São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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A história social dos clubes

PETER BURKE

Para muitas pessoas hoje a palavra "clube" está relacionada a exclusividade e às elites, especialmente na Inglaterra, onde uma parte de Londres (ao redor de Pall Mall) ainda é conhecida como "Clubland" e onde ainda vicejam clubes tradicionais como o Athenaeum, o Reform, o Travellers e o Garrick. Poder-se-ia dizer que os clubes são exclusivos por definição, já que são associações voluntárias com o direito de rejeitar, assim como de admitir, novos sócios. Igualmente, uma análise de sua história sugere que os clubes têm ao mesmo tempo um aspecto democrático e um aristocrático. De fato, os clubes fizeram uma importante contribuição para a democracia, assim como para o Iluminismo e a modernização. Associações voluntárias não são uma instituição unicamente ocidental, como nos lembram os exemplos das sociedades secretas da África Ocidental e da China, mas foram extremamente importantes no Ocidente, especialmente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Elas foram especialmente importantes nos séculos 18 e 19, embora suas raízes sejam muito mais antigas, remontando pelo menos ao final da Idade Média. Nos séculos 14 e 15, um importante papel na vida social da cidade européia cabia às guildas, não apenas as "guildas de artesãos", ancestrais dos modernos sindicatos, mas também as guildas religiosas ou "confrarias". As confrarias eram associações voluntárias de cidadãos (principalmente homens, mas não exclusivamente) que promoviam a solidariedade ou a fraternidade entre os membros, comendo e bebendo juntos, participando de funerais, assim como caminhando em procissão através da cidade na festa do santo padroeiro da associação. Na Europa católica as confrarias desse tipo sobreviveram durante séculos, e algumas ainda existem na Itália e na Espanha, por exemplo. Na Grã-Bretanha, por outro lado, essas fraternidades religiosas desapareceram durante a Reforma, apenas para renascer sob forma mais laica nos séculos 17 e 18. A ascensão dos clubes britânicos foi incentivada pela urbanização, sobretudo pelo crescimento de Londres, que passou de aproximadamente 50 mil habitantes em 1550 para 1 milhão em 1800. A cidade cresceu graças à imigração, e os clubes eram uma maneira de integrar os recém-chegados à cidade e fazê-los sentir-se mais em casa. Pessoas de diferentes condados ingleses formaram seus próprios clubes, com festas anuais, enquanto os escoceses, galeses e irlandeses criaram diversas associações. O crescimento de Londres e outras cidades no século 18 esteve ligado ao surgimento de uma extraordinária variedade de clubes para pessoas com interesses especiais: clubes de tocadores de sinos, de debate, de bebida, de música, clubes científicos, clubes para o aperfeiçoamento da agricultura, para a reforma moral e assim por diante. Os clubes políticos surgiram no século 17. O Club Rota discutia idéias republicanas, enquanto o Green Ribbon Club (da Fita Verde) apoiava o partido "Whig" e foi muito ativo na campanha que levou à Revolução de 1688. O esporte não ficou para trás: o English Jockey Club remonta a meados do século 18, enquanto os clubes de críquete ingleses e os clubes de golfe escoceses apareceram mais ou menos no mesmo período. Qualquer que fosse o objetivo do clube, a instituição assumia mais ou menos a mesma forma. Havia reuniões regulares, geralmente em uma taverna, já que beber junto era um meio importante de manter a solidariedade ou fraternidade entre os sócios. A diretoria do clube -presidente, secretário, tesoureiro e assim por diante- era eleita pelos membros, que também tinham de aprovar as regras ou a "Constituição" do clube. As decisões tomadas nas reuniões eram registradas em "minutas", de modo que os sócios ausentes pudessem saber o que havia ocorrido. Como disse o sócio de um clube americano no século 18, os clubes eram "governos em miniatura" ou pequenos "Parlamentos", oferecendo um treinamento em cultura democrática, em liberdade, igualdade e sobretudo em fraternidade. Esses desenvolvimentos não se limitavam à Grã-Bretanha, é claro. Os maçons, por exemplo, eram uma entidade internacional organizada em clubes locais ou "lojas", que deram uma importante contribuição ao Iluminismo. Sociedades para a reforma da agricultura foram fundadas por toda a Europa no século 18, da Espanha à Rússia. Se os ingleses inventaram o clube político no século 17, os clubes jacobinos da Revolução Francesa têm um lugar de destaque na história. As primeiras sociedades científicas incluem os Lincei de Roma, assim como a Sociedade Real de Londres (ambas ainda florescentes). Sociedades étnicas incluíam as fraternidades dos franceses, dos alemães e dos florentinos na Roma do século 17, com funções semelhantes às do clube Sírio, do clube Armênia ou do clube Espanhol em São Paulo hoje e seus equivalentes em outras cidades, como as sociedades tribais em Lagos, na Nigéria. Do mesmo modo, as pessoas mais "clubáveis" (para usar seu próprio adjetivo revelador) eram os ingleses, seguidos de perto pelos norte-americanos. O movimento de clubes atingiu seu auge no século 19 de ambos os lados do Atlântico, quando os pobres fundaram suas "sociedades amigáveis" e surgiram os "clubes beneficentes", as "ligas femininas" e os "institutos femininos", e clubes de elite como o Athenaeum e o Reform foram seguidos por sociedades com afiliação das massas, como a Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade contra os Animais ou a Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças.


Essas instituições, a meio caminho entre o mundo privado e o mundo público, contribuíram para o surgimento do que hoje é chamado de "sociedade civil"


Foi o mundo anglófono que criou o modelo da associação voluntária, que foi amplamente adotado em outros lugares. O English Jockey Club, por exemplo, criado para regulamentar as corridas em Newmarket, foi imitado em Paris (1833) e nos Estados Unidos (1893), assim como em Buenos Aires e em São Paulo. A existência desses clubes, em muitos dos quais membros de diferentes classes sociais se encontravam regularmente face a face, ajudou a criar uma cultura mais democrática do que a até então existente. Ainda mais importante para a cultura política foi a disseminação do modelo constitucional de associação voluntária, com suas regras, diretoria eleita e assim por diante. Essas instituições, a meio caminho entre o mundo privado da família e o mundo público do Estado, deram uma importante contribuição ao surgimento do que algumas pessoas hoje chamam de "esfera pública" e outras, de "sociedade civil".

Declínio da democracia
Hoje, porém, os clubes parecem estar em declínio. O crescimento da cidade, que originalmente contribuiu para o surgimento dos clubes, talvez seja em parte responsável por sua queda, porque as megacidades do mundo atual são tão grandes que as pessoas de interesses semelhantes acham difícil reunir-se regularmente. Esse declínio é lamentável, tenhamos ou não interesse por tocar sinos ou por corridas; pois, por mais estranho que possa parecer quando o ouvimos pela primeira vez, o argumento recentemente invocado pelo cientista político americano Robert Putnam é bem fundado.
Putnam sugere que todos devemos nos preocupar com o declínio dos clubes, da Itália aos Estados Unidos, porque ele está ligado ao declínio da democracia. Os objetivos de um determinado clube, por exemplo, o de incentivar o interesse pelas corridas de pombos, pode não ter nada a ver com política, mas um declínio geral dos clubes é sintoma de um declínio na disposição de participar da vida pública ou da cultura democrática. E essa é uma má notícia para todos.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves




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