São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2000

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+ brasil 501 d.c.

A ilha flutuante

Luiz Costa Lima

Com apenas dois romances publicados ("Relato de um Certo Oriente", 1991, e "Dois Irmãos", 2000, ambos pela Companhia das Letras), Milton Hatoum é um dos maiores ficcionistas de nosso final de milênio. E as diferenças internas na constituição dos dois romances sugerem que outros caminhos se armam. Se a fecundação da memória é um traço comum aos dois, com o resgate da imigração árabe para uma Manaus que, nos dois romances, se estende do começo do século aos anos imediatamente posteriores ao golpe de 64, a maneira de realizá-los é sensivelmente distinta; ao passo que, em "Relato", a narrativa se emaranha porque a narradora apenas saíra da clínica para distúrbios mentais e a leitura precisa estar atenta para desentranhar os fios da árvore genealógica, em "Dois Irmãos" o narrador pertence a um estrato subterrâneo e enterrado: é filho de uma índia domesticada e estuprada por descendente de imigrantes libaneses; nada o embaralha senão as próprias voltas da vida e o caráter desta "cidade flutuante".

Cenário para uma ficção
Pois o Amazonas e, dentro dele, Manaus, não é simples cenário para uma ficção: Hatoum consegue o que se configura em escritores do Sul norte-americano e do chamado Terceiro Mundo: a narrativa desse espaço sociocultural, sem ser causalmente determinada, não se confunde com as narrativas européia e norte-americana. Sob o risco de não ter espaço para "Dois Irmãos", só posso insinuá-lo.
Concentro, pois, a singularidade da ambiência em poucas frases: estamos diante de uma cidade sem raízes, formada por estratos que se dissipam e desaparecem quase sem vestígios. Ambiência em que o tempo não forma história ou a história não contém densidade, pois a mudança desconhece estabilidade. Seu primeiro estrato é o indígena. Representa-o Domingas, a mãe do narrador, arrancada da comunidade indígena pelas religiosas que a domesticam para que sirva às famílias de Manaus. Domingas, a "cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família", a ser estuprada pelo mais louco dos gêmeos.
Nesse horizonte, a família significa o agrupamento que, por posses econômicas, ainda admite alguma continuidade e o agente estrutural, embora involuntário, de extermínio. Entre a família e seu contorno, não há gradações: a família é circundada por miseráveis, peixeiros, vendedores de frutas, donos de biroscas, moradores de barcos semidestruídos e encalhados. No entanto as relações entre os familiares e os nascidos-para-desaparecer são extremamente amigáveis. Quando um membro da família desaparece por fuga ou suicídio, toda a comunidade se mobiliza em sua busca. Um dos atuais peixeiros, durante a Segunda Guerra Mundial, encontrara e salvara um piloto norte-americano cujo avião caíra na floresta. Ganhara uma medalha, foto no jornal e um aleijão que o impede de continuar mateiro; terminará coveiro, mais próximo da morte de que sempre estivera perto. Mas tampouco o agrupamento familiar está fora da instabilidade. Uma das casas vizinhas daquela em que se concentra a narrativa, que vive dos fastos restantes do antigo ciclo da borracha, no fim da narrativa é escorraçada pela leva de novos ricos. Na ilha flutuante, o tempo tem enorme pressa de colher e jogar fora.

Odores e sabores
Já como em "Relato", o enredo supõe uma família de árabes imigrantes, que restabelece em Manaus a riqueza trazida de Túnis ou do Líbano, quando não a amplia. Mas não se trata só de riqueza material. Amplia-se a gama dos odores e dos sabores: do cheiro das tâmaras, das essências, do carneiro assado, comunicam-se os odores e os pratos amazônicos. Em comum, eles explodem numa sensualidade que seria livre se não dependesse também da miséria que multiplica os prostíbulos. E, assim como o cheiro de detritos, de excrementos, de lama e água estagnada se mistura aos cheiros finos, assim também o corpo que se contorce em passos de dança está próximo dos gestos dirigidos pela miséria. Em suma, erraria o leitor que visse na ambiência dos dois romances de Hatoum o mero lugar onde uma história humana se desenrola. O continente é aqui parte do conteúdo e tudo é forma. Daí a excepcionalidade do romance de que trato: ele aponta para a configuração doutro objeto. "Dois Irmãos" está mais próximo do romance caribenho de García Márquez, e "Relato", de um certo Faulkner do que, em qualquer grau, de Oswald de Andrade ou da paródia de Macunaíma. São narrativas que tematizam a marginalidade das terras que as contêm, terras a que se estenderam, sem as amoldar, a estrutura da sociedade pós-iluminista. Terras formadas por estratos humanos, soterrados, anônimos, sobre os quais, por algumas décadas, se sobrepõem uns poucos agrupamentos, provisoriamente estabilizados. Mas que, talvez mesmo por isso, atraem deslocados ou fugitivos de todo o mundo. Que vêm para se juntar, como o alemão do "Relato", a "estes mulambos escondidos do mundo, testemunhas de uma agonia surda que não ameaça nada, nem ninguém: a miséria que é só espera".

Enraizamento
No caso de "Dois Irmãos", acentua-se menos a presença de uma família de árabes cristãos do que seu processo de enraizamento. É Halim, o vendedor de porta em porta, que se embriaga para vencer a timidez e conquistar pelos gazéis decorados a filha do comerciante estabelecido, Zana, a mulher pela qual sempre estará apaixonado; Zana, a companheira a ser perdida com a vinda dos filhos. Mais especificamente, de um dos gêmeos. Para Halim e Zana, a vida seria uma lenta e gostosa lascívia, se, por exigência dela, os filhos não tivessem de vir. A casa será formada pela índia domesticada, aceita como se fosse da família (a ficção naturalizada por nosso romance, desde o século passado), por Zana, a árabe-manauense, e Halim, que cuida da loja, mais interessado em uma boa conversa do que em acumular capital. Dos três filhos, há os gêmeos e Rânia, a filha. Entre os homens, Yakub e Omar, o Caçula, são antípodas que se detestam desde crianças. Seus trajetos apenas aumentam suas divergências. Yakub, sério e decidido, é o homem da razão. Não se espere contudo facilidade maniqueísta. Se o Caçula é o estróina, o império do desejo que não entende adiamento, Yakub tornar-se-á o engenheiro calculista pela Politécnica de São Paulo, que, no afã de se vingar do irmão, apressará a destruição da família. Pois os gêmeos não são apenas opostos, mas opostos que se complementam. Yakub, a instrumentalidade da razão calculadora que vigia o alegre cemitério dos mortos da terra sem raízes. Yakub, entretanto, é ainda aquele que assegurará da antiga casa da família o estrito espaço para que o filho de Domingas, a brutalizada, se torne o narrador do que, sem ele, nem sequer seria lembrado.

Concorrente invencível
Tudo que até agora se escreveu foram apenas ramais. Desde que nascem os gêmeos, melhor, desde que existe Omar, Halim tem um concorrente invencível. O Caçula é mais do que o filho mimado e protegido pela mãe, em situações cada vez mais críticas. Em sua sabedoria de amante desprezado, Halim sabe que o filho arruaceiro é um covarde a quem a mãe estragara. Mas dizê-lo ainda não faz justiça ao romance. O Caçula é "o noivo cativo da mãe". Aquele que, pela ajuda dela, pode tudo, exceto ter uma mulher para si. A figura do "noivo cativo" tem a força pregnante de um mito. Seu destino faz lembrar Dioniso destroçado. Um mito que concentra as coordenadas do mundo sem raízes. Sua figura condensa os traços que apenas esboço: agente da brutalidade, estupra a índia serviçal; tem a mãe para si e torna desamparado o eros paterno; incapaz do mínimo controle, seu afeto explosivo o joga desde a bailarina prateada, passando pela outra amante com que foge, até a adoração do frustrado poeta francês que o levará à prisão e condenação pelos militares de 1964; instintivo, não se impede da covardia de ofender o pai, depois de morto.

Variantes do mito
Seu antípoda, o rapaz sério, que escapa de Manaus para se tornar um calculista de êxito, também integra o mito: Yakub volta a Manaus para elaborar o projeto de hotel planejado por mais novo imigrante, que termina por se apossar da casa dos pais. Halim morre de frustração, desamparo e velhice, a mãe, louca, Yakub simplesmente morre, Rânia, a irmã, sobrevive estéril, como estéreis haviam sido os irmãos, na nova Manaus, o Caçula é estraçalhado pelas balas da polícia. O narrador cumpre seu recado. Não se entenda que escreve o documento da memória! Pensá-lo seria dar prova de não haver entendido nada. O mito do "noivo cativo" é a viga que constrói o que os filhos de família haviam destruído, como parte de uma estrutura que desconheciam.
Aqui não se escreve sobre um romance que diminuiria nossa carência de ficção de qualidade. "Dois Irmãos" pertence a outros parâmetros. O mito que cria e fecunda configura um romance que supõe uma matéria social bem diversa da ficção de qualidade do Primeiro Mundo. A casa que se destrói conta de uma sociedade absolutamente sem amarras internas, em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem. O realmente notável em "Dois Irmãos" é a solda da forma alcançada. Forma que se nutre de um núcleo mítico enquanto se metamorfoseia em romance. O romance de um mundo flutuante, assediado tanto pela razão calculadora como por afetos desenfreados.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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