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Sada Abe
DONALD RICHIE
Depois da guerra, solta da prisão, ela arrumou um emprego em
Inari-cho, no centro de Tóquio:
no Hoshi-Kiku-Sui -a Água do
Crisântemo-Estrela-, um bar.
Ali, toda noite, trabalhadores da
redondeza -pois se tratava de um
"taishusakaba", um bar de trabalhadores- se reuniam para beber
saquê e "shochu" e beliscar lula
grelhada com picles de nabo. E toda noite, por volta das dez, Sada
Abe aparecia.
Era esplêndido. Ela descia a escada -o que, em si, já era um grande acontecimento, que se encerrava bem no meio da clientela. Sempre de quimono chamativo, algum
que restara da época de seu crime
-começo de Showa, 1936-, Sada
Abe surgia no topo dos degraus,
parava, observava a platéia embaixo e então descia lentamente.
De onde vinha, nunca se soube.
Alguns diziam que seu esconderijo
ficava no andar superior, cheio de
fotos velhas e móveis extravagantes. Outros afirmavam que a escada não levava a lugar algum, que
ela tinha que trepá-la por trás antes de aparecer em público. De todo modo, a descida era dramática,
com muitas pausas para que ela
mirasse os fregueses embaixo, lançando olhadelas para este ou
aquele. E, ao fazê-lo, avançando
lentemente, expressava indignação.
Sempre indignação. Era parte do
show, da apresentação. A razão
ostensiva era a atitude dos homens
embaixo. Invariavelmente, eles
cobriam suas partes íntimas. Os
dedos apertavam com força, depois eles se viravam e riam à socapa. Acima, Sada Abe, descendo,
fingia fúria, lançando olhares fulminantes aos que apertavam as
partes e riam ainda mais. Irada, ela
golpeava o corrimão, e as gargalhadas estouravam.
Essa pantomima se devia à natureza do crime de Sada Abe. Vinte
anos atrás, ela decepara o pênis de
seu amante. Quando já estava
morto, é claro. E morrera porque
os dois tinham descoberto que,
quando ela apertava o pescoço dele com força, seu membro exausto
se reanimava, mas certo dia ela
apertou demais e o matou.
Era a esses fatos que seus fregueses agora, duas décadas depois,
aludiam, ao esconder o pênis com
risinhos. E era o que ela reconhecia, fingindo fúria.
Ao pé da escada ela parava e varria o recinto com seu olhar flamejante. Então, no silêncio crescente,
ela se postava e fixava os olhos.
A galhofa cessava. Alguns homens se encolhiam mais, como se
estivessem realmente amedrontados. Talvez estivessem, pois essa
mulher já era uma figura lendária.
Uma assassina. Que cumprira pena de prisão. Escrevera um livro
sobre suas façanhas. E seria -talvez pensassem- capaz de fazer
tudo de novo.
Ela se postou como um basilisco.
O último risinho se dissipou. Silêncio, absoluto. Então, somente
então, como se tivesse recebido a
homenagem desejada, Sada Abe
sorriu. Um sorriso cordial, acolhedor que a acompanhou quando se
pôs a servir as bebidas e dar tapinhas nas costas dos fregueses.
Como tantas atendentes de bar,
masculinizou-se, tornou-se um
dos garçons. Diferenciava-a, no
entanto, o fato de realmente ter esganado um homem até a morte e
depois decepado seu membro.
Consequentemente, levar tapinhas de Sada Abe causava um
"frisson".
"Olá, você de novo? Gostou desse lugar, hein?", perguntou, baixando os olhos para mim e acrescentando: "Tragam o melhor para este aqui, rapazes. Vamos todos
esvaziar os copos agora".
Foi-se então para outra mesa,
voltando para mim o olhar de vez
em quando. Era um olhar interessado. Ela parecia cismada, talvez
se perguntasse se eu também conhecia sua história.
Conhecia, e também cismava
com ela e com o rumo que sua história tomara. Ter matado o amante sem querer, num momento de
paixão, ter resgatado da catástrofe, num momento de pânico, o objeto que, como criança, se amou
era uma coisa. Outra bem diferente, porém, era conviver com o público, apresentar-se como figura
de terror vulgar e depois de diversão trivial.
Ela decerto agredira o homem,
daquela vez, mas agora parecia feri-lo duplamente. E estava igualmente se mutilando, ao parodiar
um evento de tanta importância
para ela, que tanto transformara
sua vida. Ela estava -senti com
precisão- descrente.
As risadas recomeçaram. Alguns
mais ousados vociferavam que estavam com medo de ir mijar. Outros gritavam para que se escondessem as facas na presença dela.
Ela sorriu, distribuiu tapinhas e
serviu saquê, desfilando em seu
quimono listrado da era Showa,
como uma professora entre alunos malcomportados.
Às vezes, porém, o grande sorriso esmaecia. Ela parecia meditar.
Deixava-se ficar, garrafa de saquê
na mão, distraída. No quê, mas no
que será que está pensando, eu me
perguntava, a essas alturas já meio
bêbado também. Talvez pensasse
naquela noite, 20 anos atrás, ou
talvez nas contas a pagar no presente.
O que quer que fosse, ela logo se
recompôs e saiu sorrindo entre as
mesas. Era só isso, porém. Suas visitas noturnas nunca duravam
muito. Passada uma hora, de repente ela não estava mais. Ninguém a via subir a escada e ninguém daquele bando embriagado
lá embaixo notava sua ausência.
Talvez ela não aguentasse mais a
paródia em que sua vida se transformara. Ou talvez tivesse subido
para acertar as contas do dia.
Tradução de Lúcia Nagib.
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