depois decepado seu membro. Consequentemente, levar tapinhas de Sada Abe causava um "frisson".
"Olá, você de novo? Gostou desse lugar, hein?", perguntou, baixando os olhos para mim e acrescentando: "Tragam o melhor para este aqui, rapazes. Vamos todos esvaziar os copos agora".
Foi-se então para outra mesa, voltando para mim o olhar de vez em quando. Era um olhar interessado. Ela parecia cismada, talvez se perguntasse se eu também conhecia sua história.
Conhecia, e também cismava com ela e com o rumo que sua história tomara. Ter matado o amante sem querer, num momento de paixão, ter resgatado da catástrofe, num momento de pânico, o objeto que, como criança, se amou era uma coisa. Outra bem diferente, porém, era conviver com o público, apresentar-se como figura de terror vulgar e depois de diversão trivial.
Ela decerto agredira o homem, daquela vez, mas agora parecia feri-lo duplamente. E estava igualmente se mutilando, ao parodiar um evento de tanta importância para ela, que tanto transformara sua vida. Ela estava -senti com precisão- descrente.
As risadas recomeçaram. Alguns mais ousados vociferavam que estavam com medo de ir mijar. Outros gritavam para que se escondessem as facas na presença dela. Ela sorriu, distribuiu tapinhas e serviu saquê, desfilando em seu quimono listrado da era Showa, como uma professora entre alunos malcomportados.
Às vezes, porém, o grande sorriso esmaecia. Ela parecia meditar. Deixava-se ficar, garrafa de saquê na mão, distraída. No quê, mas no que será que está pensando, eu me perguntava, a essas alturas já meio bêbado também. Talvez pensasse naquela noite, 20 anos atrás, ou talvez nas contas a pagar no presente.
O que quer que fosse, ela logo se recompôs e saiu sorrindo entre as mesas. Era só isso, porém. Suas visitas noturnas nunca duravam muito. Passada uma hora, de repente ela não estava mais. Ninguém a via subir a escada e ninguém daquele bando embriagado lá embaixo notava sua ausência.
Talvez ela não aguentasse mais a paródia em que sua vida se transformara. Ou talvez tivesse subido para acertar as contas do dia.


Tradução de Lúcia Nagib.


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