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+ brasil 501 d.c.
A ilha flutuante
Luiz Costa Lima
Com apenas dois romances publicados ("Relato de um Certo
Oriente", 1991, e "Dois Irmãos",
2000, ambos pela Companhia
das Letras), Milton Hatoum é um dos
maiores ficcionistas de nosso final de milênio. E as diferenças internas na constituição dos dois romances sugerem que
outros caminhos se armam. Se a fecundação da memória é um traço comum
aos dois, com o resgate da imigração árabe para uma Manaus que, nos dois romances, se estende do começo do século
aos anos imediatamente posteriores ao
golpe de 64, a maneira de realizá-los é
sensivelmente distinta; ao passo que, em
"Relato", a narrativa se emaranha porque a narradora apenas saíra da clínica
para distúrbios mentais e a leitura precisa estar atenta para desentranhar os fios
da árvore genealógica, em "Dois Irmãos"
o narrador pertence a um estrato subterrâneo e enterrado: é filho de uma índia
domesticada e estuprada por descendente de imigrantes libaneses; nada o
embaralha senão as próprias voltas da vida e o caráter desta "cidade flutuante".
Cenário para uma ficção
Pois o
Amazonas e, dentro dele, Manaus, não é
simples cenário para uma ficção: Hatoum consegue o que se configura em escritores do Sul norte-americano e do
chamado Terceiro Mundo: a narrativa
desse espaço sociocultural, sem ser causalmente determinada, não se confunde
com as narrativas européia e norte-americana. Sob o risco de não ter espaço para
"Dois Irmãos", só posso insinuá-lo.
Concentro, pois, a singularidade da
ambiência em poucas frases: estamos
diante de uma cidade sem raízes, formada por estratos que se dissipam e desaparecem quase sem vestígios. Ambiência
em que o tempo não forma história ou a
história não contém densidade, pois a
mudança desconhece estabilidade. Seu
primeiro estrato é o indígena. Representa-o Domingas, a mãe do narrador, arrancada da comunidade indígena pelas
religiosas que a domesticam para que
sirva às famílias de Manaus. Domingas, a
"cansada, derrotada, entregue ao feitiço
da família", a ser estuprada pelo mais
louco dos gêmeos.
Nesse horizonte, a família significa o
agrupamento que, por posses econômicas, ainda admite alguma continuidade e
o agente estrutural, embora involuntário, de extermínio. Entre a família e seu
contorno, não há gradações: a família é
circundada por miseráveis, peixeiros,
vendedores de frutas, donos de biroscas,
moradores de barcos semidestruídos e
encalhados. No entanto as relações entre
os familiares e os nascidos-para-desaparecer são extremamente amigáveis.
Quando um membro da família desaparece por fuga ou suicídio, toda a comunidade se mobiliza em sua busca. Um
dos atuais peixeiros, durante a Segunda
Guerra Mundial, encontrara e salvara
um piloto norte-americano cujo avião
caíra na floresta. Ganhara uma medalha,
foto no jornal e um aleijão que o impede
de continuar mateiro; terminará coveiro,
mais próximo da morte de que sempre
estivera perto. Mas tampouco o agrupamento familiar está fora da instabilidade.
Uma das casas vizinhas daquela em que
se concentra a narrativa, que vive dos
fastos restantes do antigo ciclo da borracha, no fim da narrativa é escorraçada
pela leva de novos ricos. Na ilha flutuante, o tempo tem enorme pressa de colher
e jogar fora.
Odores e sabores
Já como em "Relato", o enredo supõe uma família de árabes imigrantes, que restabelece em Manaus a riqueza trazida de Túnis ou do Líbano, quando não a amplia. Mas não se
trata só de riqueza material. Amplia-se a
gama dos odores e dos sabores: do cheiro
das tâmaras, das essências, do carneiro
assado, comunicam-se os odores e os
pratos amazônicos. Em comum, eles explodem numa sensualidade que seria livre se não dependesse também da miséria que multiplica os prostíbulos. E, assim como o cheiro de detritos, de excrementos, de lama e água estagnada se
mistura aos cheiros finos, assim também
o corpo que se contorce em passos de
dança está próximo dos gestos dirigidos
pela miséria.
Em suma, erraria o leitor que visse na
ambiência dos dois romances de Hatoum o mero lugar onde uma história
humana se desenrola. O continente é
aqui parte do conteúdo e tudo é forma.
Daí a excepcionalidade do romance de
que trato: ele aponta para a configuração
doutro objeto. "Dois Irmãos" está mais
próximo do romance caribenho de García Márquez, e "Relato", de um certo
Faulkner do que, em qualquer grau, de
Oswald de Andrade ou da paródia de
Macunaíma.
São narrativas que tematizam a marginalidade das terras que as contêm, terras
a que se estenderam, sem as amoldar, a
estrutura da sociedade pós-iluminista.
Terras formadas por estratos humanos,
soterrados, anônimos, sobre os quais,
por algumas décadas, se sobrepõem uns
poucos agrupamentos, provisoriamente
estabilizados. Mas que, talvez mesmo
por isso, atraem deslocados ou fugitivos
de todo o mundo. Que vêm para se juntar, como o alemão do "Relato", a "estes
mulambos escondidos do mundo, testemunhas de uma agonia surda que não
ameaça nada, nem ninguém: a miséria
que é só espera".
Enraizamento
No caso de "Dois Irmãos", acentua-se menos a presença de
uma família de árabes cristãos do que
seu processo de enraizamento. É Halim,
o vendedor de porta em porta, que se
embriaga para vencer a timidez e conquistar pelos gazéis decorados a filha do
comerciante estabelecido, Zana, a mulher pela qual sempre estará apaixonado;
Zana, a companheira a ser perdida com a
vinda dos filhos. Mais especificamente,
de um dos gêmeos.
Para Halim e Zana, a vida seria uma
lenta e gostosa lascívia, se, por exigência
dela, os filhos não tivessem de vir. A casa
será formada pela índia domesticada,
aceita como se fosse da família (a ficção
naturalizada por nosso romance, desde o
século passado), por Zana, a árabe-manauense, e Halim, que cuida da loja, mais
interessado em uma boa conversa do
que em acumular capital.
Dos três filhos, há os gêmeos e Rânia, a
filha. Entre os homens, Yakub e Omar, o
Caçula, são antípodas que se detestam
desde crianças. Seus trajetos apenas aumentam suas divergências. Yakub, sério
e decidido, é o homem da razão. Não se
espere contudo facilidade maniqueísta.
Se o Caçula é o estróina, o império do desejo que não entende adiamento, Yakub
tornar-se-á o engenheiro calculista pela
Politécnica de São Paulo, que, no afã de
se vingar do irmão, apressará a destruição da família.
Pois os gêmeos não são apenas opostos, mas opostos que se complementam.
Yakub, a instrumentalidade da razão calculadora que vigia o alegre cemitério dos
mortos da terra sem raízes. Yakub, entretanto, é ainda aquele que assegurará
da antiga casa da família o estrito espaço
para que o filho de Domingas, a brutalizada, se torne o narrador do que, sem ele,
nem sequer seria lembrado.
Concorrente invencível
Tudo que
até agora se escreveu foram apenas ramais. Desde que nascem os gêmeos, melhor, desde que existe Omar, Halim tem
um concorrente invencível. O Caçula é
mais do que o filho mimado e protegido
pela mãe, em situações cada vez mais críticas. Em sua sabedoria de amante desprezado, Halim sabe que o filho arruaceiro é um covarde a quem a mãe estragara. Mas dizê-lo ainda não faz justiça ao
romance. O Caçula é "o noivo cativo da
mãe". Aquele que, pela ajuda dela, pode
tudo, exceto ter uma mulher para si.
A figura do "noivo cativo" tem a força
pregnante de um mito. Seu destino faz
lembrar Dioniso destroçado. Um mito
que concentra as coordenadas do mundo sem raízes. Sua figura condensa os
traços que apenas esboço: agente da brutalidade, estupra a índia serviçal; tem a
mãe para si e torna desamparado o eros
paterno; incapaz do mínimo controle,
seu afeto explosivo o joga desde a bailarina prateada, passando pela outra amante
com que foge, até a adoração do frustrado poeta francês que o levará à prisão e
condenação pelos militares de 1964; instintivo, não se impede da covardia de
ofender o pai, depois de morto.
Variantes do mito
Seu antípoda, o
rapaz sério, que escapa de Manaus para
se tornar um calculista de êxito, também
integra o mito: Yakub volta a Manaus
para elaborar o projeto de hotel planejado por mais novo imigrante, que termina por se apossar da casa dos pais. Halim
morre de frustração, desamparo e velhice, a mãe, louca, Yakub simplesmente
morre, Rânia, a irmã, sobrevive estéril,
como estéreis haviam sido os irmãos, na
nova Manaus, o Caçula é estraçalhado
pelas balas da polícia. O narrador cumpre seu recado. Não se entenda que escreve o documento da memória! Pensá-lo seria dar prova de não haver entendido nada. O mito do "noivo cativo" é a viga que constrói o que os filhos de família
haviam destruído, como parte de uma
estrutura que desconheciam.
Aqui não se escreve sobre um romance
que diminuiria nossa carência de ficção
de qualidade. "Dois Irmãos" pertence a
outros parâmetros. O mito que cria e fecunda configura um romance que supõe
uma matéria social bem diversa da ficção
de qualidade do Primeiro Mundo. A casa
que se destrói conta de uma sociedade
absolutamente sem amarras internas,
em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem. O realmente notável em
"Dois Irmãos" é a solda da forma alcançada. Forma que se nutre de um núcleo
mítico enquanto se metamorfoseia em
romance. O romance de um mundo flutuante, assediado tanto pela razão calculadora como por afetos desenfreados.
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de
"Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao
Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros.
Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".
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