São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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O PASTELÃO SEM TORTAS DE HOLLYWOOD

Reprodução
Cena do filme "A Costela de Adão"



O filósofo americano defende que clássicos como "A Costela de Adão", de George Cukor, e "Aconteceu Naquela Noite", de Frank Capra, fazem uma releitura das comédias do cinema mudo, como as de Chaplin, para dramatizar a perda e a recuperação do outro


por Stanley Cavell

A descoberta de que um ser humano batendo em outro com um pau, nas circunstâncias certas, faz os observadores rirem até chorar deve ser quase tão antiga quanto a instituição que conhecemos como teatro. E também é óbvio que, até as primeiras décadas do século que acaba de terminar, mostrar as diversas maneiras como os deuses, a natureza, o homem ou a máquina podiam fazer os seres humanos perderem o controle de seus corpos ou de suas funções corporais constituiu a matéria-prima dos filmes mudos. Os maiores e mais famosos clowns do cinema mudo, Charles Chaplin (1889-1977) e Buster Keaton (1895-1966), fizeram na terceira década do meio cinemático filmes que, misturando o pastelão (1) com a inocente pungência da paixão e do desejo silenciosos, atingiram picos absolutos em certas dimensões da arte cinematográfica. Para mim isso é indiscutível. Algo que sei que não é indiscutível é a afirmação que faço em meu estudo sobre o gênero das comédias de Hollywood que chamo de "recasamento", no meu livro "Pursuits of Happiness" (Buscas da Felicidade), de que esses filmes são, nas duas décadas após o advento da era do som, dignos sucessores das grandes comédias da fase muda e que levam a arte do cinema a diversos picos de realização não superados -o livro foi traduzido para o francês com o título "À la Recherche du Bonheur" ("Em Busca da Felicidade"), cujo eco proustiano certamente não é irrelevante, mas sacrifica o tom explicitamente político dado pela familiaridade da frase inglesa "pursuits of happiness". A frase ocorre nos momentos iniciais da Declaração de Independência dos Estados Unidos, cuja proposta axiomática de que "todos os homens foram criados iguais" -e portanto têm igual direito à felicidade- não aparece na subsequente Constituição dos EUA. No livro eu admito que os atores das comédias de recasamento não são tão dotados para o pastelão quanto seus contemporâneos Laurel e Hardy [O Gordo e o Magro", W.C. Fields e os Irmãos Marx. Minha afirmação é que os filmes de comédia de recasamento são novas e fecundas explorações desse meio de comunicação, enquanto os clowns falantes são, por assim dizer, visitantes bem-vindos, mas atrasados, ao meio, cujas atuações foram basicamente de adeus à sua arte. Uma questão que não levantei em meu livro é se -ou até que ponto- uma herança ou versão do pastelão pode ter um papel essencial para o sucesso das comédias de recasamento. Tendo sido convidado para abordar aqui o tema do pastelão, esta é a questão que proponho tratar a seguir. Quando, por exemplo, em "A Costela de Adão" ("Adam's Rib", 1949), de George Cukor, a figura de Adão (Spencer Tracy) diz para sua mulher Amanda (Katharine Hepburn) que no processo jurídico em que ambos são advogados oponentes ela "está transformando o tribunal em um programa de "Punch and Judy'", sem dúvida devemos entender essa referência à forma mais conhecida do pastelão de bonecos como uma espécie de alusão metafórica tanto à situação de um casamento quanto à situação da lei.

Conversa corrompida
Mas pode tornar-se uma pergunta -tentarei transformá-la em pergunta- sobre quão seriamente devemos ver a possibilidade de que esse filme, e o gênero a que definitivamente pertence, propõe que o casamento, e o contexto legal em que se dá um casamento, às vezes tenha de correr o risco de se transformar em algo como programas "Punch and Judy" [personagens do teatro de fantoches, são bufões -marido e mulher- que protagonizam molecagens ultrajantes" para descobrir seu próprio valor.
Uma das leis definitivas do gênero comédia de recasamento é que uma conversa entre um par de namorados tenha sido estabelecida (que, no gênero, é o sinal de que o casamento foi efetivado) e depois se tornado corrompida ou ameaçada, de modo que a tessitura da narrativa deve levar a um modo de intercâmbio entre eles que conduz à continuidade de sua comunicação, um modo que deve obedecer a três condições: primeira, que seja inteligente o bastante para estabelecer uma espécie de batalha de frases espirituosas entre eles; segunda, que estabeleça uma intimidade entre eles que tenda a torná-los incompreensíveis aos outros; terceira, que a conversa inclua um debate sobre casamento e que constitua um tipo de educação solicitada pela mulher, que escolhe o homem de quem deseja receber essa educação, o que vem a significar um homem que está preparado para receber uma educação dela (não é apenas uma questão do que um livro recente sobre a comédia de Hollywood chama de "moças de língua ágil".
Por exemplo, os personagens de Lauren Bacall nos filmes de Howard Hawks "À Beira do Abismo" ["The Big Sleep", 1946" e "Uma Aventura na Martinica" ["To Have and Have Not", 1944", com Bogart, falam tão rápido -quer dizer, de modo tão firme e inteligente- quanto seus parceiros na comédia de recasamento, mas os personagens de Bacall não poderiam existir naquele mundo).


O pastelão acentua a necessidade humanamente inevitável de ação, do corpo em movimento, de sua vulnerabilidade e sua intrusividade; é um mundo de infância


Se o pastelão for considerado intrínseco às comédias de recasamento, terá de ser modificado para obedecer às suas leis, expressar aquele mundo, e não às de um mundo em que, por exemplo, um bando de policiais com cassetetes persegue ineficazmente um homem que é mais vítima de pecados que pecador.
Em um mundo perfeito do pastelão há pouco tempo para falar, essencialmente nenhum para conversar, o que significa -desde que Aristóteles o considera essencial para a pólis, para a associação política que seus membros possam falar, falar juntos- que o mundo do pastelão é essencialmente pré-político. Poder-se-ia dizer que, assim como outro grande gênero de filme americano, o western, o pastelão mudo explora uma imagem da situação da natureza, a condição a que a lei deve chegar, portanto mantendo vivas as perguntas: como, e até onde, é válido nos submetermos à sociedade civil?
O pastelão acentua a necessidade humanamente inevitável de ação, do corpo em movimento, de sua vulnerabilidade e sua intrusividade. No entanto esse mundo existe sem desculpas e igualmente sem tragédia, já que nele ninguém morre. Isso torna a separação ainda mais pungente, quando seus motivos são claramente inaturais ou injustos, digamos violentos. É um mundo de infância (os pais, ou os adultos em geral, estão numa situação natural em relação às crianças?).
Quando Aristóteles, novamente, pergunta o que significa que dentre os animais somente os humanos tenham recebido a linguagem e nota que a fala nos permite -ou nos obriga- a distinguir entre o bom e o mau, entre o justo e o injusto, ou seja, a julgar o valor das coisas e dos eventos e, principalmente, o valor de encontrar algo que valha a pena dizer, está enfatizando que as palavras unem, que somos responsáveis uns pelos outros, sobretudo por nos fazermos inteligíveis; e nosso âmbito de responsabilidade se torna, embora parcialmente limitável, antecipadamente inescrutável.
A possibilidade da conversa sobre justiça começou, o avanço para a percepção de nossa natureza humana no processo de persuadir nossos companheiros membros da pólis no rumo mais justo, onde o discurso é concebido como a abordagem séria e recíproca de questões de interesse comum para todos a quem nossas palavras possam alcançar. Estar incapacitado para essa conversa é, como Aristóteles declara numa passagem famosa, ser um animal irracional ou um deus.


A privacidade nessas narrativas torna-se uma alegoria das indignidades positivas da vida democrática, uma disposição a confrontar (a não negar) a diferença do outro num território comum


A comédia de recasamento acentua, como se estivesse além da necessidade de agir, de nos autoconduzirmos, a necessidade humanamente inevitável de falar, essa maneira de revelar o significado. Ela responde à pergunta sobre por que o ser humano recebeu a fala dizendo que estamos destinados a confrontar outra pessoa em particular, distinguindo-nos reciprocamente; dessa forma, salienta que as palavras ferem assim como unem -e um por causa do outro. No entanto a privacidade nessas narrativas torna-se uma alegoria das indignidades positivas da vida democrática, uma disposição a confrontar (a não negar) a diferença do outro num território comum. Aqui a conversa é vista como uma disposição para discussões ou altercações sérias e recíprocas, para levar as diferenças a sério, enquanto se continua comprometido com a declaração de levar a vida no mesmo território com o outro, principalmente presente um para o outro. No mundo falado, as "tortas" podem ser dispensadas, mas as palavras atacam.

Um tapinha não dói
Vamos começar detalhando erupções de pastelão psíquico nas comédias de recasamento com outro exemplo de "A Costela de Adão", de Cukor, em que há não apenas literalmente um tapa (com a mão de Spencer Tracy no traseiro nu de Katharine Hepburn, como clímax da massagem que ele lhe aplica), que não apenas literalmente machuca, mas precipita uma reação furiosa. O homem tenta atenuar esse contratempo dizendo algo como: "Qual é o problema? Foi apenas um tapinha. Não sabe entender uma brincadeira?", a que a mulher responde, de modo inesquecível: "Eu conheço a diferença entre um tapinha e uma bofetada. Você fez de propósito. E ainda por cima achou que tinha o direito de fazer". Tracy continua tentando negar o que Hepburn percebeu e, para acalmá-la, pergunta brincando se ela tem "um radar lá atrás". Mas o dano já foi feito; abriu-se uma lacuna entre eles. O que não é, e o que continua sendo, um ultraje (embora mais sutil ou mais sublimado que um golpe de pau no pastelão ou uma bofetada), e como um casal pode alcançar uma certa felicidade recíproca sem negar que entre eles há uma história manchada por algo parecido com uma irredutível vilania masculina, cabe a essas comédias analisar. Duas das sete comédias de recasamento que, na minha opinião, definem o gênero demonstram com uma espécie de explicitude pedagógica uma condição sob a qual o homem é perdoável por seu gesto de vilania (pode-se chamar isso de viver basicamente protegendo e respeitando seu ego), qual seja, a condição de ele desejar sofrer indignidade, desejar aceitar a participação no outro lado do pastelão da existência humana, especialmente no que Lacan chama de fiasco da existência sexual humana. Indignidade é o que sofre o sofredor do pastelão, o clown que é atingido, mas na comédia de recasamento isso assume a forma de uma atenção ou reação à mulher, uma certa passividade, podemos dizer, que é a forma pela qual o homem afirma sua posição para aceitação dela. Acredito que a imagem mais abrangente ou recorrente da preparação do homem para sofrer indignidade ocorre em "As Três Noites de Eva" ("The Lady Eve", 1941), de Preston Sturges, em que o personagem de Henry Fonda é derrubado ao chão -ou sofre uma queda- nada menos que seis vezes, sempre em conexão com a mulher, interpretada por Barbara Stanwyck (diante da apresentação do filme em desenho animado, em que a maçã e a cobra no Jardim do Éden recebem representações explícitas e farsescas, "sofrer a queda" está recebendo uma representação farsesca no corpo do filme. Duas vezes a queda é precipitada pela mulher, que estende o pé para que o homem tropece como se fosse acidentalmente, e, quando a vemos rapidamente encontrar uma ocasião para mostrar a ele um pouco da perna, torna-se claro que aquilo que o fez tropeçar, e isso continua durante todo o tempo em que os vemos, fazendo-o tropeçar ou derrubando-o -"levando-o ao chão", como diz a expressão americana-, é a mulher em si, a força de sua presença sexual sobre ele).

Desfecho complexo
O outro exemplo de indignidade pedagogicamente explícita é o momento em "Cupido É Moleque Teimoso" ("The Awful Truth", 1937), de Leo McCarey, em que Cary Grant, decidido a desmascarar um caso entre sua mulher mudada e um professor de canto, força ruidosamente a entrada no apartamento do professor, apenas para descobrir a mulher e o professor numa cena de recital. A cena não deixa de ter certa suspeita erótica, mas não é o que Grant previa -e, quando tenta sentar-se num lugar escondido no fundo da platéia, cai para trás com a cadeira, derrubando ruidosamente uma mesa e um abajur, para delícia de sua companheira cantora. Isso evidentemente recaptura a intimidade do casal e prepara um desfecho extraordinariamente complexo (como a estrutura do recasamento parece ser sobretudo ausente -ou pelo menos não se destaca- no cinema de outras culturas, menciono sua invocação em "Sorrisos de uma Noite de Amor" ["Sommarnattens Leende", 1955", de Ingmar Bergman, cuja conclusão submete o protagonista, Gunnar Bjornstrom, à dupla indignidade de perder um concurso de roleta-russa que era uma farsa, feito com cartuchos vazios em vez de balas, e cuja indignidade ou passividade, digamos sua morte e ressurreição, estabelece a força de seu desejo aos olhos da heroína, Eva Dahlbeck, que o recebe de volta em sua vida). É essencial para a idéia de um gênero desenvolvida em "Pursuits of Happiness" que, se uma das características definidas para o gênero estiver ausente de um determinado membro dele, esse membro deve conter alguma característica compensatória. Por exemplo, quatro das comédias de recasamento definitivas começam numa cidade e terminam num lugar no campo, um lugar de perspectiva e visão shakespeariana. Isso não vale para "Aconteceu Naquela Noite" ("It Happened One Night", 1934), de Frank Capra, ou "Núpcias de Escândalo" ("The Philadelphia Story", 1940), de George Cukor. Em "Aconteceu Naquela Noite" o casal é mostrado "na estrada", descobrindo essa característica do picaresco, que é uma história de aventura, de servir igualmente para o gênero da comédia de recasamento, implicando que o gênero busca encontrar a aventura no casamento, uma descoberta que por sua vez exige uma volta para testar essa característica nos outros exemplos do gênero citados.

O local de origem
E em "Núpcias de Escândalo", em vez de ir para o campo, a característica compensatória está na sugestão de que esse lugar no campo, onde basicamente transcorre toda a ação, lembra um cenário de aventura, qual seja (em suas discussões de classe e igualdade), o local de origem dos documentos fundadores dos Estados Unidos, a Constituição e a Declaração de Independência.
Estávamos explorando um pouco a idéia de indignidade no gênero de recasamento, na verdade perguntando se é um tema essencial do gênero, e nesse caso, quando estiver ausente, se deve ser recompensado. Em "Aconteceu Naquela Noite", Clark Gable sofre apenas a indignidade generalizada, se é que é isso, de se apaixonar por uma mulher de uma classe essencialmente mais rica, o que aqui quer dizer que ele precisa da ajuda do pai dela para afirmar seu direito a se casar. Mas de outro modo ele manifestou amplamente a exigência do gênero de sua atenção ou reação à mulher de outras maneiras marcantes, notadamente ao alimentá-la (o filme começa com uma sequência em que ela recusa a comida que seu pai lhe trouxe), ao mesmo tempo cozinhando para ela e procurando comida (cenouras cruas) quando eles têm de passar a noite sozinhos no mato.
Em "Núpcias de Escândalo", Cary Grant mantém sua dignidade o tempo todo (embora esteja implícito que o que causou seu divórcio do personagem de Katharine Hepburn é que o casamento o levou ao alcoolismo, uma causa de indignidade que a mulher não somente não considera vencedora, como diz explicitamente a ele que "o torna muito pouco atraente").


Mas aqui a trama na comédia de recasamento enfatiza exatamente não o tom masculino de vilania ou violência, mas a intolerância da mulher por qualquer perda de controle social ou emocional


Mas aqui a trama na comédia de recasamento -sempre girando sobre como um casal encontrará uma maneira de se reunir depois da separação ou do divórcio- enfatiza exatamente não o tom masculino de vilania ou violência, mas a intolerância da mulher por qualquer perda de controle social ou emocional, dela mesma ou de outros, seu medo e até sua fobia do fracasso -ou da sujeição à inépcia humana. Grant explicitamente a acusa dessa intolerância, mas a característica do temperamento dela, descrita por ele, parece uma acusação de frieza causada por uma espécie de virgindade psíquica ("frigidez" talvez fosse a palavra usada naquele tempo).
O personagem de James Stewart a descreve para ela mesma como uma "virgem casada", Grant diz que ela quer ser uma deusa, casta e virginal, ao que ela responde furiosamente: "Pare de usar essas palavras feias!". Assim, essas comédias propõem o reconhecimento de um grau de violência, ou digamos de agressividade, irredutível porém tolerável ou desculpável, que inevitavelmente acompanha a intimidade humana, o reconhecimento, dito de outro modo, de que essa proximidade deve sempre ser solicitada ou cortejada contra obstáculos de temperamento, humor, preocupação, compromisso, hábito ou circunstâncias aleatórias, e que nunca há intimidade suficiente, estabilidade suficiente.
O próprio personagem de James Stewart pode estar sofrendo dessa espécie de virgindade psíquica, ou digamos inocência, como revela Katharine Hepburn; essa inocência é concebível como a base de sua intimidade particular mútua (ela se mostra na surpresa da mulher ao ver que as reportagens que ele publicou são "quase poesia", título que ele imediatamente aceita).
Duas teorizações profundamente interessantes e opostas dessa violência cotidiana -chame-a de inépcia ou resistência, que a associação humana deve aprender a encarar com tolerância, embora nem sempre com bom humor- são as discussões sobre atos falhos, ou o que se chama de "lapsos", célebres em Freud (concentrados em seu "Psicopatologia da Vida Cotidiana", de 1904) e nada famosos no ensaio de J.L. Austin chamado "Excuses" (Desculpas) -um aspecto da obra de Austin não tão conhecido atualmente quanto seu trabalho sobre verbalização performativa, mas filosoficamente tão significante quanto.
Em "Excuses", Austin conduz uma pesquisa incansável e meticulosa sobre o número e o leque de dispositivos que a língua nos oferece para nos defendermos de acusações de erro, acusações que não são tanto falsas, mas injustas, dada a presença de vários fatores extenuantes (eu realmente fiz aquilo de que me acusam, mas acidentalmente, ou sob pressão, ou distraidamente, ou quando drogado, ou porque fui obrigado e assim por diante).
O papel dos lapsos tem grande alcance nos respectivos pensamentos de Freud e Austin, embora sejam pensadores bastante diferentes. Mas, sem abordar agora esse âmbito mais amplo da questão, saliento a maneira como seus caminhos de seriedade para com a natureza da conduta humana expressos em seus estudos sobre a inevitabilidade ou inexorabilidade dos lapsos humanos se tocam e divergem.
Enquanto a visão do humano de Freud é como um campo de significado cujas ações expressam um significado mais amplo sobre aquilo de que gostaríamos de ser questionados (como se o corpo não pudesse acompanhar a mente), a visão de Austin é a do humano como campo de vulnerabilidade cujas ações envolvem consequências, efeitos e resultados mais amplos -mas significado mais estreito- pelo que deveríamos ser responsabilizados (como se a mente não pudesse acompanhar o corpo).
As sequências iniciais de "Levada da Breca" ("Bringing Up Baby", 1938) -outro filme de Howard Hawks definidor da comédia de recasamento- virtualmente consistem em uma série de lapsos (relacionados à confusão de bolas de golfe, carros e bolsas). O personagem de Cary Grant, aqui um cientista, atribui totalmente esses lapsos ao descuido ou desatenção ou alguma outra coisa de Katharine Hepburn, mas logo depois que ela acidentalmente rasga sua casaca, quase arrancando-a do corpo, e vira-se para sair, ele como inadvertidamente pisa sobre seu vestido de noite, rasgando-o completamente nas costas.
Esse processo de tentar despir-se mutuamente em um lugar público expressa o efeito que o interesse de um ser humano irá, prontamente ou não, se refletir em outro, o que seria uma lei de atração, um efeito que também pode ser compreendido como demonstração da importância da reação de uma pessoa a outra, ou que revele sua vulnerabilidade na presença da outra (podemos pensar nisso como a quarta lei do movimento, uma lei de sujeitos e não de objetos, um dos estudos principais da câmera de cinema).
Essa visão ou alegoria da vida cotidiana como sendo cercada de erro e confusão, incompreensão e desventura, é uma epitomização cômica da visão do banal invocada no trabalho de Austin e nas "Investigações Filosóficas" (1953) de Wittgenstein. Quando Wittgenstein diz: "O que fazemos é devolver as palavras de seu uso metafísico para seu uso cotidiano", isso implica que as palavras -que de outro modo usamos cotidianamente- são de certa maneira extraordinárias, nossas verbalizações em qualquer hora ou lugar são tingidas de uma força incontrolável, pequenos arroubos de violência (podemos sentir a força do interlocutor de Wittgenstein que é levado a exclamar: "Ninguém mais pode sentir ESTA dor" [batendo no próprio peito", que, no entanto, rudemente descarta nosso próprio conhecimento de que qualquer pessoa de fato pode sentir a dor causada por aquela maneira de golpear o peito).
O desejo de escapar do que pode ser sentido como as limitações da finitude (como se estivéssemos confinados a nossos corpos), o que Wittgenstein pinta como uma necessidade do metafísico, talvez seja a mais abrangente das afinidades das "Investigações Filosóficas" com a "Crítica da Razão Pura" (1781) de Kant, seu sentido da implacável inquietação do ser humano, a faculdade da razão distintamente humana vista precisamente como a faculdade que atormenta a si mesma.
Antes de passar a meus minutos conclusivos, quero notar que cada vez mais me perguntam se as comédias de recasamento continuam sendo feitas segundo o conjunto de exemplos clássicos dos anos 30 e 40 que eu cito. Minha resposta tem sido grosso modo que muitos filmes interessantes, geralmente pequenos ou de câmara, continuam a explorar os motivos ou climas do recasamento, mas que esse gênero, num mundo modificado, não tem mais sua posição eminente, para as platéias e os críticos, entre os gêneros de filmes.
Um exemplo recente, pertinente ao nosso tema do pastelão, é "Os Queridinhos da América" ("America's Sweethearts", 2001), com Julia Roberts, John Cusak e Billy Crystal, para o qual vários amigos chamaram a atenção como sendo uma comédia de recasamento, enquanto outros opinaram que parece, mas não é, já que o recasamento do homem é com outra mulher. Mas é típico desse gênero confundir as opções simples. A mulher realmente é outra, no entanto não é uma estranha, e sim a irmã da primeira mulher.
Existe um precedente notável na comédia de recasamento para a idéia de que uma condição para o recasamento é que um aspecto reprimido da primeira mulher tenha se afirmado, ou confirmado, e que esse aspecto possa, assim como em "Cupido É Moleque Teimoso", ser encenado sob o disfarce de a mulher personificar a irmã rebelde do homem. "Os Queridinhos da América" pode então ser visto como a literalização dessa imagem, enfatizando que a opção do tipo de irmã que a mulher da primeira comédia fez revela um aspecto sintonizado não apenas com o homem, mas reconhecido como pertencente à primeira mulher, variando mas levando adiante o subtom levemente incestuoso do gênero.
Duas outras de suas características invocadas por filmes recentes são, primeira, a ênfase para a presença física (por ausência) do corpo de apenas uma mulher (como no famoso clipe de "Aconteceu Naquela Noite" exibido em toda cerimônia dos Prêmios da Academia, em que Claudette Colbert mostra a perna para fazer um carro parar), como Julia Roberts é mostrada em um filme dentro do filme com 27 quilos a mais quando ela e o homem se encontram; e, segunda, o tema recorrente segundo o qual o homem deixa de reconhecer a mulher porque não admitiu que está apaixonado por ela.
Se "Os Queridinhos da América" tem uma contribuição a fazer para o gênero de recasamento, ela está no registro crítico dos dois elementos típicos do pastelão incorporados ao filme, dois tópicos que até agora, que eu saiba, eram tabu no gênero, quais sejam, masturbação e bestialidade, em que o primeiro exibe o inerente valor pornográfico do glamour, e o segundo parodia o sentimentalismo da relação humana com o que chamamos de mascotes, especialmente os cães. (Um cãozinho tem um papel crítico em "Cupido É Moleque Teimoso".)
Esses elementos do pastelão nos levam de volta à relação do mundo do pastelão com o mundo da infância, o mundo pré-político. No mundo da conversa e da política, como retratado na comédia de recasamento, é mais acurado falar em recorrência da infância, como no estado da adolescência, o período do renascimento liberado e explícito do interesse erótico pelos outros, o fato que fez Freud falar no caráter difásico da existência sexual humana, dois períodos de desenvolvimento sexual separados por uma fase que ele chama de latência.
A adolescência era aquele estado familiar e estranho a que escritores como Emerson, Thoreau e Nietzsche foram especialmente sensíveis; é a "juventude" à qual costumam dirigir explicitamente suas palavras, o tempo em que os sonhos de possibilidade são trocados por um "lugar" verdadeiro na sociedade, uma sociedade que Emerson viu como num estado de melancolia secreta, um estado que Thoreau famosamente chamou de desespero silencioso e que Nietzsche considerava governado pelo espírito da gravidade, cultivando o niilismo.
Todos eles nos pedem que lembremos os dias da adolescência em nossos anos de maturidade, vale dizer, diante da exigência do que Emerson chama de conformismo, e Nietzsche, de filistinismo. É o narrador de Proust, ninguém menos, durante a descrição da "idade ridícula que [ele" estava atravessando" ("em um mundo povoado de monstros e deuses"), quem escreve: "A adolescência é o único período em que aprendemos alguma coisa" (volume 2, pág. 453). Ele contrasta o período com a longa duração da conformidade e do hábito.
Assim somos lembrados de que há coisas piores do que a indignidade, a estranheza e o ridículo, de que há boas coisas talvez abordáveis apenas através da indignidade, da estranheza e do ridículo, coisas como expressividade ou a capacidade de manifestar o próprio desejo.
Penso novamente, neste contexto, em uma série de comentários que fiz no início citando Aristóteles e localizando a possibilidade de associação política, uma associação para o bem comum, na possibilidade da língua; penso neste contexto na explosão de Emerson, lembrando o som do discurso de seus co-cidadãos enfeitiçados pelo conformismo: "Cada palavra que eles dizem nos entristece". Contra a afirmação de Aristóteles sobre a fala, Emerson diz que nós, no território americano, não nos encontramos em um novo mundo, numa nova associação, mas no máximo em um estágio primitivo de aprender a conviver de uma nova maneira para um bem realmente comum.
Pode emergir conversa disso? Quase exatamente cem anos depois da confissão de Emerson, temos uma sequência em "Cupido É Moleque Teimoso" em que Cary Grant sub-repticiamente faz cócegas em Irene Dunne para fazê-la rir inadequadamente, ridiculamente, de uma louca declaração de amor de outro homem. O riso forçado é verdadeiro? O nosso riso dessa cena é causado por a acharmos puramente engraçada ou é essencialmente um violento toque de dedos em nossas costelas?
É uma limitação declarada das comédias de casamento que, como já notei, o estabelecimento da conversa ocorre apenas entre um casal, que é sempre mostrado envolvido em algum projeto incompreensível à sociedade comum.
Mas, se esse casal encontrar, como sempre parece fazer, uma maneira melhor de estabelecer comunicação do que fazer cócegas, ridicularizar e dar rasteira mutuamente, para encontrar um ponto em comum de espírito e carne transmitido em uma conversa de inteligência e compreensão, de perdão e paixão recíprocas; e se existem pessoas que continuam fazendo obras como esses filmes, para um público de amigos e estranhos, isso nos ajuda a imaginar essa possibilidade de intercâmbio humano. Quem sabe o que podemos esperar?


Nota do tradutor
Em inglês "slapstick", dispositivo usado nas farsas antigas, feito de dois pedaços planos de madeira, presos por uma das extremidades, que faz um forte ruído quando uma pessoa o usa para atingir outra. O termo passou a designar o gênero de comédia que no Brasil conhecemos por "pastelão".



Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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